Colunistas / Literatura
Rosa de Lima

ROSA DE LIMA COMENTA LIVRO "POR QUEM OS SINOS DOBRAM", ERNEST HEMINGWAY

A guerra civil espanhol e a luta contra o fascismo em texto libertário
13/01/2023 às 14:33
   O poeta e crítico literário Ezra Pound conceitua no seu "ABC da Literatura" - uma explicação mais completa do método "How to Read" (Como Ler) - que a referência de um escritor é o seu nome "depois de um certo tempo, ele passa a ter crédito". E acentua que, um crítico ao comentar uma obra deve se concentrar no significado da linguagem, no que o autor quer expressar e não na personalidade de quem produziu o texto (o autor). Destacar, assim, o conteúdo do trabalho (o texto em poesia, prosa, etc) tirando as suas próprias conclusões e não repetindo conclusões dos outros. Pound era severo, durão com os colegas de pena e exigente consigo e com autores e suas obras.

  Fiz essa introdução para que os meus leitores possam entender melhor o que passo a comentar, a obra de Ernest Hemingway intitulada "Por Quem os Sinos Dobram" (Editora Bertrand Brasil, 667 páginas R$80,00 - tradução Luiz Peazê, 22ª edição, 2022) observando o que  conceituou Pound na relação entre obra e autor com mais atenção na crítica à obra, mas sem perder de vista o autor ou inserindo o perfil do escritor no contexto. 

  O que se pode observar neste livro é exatamente esse imbricamento, essa simbiose obra-autor; autor-obra uma vez que Hemingway trata de um episódio que ocorreu na Guerra Civil Espanhola na missão de explodir uma ponte numa passagem estratégica nas montanhas de Segóvia, tarefa à cargo de um norte-americano que os guerrilheiros republicanos só chamavam de "inglês" o que pode-se entender que esse personagem é o próprio escritor.

  Teria, assim, Hemingway colocado no contexto do livro um antifascista conhecedor de armas, explosivos e estratégias militares elementos que lhes eram familiares ou ao menos tinha conhecimentos dos seus mecanismos, ele que era um aventureiro, ex correspondente de guerra da Primeira Mundial, na Itália, onde foi ferido trabalhando como motorista de uma ambulância e correspondente de um jornal de Toronto, e também era uma pessoa que amava a Espanha e frequentava o país como espectador de touradas e amigo de famosos toureiros. 

  Portanto, vou tirando minhas próprias conclusões desta obra dando razão a Pound no que diz respeito ao significado da linguagem e associando a personalidade do autor ao que narra no ensaio romanceado. Outra questão em tela é que o momento e o lugar onde se desenrolam a trama são também importantes de serem analisados, a década de 1930 quando se inicia a Guerra Civil na Espanha e as turbulências que aconteciam na Europa com o nazismo pilotado por Adolf Hitler e o fascismo de Mussolini (Itália) e do generalíssimo Franco, na Espanha. Se os leitores não se situam nesse tempo-espaço, naquela época e o que se passava na Europa em termos de mudanças políticas e sociais, não entenderá a obra.

  John Donne - outro crítico literário e escritor - conceituou: "Nunca procures saber por quem os sinos dobram. Eles dobram por ti". É um axioma verdadeiro e de grande amplitude para dizer que o livro de Hemingway, escrito num momento em que o escritor já tinha crédito junto ao seu público, pode ser traduzido como um marco na luta contra o fascismo, por sinal vencedor da Guerra Civil Espanhola na vida real, o que levou Franco a comandar a Espanha com mão-de-ferro por longos anos até início da década de 1970, em narrativa que destaca com firmeza a atuação de grupos guerrilheiros neste combate numa guerra entre irmãos e que resultou no massacre de milhares de espanhóis.

