Colunistas / Literatura
Rosa de Lima

LITERATURA: ROSA DE LIMA COMENTA "MEMÓRIAS DE UM CAÇADOR", TURGUÊNIEV

São 25 contos que retratam a vida dos servos (mujiques) e suas familias no perído da dinastia Romanov, no século XIX
17/03/2023 às 10:59
    
  Ivan Turguêniev é considerado um dos grandes escritores da Rússia do século XIX e eternamente. Creio que não preciso apresentá-lo novamente aos meus abnegados leitores uma vez que já analisamos neste BJÁ seu livro mais famoso "Pais e Filhos" (1862, clássico da literatura mundial) em narrativa que exalta o niilismo e o conflito de gerações entre aqueles com formação acadêmica em São Petesburgo - a capital do iluminismo da Rússia - cheios de novas ideias nas cabeças; e aristocratas que se mantinham na zona rural apegados ao regime ancestral da servidão.

  O autor, em si, considerado um cultor e difusor da filosofia niilista - corrente que defende (originalmente) a descrença absoluta com atitudes críticas às convenções sociais e aos valores tradicionais - e crítico mordaz ao regime ditatorial e escravocrata da Rússia, do czarismo da Dinastia Romanov, foi perseguido e enxotado do seu país e exilou-se na França por longos anos onde faleceu em Bougival, nas proximidades de Paris, só retornando a Moscou, em 1883, para ser sepultado.  

  Hoje vamos falar de uma das suas obras mais emblemáticas e que representa, também, uma autobiografia cujo título é "Memórias de um Caçador" (Editora 34, tradução de Irineu Franco Perpétuo, reimpressão de 2022, SP, 481 páginas, R$66,00 na Amazon), editado pela primeira vez em 1852, e que provocou uma 'revolução' na Rússia e teria feito com que o czar Alexandre II libertasse os servos, publicando uma nova lei, em 1861, que aboliu a escravidão para 22.5 milhões de almas, mas, manteve a raiz da estrutura rural latifundiária. Ou seja, tal ou parecido ao que aconteceu no Brasil, em 1888, houve o fim da escravidão no papel, porém, nada foi feito para proteger, de fato, os escravos. 

  Turguêniev era, de berço, um aristocrata de família rica e que, com o passar dos anos, entendeu que o regime ancestral da Rússia era muito perverso, animalesco, e vai se insurgir contra ele e a si próprio, primeiro libertando os seus servos, e depois usando a literatura para alertar a sociedade russa sobre esse grande problema. 

  Nos contos, ao caçar ao lado de servos e capatazes de sua propriedade, sozinho ou com outros aristocratas vai revelando a paisagem bucólica e bela da provincia de Oriol, onde herdara terras, e, ao mesmo tempo, na medida em que expõe a miséria em que viviam os lavradores e suas famílias (mujiques), e o comportamento submisso e resignado recheado de misticismo em que se encontravam, abre essa porta para observadores do mundo Ocidental e opinião pública, e incendeia a sociedade organizada libertária e revolucionária da Rússia, embora ele não fosse um radical nem engajado pessoalmente em quaisquer movimentos como o "Narodnaya" (Vontade do Povo) que assassinou o czar Alexandre II, em 1881. 

  O autor lança com o niilismo as centelhas da modernidade no "ancien" (expressão francesa; a aristocracia russa falava francês)regime russo, os seus contos começaram a ser publicados a partir de 1848 (de uma só vez, em livro, 25 contos da "Memórias de um Caçador", em 1852, e renderam ao autor fama literária imediata nos círculos liberais e, consequentemente, a fúria do regime czarista, que o condenou, de imediato, a prisão domiciliar. 

  Os estudiosos da filosofia niilista divergem sobre a temporalidade dessa nova forma de pensar o ser humano a partir do nada (de uma nova esperança, de fundamento moral diferenciado) em relação a essas duas obras de Turguêniev. O niilismo já vinha sendo praticado por filósofos alemães sobretudo Arthur Schopenhauer e sua obra principal "O Mundo como Vontade e Representação", data de 1819, porém, o marco na literatura russa sobre o niiilismo teria ocorrido, de fato, com o romance "Pais e Filhos", publicado em 1862, dez anos depois do "Memórias do Caçador". E, mais intrigante ainda, se é que podemos usar essa expressão, os contos são considerados um livro autobiográfico, iniciados quando o autor tinha apenas 30 anos de idade.  

  Importante, para nós neste momento, à parte essas reminiscências histórias que são também relevantes para entendimento do contexto social e político da época, é analisar a obra em si, os contos, a linguagem, a arte literária, segundo os estudiosos mais profundos da obra de Turguêniev influenciados pela estética da escola natural de Bielenski. De fato, o naturalismo, diria até o evolucionismo darwiano é visto no contexto na medida em que o autor põe no contexto a paisagem natural dos campos da Rússia, as plantas, as aves, os rios, lagos, estepes, colinas; e o tempo senhor das intempéries e das belezas como a chuva, o sol, a neve e outros, integrados na vida dos servos.  

