Gertrudes e seu irmão, ambos norte-americanos, transformaram a casa da escritora num centro de cultura informal para tertúlias entre artistas e escritores, na Rue de Fleurs, proximidades do Jardim de Luxemburgo, que também funcionava como uma espécie de galeria de arte. Criou o epíteto Geração Perdida (Lost Generation) para definir esses autores que se estabelecaram em Paris entre o fim da I Guerra Mundial até 1945 e atuavam desvinculados da cultural francesa. Gertrude morreu primeiro que Alice e ambas estão sepultadas no cemitério Père Lechaise, em Paris, donde nunca mais sairam salvo para passeios na própria Europa.
Em "Gertrude Stein A Autobiografia de Alice B. Toklas" (Editora L&PM série Clássico Modernos, tradução de Milton Person, 251 páginas, 219, R$40,00 nos portais da internet) a amante de Gertrude Stein - copista e também escritora - narra em primeira pessoa essa trajetória, focando mais na Gertrude como mecena das artes e também escritora do que da vida pessoal de ambas, a qual não opina e deixa o julgamento para os leitores, uma vez que o fulcro da obra é o mecenato e o trabalho literário de Stein.
Toklas é detalhista ao narrar os diálogos e as amizadres do casal com o mundo das artes, as conversas com os artistas e escritores das quais ela também participou da maioria delas e todo o seu empenho em expandir essas ações para os Estados Unidos, país emergente e que teve papéis decisivos na I e II Guerra Mundiais, com dólar valorizado o que permitia que os norte-americanos tivessem uma vida relativamente folgada em Paris.
A narrativa de Toklas foi concluida em 1933 e narra o periodo que vai de 1903 até esta época com episódios envolvendo os artista, a compra de artes em galerias e diretamente dos próprios artistas, os encontros e jantares que realizaram na Rue de Fleurs, as paixões, desavenças, posturas de cada pessoa, os gênios, os comportamentos, e vai descrevendo no meio de tudo isso a forma de se vestirem, a moda, o que bebiam, comiam, quais os temas mais relevantes da sociedade mundial, a literatura, enfim, toda uma miscelânia de assuntos que iam da vida pessoal dos artistas e suas mulheres (e/ou amantes) até os desentendimentos entre eles.
Não é um livro para amadores. Para lê-lo os leitores precisam ter conhecimentos básicos da arte visual e da literatura, assim como de geopolítica, porque Toklas vai citando nomes que não são familiares a muitos leitores, desde Matisse, Marcelle Braque, Josette Gris, Eve Picasso, Bridget Gibb, Hadley e Pauline Hemingway e assim por dianmte.
Trata dos temas com naturalidade e cita centenas de personalidades de maneira dispretenciosa, sem qualquer tipo de esnobismo e erudição, revelando apenas o que passava em sua casa e em alguns ateliês de Paris.
É consensual nos dias atuais que Gertrude ajudou a difundir e valorizar a obra de Picasso, de quem era amigo e teve inúmeros encontros; assim como teria ajudado Hemingway, escritor de notável talento, porém de comportamento irascível. Hemingway recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1954 quando Stein já havia falecido e num dos seus livros intitulado "Paris é uma Festa" descreve alguns encontros que teve na 27 Rue de Fleurs, que frequentava com assiduidade, e na livraria de Sylvia Beach.
Veja o que fiz sobre Picasso, num dos diálogos. "Um dia Picasso chegou trazendo com ele, apoiado em seu ombro, um rapaz magro e elegante. É Jean, anunciou Pablo, Jean Cocteau e estamos de partida para a Itália. Picasso tinha se entusiasmado com a possibilidade de fazer a cenografia de um balé russo, cuja música seria de Satie e o libreto de Jean Cocteau. Todo mundo estava na guerra (I Guerra Mundial) e a vida em Montparnasse não era muito alegre. Em Monterouge (bairro onde morava Picasso), mesmo com uma empregada fiel não tinha grande animação e ele precisava mudar de ares. Ficou radiante com a possibilidade de ir a Roma. Nos despedimos e cada um tomou seu rumo".
A quem interessa, pois a autobiografia de Toklas, tão hermética e intimista de um grupo de pessoas exiladas por conta própria a viver em Paris?
Sim. Muitas dessas pessoas que estavam começando nas artes e na literatura com o decorrer dos anos se tornaram famosas, ganhadores de status internacional no mundo Ocidental, cobiçados pelo Louvre e pela Academia Sueca de Literatura (Nobel) e suas obras passaram a valer milhões de euros (nas artes plásticas) e levadas ao cinema e a TV como o Grande Catsby, a critica do sonho americano, de Fitszerald; e "Por Quem os Sinos Dobram", de Hemingway, só para citar algumas.
Os estudiosos da história da arte moderna e da literatura têm na obra de Alice B. Tolkas um manancial enorme de informações, dos bastidores desse mundo intimista que são valiosos para se entender e aprofundar no comportamento dessas pessoas, de como viviam e trabalhavam e como muitos dos quadros foram surgindo.
Por posto é famoso o retrato de Stein pintado por Picasso que emoldura a capa da autobigrafia, hoje, valendo uma fortuna incalculável, e como ele foi executado na Rue de Fleurs. Assim como a autora revela, nos primórdios de sua morada com Stein, como revisou as provas do livro "Three Lives" e como começou a datilografar "Te Making of Americans" numa máquina portátil francesa de má qualidade substituida por uma Smith Premier.
Sempre é bom citar para os leitores que até o final do século XIX e inicio do século XX os escritores escreviam seus livros em cadernos, manualmente, alguns escrevendo a lápis (como Fernando Pessoa) e outros a caneta tinteiro e isso se modifica com o advento das máquinas de datilografia, nos EUA a Remington em especial (1873) e as editoras passaram a exigir dos autores que os originais fossem enviados para publicações datilografados. Gertrude Stein escrevia a mão e coube a Toklas datilografar seus textos (alguns com 500/600 páginas), o que era um trabalho demorado.
A "Autobiografia de Alice B. Tolkas" contém um manancial rico de informações que, além de servir como manual para estudar as artes modernas - cubismo, futurismo, etc - pode gerar novos filhotes em livros, e infinitas teses acadêmicas.