Parece inacreditável que Hemingway tenha escrito um livro de quase 700 páginas para tratar de um episódio sem grande atrativo literário aparente, a destruição de uma ponte. No entanto, o autor consegue contextualizar todo o ambiente da guerra nas montanhas de Segóvia e vai oferecendo ao leitor nas conversas do "inglês" com os nativos guerrilheiros, seus aliados acampados numa caverna, as atrocidades cometidas pelo fascismo, a luta no combate aos falangistas, um caso de amor entre o "inglês" e uma espanhola guerrilheira sobrevivente de um atentado ferroviário, as armas, a comida, as condições de luta, a psicologia, a resistência, traições, perseverança e a crença num mundo melhor adiante. Enfim, consegue por tudo junto na descrição de um episódio em que poderia economizar muitos diálogos produzindo algo de menor densidade.

  A meu ver, o livro em determinadas passagens se torna enfadonho, pesadão, e como diria Pound o uso da linguagem tem que ser melhor medida dizendo-se algo (e tudo o que se deseja expor) com a economia de palavras o que pouparia a paciência dos leitores e o tornaria mais aceitável. Pound se refere a essa economia das palavras e seu encaixa mais em textos poéticos enquanto Hemingway escreve um ensaio romanceado ou algo que se assemelha a um romance histórico de época e cria uma quantidade enorme de diálogos usando os personagens da guerrilha montanhesa, com uma profundidade de detalhes sintomáticos de quem conhece a matéria (guerra, guerrilha, armas, explosivos, etc) e vai predendo os seus leitores até o final quando a missão é cumprida.

  Portanto, há quem possa achar esse detalhamento não um enfado e sim algo criativo e admirável.
  A linguagem usada pelo autor é a coloquial, textos leves como as pessoas conversam entre si, às vezes de uma rudeza atroz, mas próprias de quem vivia nessa situação lutando numa guerra, pessoas amedrontadas e vigilantes, permanentemente, ao mesmo tempo sonhando com uma vida melhor, adiante, após o fim da guerra. Também, o autor sem querer (querendo) aponta momentos da cultura da Espanha, o modo de vida do seu povo, as crenças, o amor à causa pela liberdade, a confiança, enfim, algo que somente um autor que possuía essa vivência seria capaz de traduzir para o grande público especialmente o norte-americano para quem mais escrevia.

  Confesso que a parte romanceada do livro não se agradou. Achei muito rápido o amor do "inglês" pela nativa Maria e vice-versa distante de algo que fosse, de fato, apaixonante ou aos olhos dos leitores que lhes parecesse assim, e a literatura está repleta de episódios romanceados bem mais atraentes, vide Turgueniev, Tolstoi e outros, e há uma repetição enorme de citações entre esses dois personagens (juras de amor e casamento) que não são bem colocada, que não emocionam a quem ler. Minha opinião, no entanto, representa um ponto-de-vista e pode ser (como certeza) que alguns leitores não entendem que seja como disse e adorem a parte romanceada.

  Convenceu-me a narrativa mais relacionada a guerrilha em si, os atos, o comportamento dos homens, a rudeza, o desamor à vida ou amor à uma causa acima de tudo, o conhecimento que o autor tem de armas, explosivos, detonadores e outros, o que torna a obra atraente no seu conjunto. 

  O livro, em si, é também um grito de liberdade e se diz que Hemingway não ganhou o Nobel de Literatura com ele por sua visão ideológica bem posta na obra, só conquistando essa láurea, na década de 1950, com o "O Velho e o Mar".

  Quem acompanha a trajetória desse autor norte-americano percebe o que Pound enaltece no seu "ABC da Literatura" que um escritor, a medida do tempo, vai amadurecendo e se tornando um craque no uso da linguagem, usando um conteúdo mais refinado, mais bem elaborado, e Hemingway, o qual começou no jornalismo como correspondente de guerra e depois como contista ganha crédito com os seus leitores com esse marco que é "Por Quem os Sinos Dobram". 

  Se os sinos dobram por ti ou para qualquer pessoa, na expressão de Donne, os leitores podem escolher onde dobrarão (os seus) ou se engajarem numa causa ideológica confiante nos sons dos carrilhões. Um despertar.