  Os contos, portanto, têm lirismo, beleza, amor com uma profundidade muito forte porque os personagens centrais de todos eles, os servos (mujiques) e suas famílias tinham formas de viver ancestrais de longos séculos e uma rede de hábitos que lhe garantiram a sobrevivência com todas as adversidades possíveis e desconfiavam (ou não aceitavam) de mudanças radicais em suas vidas. O que Turguêniev revela, em muitos contos, é que essa rede de hábitos era extremamente sólida e fidedigna os mujiques tratando os proprietários das terras como "pais", senhores que também se apresentavam para eles como um "salvadores" quase um Deus, e a terra, seus cavalos, o trigo, os animais como algo até divinatório. 

  Turguêniev, por conseguinte, não escrevia para os mujiques e sim sobre os mujiques. O expressivo para ele era retratar a vida dessas pessoas e utilizar a filosofia niilista daquela época, com focos na descrença, no conformismo, na miséria e assim por diante. E na medida em que fosse revelando essas cenas a sociedade literária se moveria, a burocracia do regime czarista se movimentaria (como se movimentou) e o mundo ocidental letrado e politizado teria conhecimento de uma realidade que não conhecia ou se conhecia não tinha a profundidade do que era. E as mudanças aconteceriam como de fato aconteceram, em 1917, com a Revolução Bolchevique e o fim do czarismo. Transição (nos anos subsequentes) que se deu a custo de milhões de mortes já com Lenine e Stálin. 

  Analisando cada um dos 25 contos diria que aqueles que são mais expressivos, tanto do ponto de vista da literatura, em si, da linguagem; quanto da sociologia política, são: "O prado de Biéjin" (para mim o melhor); "O médico do distrito"; "Os cantores"; "Hamlet do distrito de Schigri"; e "Relíquia viva" (o mais chocante). Todos os demais são também admiráveis e o autor conseguiu ambientá-los se inserindo no contexto como um aristocrata que amava a caça (herança ancestral de sua casta; quase todos aristocratas caçavam) com espingardas de última geração, cães fidelissimos e suas vítimas imortalizadas em tantos livros da literatura russa: coelhos, terrazes, perdizes e patos. 

  Tuguêniev não nega sua origem e na medida em que conhece mais de perto a vida dos mujiques e suas famílias nas isbás (casas de palha em que viviam), nos botecos, nas festas populares e no trabalho expõe essas mazelas sem admiração ou toques de sentimentos cristãos, de piedade ou o que seja, mas, o que revela, o conteúdo, ai sim é que está o âmago da questão e quem lê entende toda a sua indignação e o sofrimento das pessoas. 

  Vamos para um trecho de "Relíquia Viva" quando ele e o capataz Iermolai são surpreendidos por uma forte chuva e obrigados a interromper a caça e se abrigarem em Aleksêievka, numa fazendinha, e são surpreendidos por uma mulher imobilizada numa cama "a cabeça completamente murcha, monocromática, cor de bronze...o nariz estreiro como o fio de uma faca... patrão o senhor não está me reconhecendo? Eu liderava as brincadeiras de toda de sua mãe, em Spásskoie...eu também era a primeira cantora do coro, lembra? ...Lukéria, exclamou. É você, será possível? ...sim patrão, sou eu Lukéria.

  - O que aconteceu com você? - Uma desgraça enorme! Patrão, não tenha repugnância, não tenha nojo da minha infelicidade...eu estava noiva de Vassili e numa noite tinha um rouxinol no jardim e levantei da varanda para ouvi-lo... e ouvi vozes do meu noivo chamando-me quando estatelei-me no chão...e desde então passei a murchar e a definhar...nenhum médico conseguiu identificar minha doença...e após tratamentos com ferro incandescente nas costas e gelo fiquei paralítica... e aqui estou vivendo como o senhor pode ver.

  No conto, o autor vai conversando com Lukéria se haveria algum jeito de tirá-la dali, daquele sofrimento e questiona: "mas isso não é tedioso, não é ruim? E ela responde: - E o que fazer? Não quero mentir. No começo era bem difícil, mas depois habituei-me, me acostumei, não me incomodo; tem que viva ainda pior...muita gente saudável pode pecar com muita facilidade, já de mim o pecado se afastou...já me habituei a não pensar e, mais ainda, a não recordar...o tempo passa mais rápido".

