Colunistas / Literatura
Rosa de Lima

ROSA DE LIMA COMENTA LIVRO “OS CONTOS DE CANTERBURY”, DE G. CHAUCER

Diria, ao meu gosto que o melhor dos contos está com a mulher de Bath, a tertúlia do frade e do beleguim, e o conto do criado do cônego, este último repleto de citações sarcásticas à igreja católica.
10/02/2023 às 12:31
      Os homens não alcançam compreender os livros enquanto não chegarem a ter certa experiência da vida... Chaucer foi o maior poeta do seu tempo... Era mais conciso do que Dante... Escrevia numa época em que a Inglaterra ainda fazia parte da Europa... No seu mundo tinham vivido tanto Guillaume Poictiers como Scotus Erigena... Ninguém jamais poderia julgar a poesia inglesa enquanto não souber o quanto dela, que gama inteira de suas qualidades já não existe nos escritos de Chaucer... Era atento à vida em igualdade com Shakespeare. 

   Esses extratos de pensamentos são do poeta e crítico literário Ezra Pound (1885/1972) estudioso da poesia inglesa (era norte americano mas viveu em Londres) e no "ABC da Literatura" fornece uma lista de escritores dos quais se pode rastrear a metamorfose do verso inglês: Chaucer (1340/1400), Vilon, Gavin, Marlowe, Shakespeare (1564/1616) e segue com outros nomes Pope, Landor até Lafourge (1860-87). 

  Confesso meu desconhecimento sobre a maioria desses autores (a lista completa de Ezra contém 24 nomes) exceto os mais populares como Shakespeare, John Donne e Walt Whitman. Sobre Chaucer conhecia pouco ou quase nada embora, na década de 1990, estive em Canterbury em visita turística. Então, fustigado pelo saber de Pound que recomenda ao crítico literário sem uma formação do saber acadêmico, e eu nunca frequentei uma escola de Letras nem no Brasil, nem em Bolonha ou Oxford, o mais recomendável é ler o mais que puder em bons autores e daí ir formulando suas próprias opiniões sobre a literatura, os escritos pelos autores renomados, de preferência. Desculpem, pois, se em aprendizado estou, ainda que velho em idade seja.

  Assim, dediquei-me a analisar a obra mais conhecida de Geoffrey Chaucer, "Os Contos de Canterbury" (Editora 34, 780 páginas, versão em inglês e portuguê, tradução Herdeiros de Paulo Vizioli, prefácio e notas adicionais de José Roberto O'Shea, edição reimpressa em 2020, R$70,00, SP) uma obra escrita no século XIV quando o politeísmo ainda perdurava com suas crenças e deuses em muitas comunidades do Ocidente e o cristianismo avançava a passos largos para substituí-lo por uma crença monoteísta em Deus único e Jesus Cristo como arauto. O autor dá plena demonstração de ser um cristão  com ardorosa fé e muito do que escreve nos contos traz essa marca.

  Diria, até, que há muito de moralismo e visões machistas sobre o papel da mulher na sociedade, embora, seja bom lembrar que o escrito data do final do medievo (século XIV) no liminar do renascimento (Chaucer morreu em 1400) e o poeta retrata nos seus contos narrativas de um grupo de pessoas que reunidas se dirigiam para uma peregrinação a Canterbury e esse mosaico envolve falas de um monge, a mulher de Bath, um moleiro, um feitor, um cavaleiro, um mercador, um estudante, etc, com variadas opiniões cada qual, evidente, fustigando um ao outro quando provocado, exatamente para que os leitores possam ter uma ideia do que era o pensamento daquela época. Creio que, nos dias atuais, ainda seja assim, uma vez que frades existem que fornicam madames e monges nem sempre são castos quanto pregam.

  O livro começou a ser escrito em 1386 e o autor morreu em 1400 sem concluí-lo - e viveu durante o período da guerra dos 100 anos entre a França e a Inglaterra - e foram muitos os fatos com reflexos na vida cultural e na literatura incluindo a Revolta dos Camponeses sob a chefia de Wat Tyler (1381). Sobre o autor há mais dados biográficos seus do que os atribuídos a Shakespeare (dois séculos depois) uma vez que teve longa associação com a realeza inclusive sendo inspetor alfandegário junto aos mercadores de lã (1374/1386). Posteriormente, tornou-se fiscal de obras do Rei Ricardo II, e mesmo muito ocupado com essas tarefas burocráticas conseguiu escrever obra tão densa, em prosa poética, a ponto de ser considerado o pai da literatura inglesa. 