  O conto é fantástico e revela toda a agudez da vida de uma serva resignada com a paralisia e quando o patrão sugere levá-la para um hospital ela responde: - Não me leve para um hospital, não mexa comigo, como vão me curar? ...aqui já teve um doutor que puxou meus braços e falou que estava em nome da ciência, um cientista, e disse o nome complicado da minha doença...e foi embora e fiquei uma semana com dores nas costas...não mexa comigo, não me mande para um hospital...não tenha pena de mim...eu era doidinha ...e sabe o que? ...ainda hoje eu canto. - Canta? ...Canto para mim mesmo".

  Adiante Lukéria narra ao patrão a visita da morte "...quem é você? ...sou a sua morte. Devia me assustar, mas, pelo contrário, fiquei alegre, bem alegre, e fiz o sinal da cruz...e essa mulher, minha morte disse que não poderia levar-me...e eu disse: ...mãezinha querida, leve-me... e ela respondeu depois do dia de São Pedro. 

  O diálogo entre Lukéria e o padrão segue nesse tom, de melancolia, de tristeza até que ele se despede dela. O conto termina com o epilogo: - Algumas semanas mais tarde, fiquei sabendo do falecimento de Lukéria...a morte a buscou...depois do dia de São Pedro...e que no dia do seu falecimento ficou escutando som de sinos o tempo todo...e que o som não vinha da igreja, mas "de cima". Provavelmente, não ousava dizer do céu".

  Nosso contou, pois, o autor revela a resignação em alto estilo de uma mujique que ficara paralítica e se acostumara com a sua vida de sofrimento, numa cama, entendia que isso fazia parte do destino da vida, que a ciência nada poderia fazer por ela, via a ciência como impotente e preferia a morte do que ir para um hospital, e até na morte, no momento em que a visita diz para ela ter paciência com seu sofrimento uma vez que seu dia ainda não chegara, mas estava próximo. Que se resignasse um pouco mais até o dia de São Pedro... e quando esse dia chegou ao ouvir as badaladas do sino não ousou dizer que era do céu, talvez para não cometer o pecado final, uma vez que o pecado já tinha saído dela há muito tempo.

  O autor revela, assim, toda a personalidade de uma serva: atenciosa com o padrão até na hora da morte, resignada e submissa, o que era um retrato da maioria das mujiques.

  Noutro conto, que classifiquei como o melhor da série e do livro o autor descreve a exuberante paisagem russa ao encontrar (por acaso quando estava caçando) com adolescentes na beira de um prado cuidando de uma manada, "o céu escuro e límpido pairava sobre nós, solene e vasto, com toda sua suntuosidade misteriosa". O autor então descreve perfis das 5 crianças - Fiédia, Pavlucha, Iliucha, Kóstia e Vânia - e do diálogo que manteve com elas revelando todo misticismo e o que sustentam a vida.

  - De repente Fídia virou-se para Iliucha: Você viu o domovôi (duende). - Não, não vi, porque não dava para vê-lo, mas ouvi...e na rólnia (fábrica de papel) nós o vimos...e ele caminhava e as tábuas rangiam ...uma das tinas se moveu e um gancho se desprende u do prego e voltou a ficar pregado". Depois foi a vez de Kóstia contar um caso que aconteceu com Gavrila, o carpinteiro do arraial que se deparou com uma russlka (náide da mitologia eslava) e ele começou a fazer o sinal da cruz ...como era difícil, como se seu braço fosse de pedra...e a musa da floresta parou de sorrir e começou a chorar...por que você está chorando perguntou Gavrila...se você não tivesse feito o sinal da cruz teria vivido feliz comigo até o final da vida, mas com você fez o sinal da cruz, não vou me consumir sozinha; você também vai se consumir até o final de seus dias".

  Os diálogos sobre misticismo vão se sucedendo entre as crianças Iliucha dizendo que a russlka queria era matar o carpinteiro de cócegas "...é o que elas fazem" e logo depois algo ressoou e passando voando sobre o rio...a caldeira logo se esvaziou...os cães se levantaram e precipitaram-se para longe do fogo com um latido...e imaginaram ser uma assombração, um defunto, e comentaram sobre o Sábado das Almas dia em que se vê defuntos...mas aquela seria uma alma perdida subindo aos céus...havia passado mais de três horas que me juntara aos meninos e a lua saia magnifica no céu.

  O conto traz uma série de outras histórias de assombrações e mortes, de pessoas que morreram no rio e se tornaram defuntos-visagens que aparecem para amedrontar outras pessoas, de duentes e deuses dos prados e das florestas narrados por adolescentes de um lugar bem remoto da Rússia, o que era comum entre os meninos e mostra a sociedade da aristocracia e da servidão com suas assombrações, comuns noutras partes do planeta. Turguêniev quer, assim dizer, que os meninos do Prado de Biéjin, são universais.