 Diríamos que era um obstinado, firme, pertinaz, apaixonado pela literatura antiga e organizou seu livro em torno de 29 peregrinos que se dirigiam à cidade de Canterbury, para uma visita piedosa ao túmulo de São Tomás Beckett. O que há de ficção e realidade é difícil saber. As histórias foram ambientadas a partir de um encontro no Albergueiro do Tabardo - estalagem ao Sul de Londres (Chaucer nasceu em Londres) - e os estudiosos apontam que se o autor tivesse sido fiel ao plano inicial de sua obra seriam ao menos 120 histórias. O que parcialmente concluiu foram os 29 contos (alguns inacabados, mas de ótimas leituras e entendimentos) incluindo prólogos e comentários entre os participantes da romaria sempre sob a intermediação do albergueiro e do próprio Chaucer. Os leitores (creio) ficam sem saber ao certo quando fala o albergueiro se não é o próprio autor. 

 As narrativas são fantásticas e exige-se conhecimento da cultura helenística ainda predominante em muitos círculos da época, das mitologias grega e latina, das citações de Dante, Virgílio, Homero, Sêneca e outros, de deuses como Vênus e Marte, e figuras mitológicas com o Teseu, Peroteu e Hipólita mas tudo perfeitamente compreensível aos leitores. Diria, ou dizem alguns críticos mais antigos de sua obra que, talvez, tivesse faltado ao autor colocar contos narrados por figuras populares do medievo, o que se chama, hoje, de povo. Entre os 29 depoimentos a concentração maior é de pessoas da classe média - cavaleiro, monge, frade, mercador, estudante, médico, vendedor de indulgência, proprietário de terras, etc, e das camadas mais pobres da população tem-se apenas os contos do moleiro, do cozinheiro e do criado de um cônego. 

  Nada disso, no entanto, diminui o valor da obra e entende-se, ainda, que se Chaucer não colocou esses personagens mais populares em tela, teria sido porque, por um lado, ainda não dera por acabada sua obra e morreu escrevendo-os; quer porque era um representante da classe média alta ligado a aristocracia. E, provavelmente, não tinha relações de amizade e de conhecimento de narrativas mais populares. Mas, é bom lembrar que era um intelectual e poderia saber mais do que pensamos. O mais certo é que lhe faltou tempo de vida para ampliar sua obra.

  Diria, ao meu gosto que o melhor dos contos está com a mulher de Bath, a tertúlia do frade e do beleguim, e o conto do criado do cônego, este último repleto de citações sarcásticas à igreja católica. Chaucer, ao que tudo indica um cristão convicto, de estar sempre a citar Jesus Cristo como Salvador e a crença de um único Deus, o cristão, não poupa críticas a Igreja Católica como instituição, tem opiniões rígidas sobre a família indissolúvel, mas, claro, nas narrativas deixa que as línguas soltas de cada contador das histórias o faça suas falas sem censuras. Pelo contrário, põe o albergueiro no papel de mediador, e não cassa a palavra de nenhum deles mesmo quando contestada por um adversário.
 
  E isso flui até o final do livro deixando os leitores muito agradecidos. A edição da 34 tem a versão em inglês em estrofes de sete versos (rhyme royal) e outros nas páginas pares e nas páginas impares a tradução em português de Vizioli e seus herdeiros em prosa. Isso permite aos leitores mais intelectualizados fazerem confrontos lendo em duas línguas (não todo o livro), mas pelo menos aqueles trechos que os considere mais simpáticos ao seu gosto.

  É um livro que resiste ao tempo e se o autor não teve a fama de Shakespeare nem a ajuda da dramaturgia para popularizar sua obra, como obteve o bardo inglês William, chegou tardiamente ao cinema e ao teatro e segue sendo lida a Ocidente e Oriente, sobretudo por aqueles povos de língua inglesa. Chaucer teve três influências em sua vida poética: os períodos francês, italiano (Dante, Boccacio) e o inglês, da maturidade, exatamente quando escreveu "Os Contos de Canterbury" colocando no ápice dos contos como uma espécie de alerta aos desmedidos, aos donos do poder, aos ricos e todos aqueles que amealharam fortuna, quer às custas dos mais humildes ou na esperteza, essa roda da "fortuna" misteriosa, essa adversidade invisível, está sempre presente para arruinar a vida de quem quer que seja quando roda ao contrário, breca, pune. 

  Em "o Conto do Vendedor de Indulgência" usa a expressão latina "Radiex matorum est Cupiditas" (A cobiça é a raiz dos males) citação Cf.I Timóteo para embasar a narrativa (visto também noutros contos), em especial no conto "Do Criado do Cônego" um aprendiz de cientista que durante anos tentou se aproximar da ciência desenvolvida pelo religioso em busca da Pedra Filosofal da transformação do barro ou o que seja em outro, no conflito homem-ouro. Arruinaram-se muitas vítimas na lábia do cônego lhes oferecendo muitas libras para que ele ensinasse essa fórmula, principio tão precioso (moral do conto) para Jesus Cristo que ele não deseja a sua divulgação, a menos que sua divindade a autorize a fim de inspirar nos homens ou proteger os que amam.

 O aprendiz do cônego também se arruinou. mas aprendeu a lição.