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Rosa de Lima

ROSA DE LIMA COMENTA LIVRO “O CORCUNDA DE NOTRE DAME”, DE VICTOR HUGO

Um dos mais famosos livros no gênero romance histórico da humanidade
02/12/2022 às 07:48
  
Victor Hugo foi romancista, poeta, dramaturgo, ensaísta, estadista e ativista pelos direitos humanos com firme atuação política no século XIX, na França. Sua polêmica obra "Les Misérables" levou-o ao exílio por longos anos, mas voltou a Paris que tanto amava e onde faleceu, em 1885, já velhinho, aos 83 anos. Morou na praça de Vosges, no Marrais, onde hoje funciona um museu com seu nome. Seu funeral entre Champs Élysée e o Panthéon é considerado, até hoje, o que reuniu mais gente na França, mais de 2 milhões de pessoas. Nem a seleção de futebol quando conquistou o título de campeã do mundo, em 1998, conseguiu tal proeza.

   Seu romance "O Corcunda de Notre-Dame" (Editora Zahar, tradução Jorge Bastos, 6ª reimpressão, 2015, ilustrações de Gustave Brion 1824/77, capa Rafael Nobre, projeto gráfico Carolina Falcão, 619 páginas, R$58,00 em portais da internet) foi lançado em 1831 com título original "Notre Dame de Paris, 1482" e é apontado como o maior romance histórico do autor e do romantismo francês. Foi e continua sendo um livro extremamente popular e tem roteiros adaptados ao teatro e ao cinema à mancheia.

  O livro - em síntese - a egípcia Esmeralda, numa trama que envolve o arquidiácono Claude Frollo - apaixonado encubado pela cigana; um poeta popular e vagabundo andarilho típico do centro de Paris da época, Pierre Gringoine, com quem a cigana se casa por sobrevivência; o capitão da guarda real Plobeu Châteupares - a quem Esmeralda nutria uma paixão desesperadora ao salvá-la de um linchamento; personagens do Prebostado (o supremo tribunal jurídico que julgava sumariamente os contestadores e determinava a condenação à forca na praça de Grèves; Jehan, o irmão mal caráter do arquidiácono; Gudele, a mãe da cigana; representantes da burguesia, o povo esfarrapado, fidalgos, a igreja católica inquisitora e outros tantos, num caldo de cultura da Paris do século XV, ainda uma cidade amuralhada e época em que a igreja católica tinha muito poder e era sócia da monarquia.

  Se alguém se refugiasse numa igreja - como foi o caso do corcunda - a Polícia não poderia invadir o templo para resgatá-la. Victor Hugo que vivera no século XIX e era monarquista convicto depois, mais maduro e experiente na política, convertido a republicanista anticlerical, ambienta sua história na França do século XV, mais precisamente no ano de 1482, reinado de Luís XI (1461/1483) onde não ocorreram muitas mudanças no regime monárquico e persistiam os poderes autocrático e clerical. Isto é: a força. Contestou ia parar na força em Grèves, hoje, Place do Hôtel de Ville (praça da Prefeitura).

  O escritor descreve a Paris medieval e seu submundo com uma maestria encantadora e não entendia seu livro apenas como um romance histórico pura e simplesmente. Em nota que redigiu para a 8ª edição, em 1832, diz que "provavelmente esses capítulos recuperados apresentarão pouco interesse para as pessoas que, judiciosamente, só buscaram em 'O Corcunda de Notre Dame', o drama, o romance. Mas outros leitores talvez não achem inútil estudar o raciocínio estético e filosófico escondido no livro, e apreciem lendo-o, descobrir sob o romance algo além do romance, seguindo, que nos perdoem a expressão um tanto ambiciosa, a concepção histórica e a intenção do artista dentro da criação, como se faz com o poeta". 

  O autor, portanto, via o seu trabalho além de um romance simplesmente, com a poesia e a filosofia entrelaçadas, o amor pela sabedoria e a dimensão ontológica de Paris naquele ano de 1482 bem postas na obra. Situa, noutros textos que escreveu sobre o romance, já remetendo a realidade citadina ao tempo de sua existência (século XIX) a atos que eram praticados na cidade como derrubar a capela de Vincennes e o temor de um desabar sob o vendo dos vitrais da Sainte-Chapelle, sinais de descaso ao patrimônio havia revelado no romance noutros sítios. 

  Portanto, quem lê esta obra victorina deve ter o olhar ampliado para esses pontos, para o social, a poesia, a contestação ao regime reinante, enfim uma visão mais abrangente. E é o que merece, pois de fato em suas páginas estão a ambientação urbana, a plebe, os imigrantes vivendo a própria sorte e um estado com a forca pronta e ensebada para pendurar os considerados fora da lei em mãos de carrascos impiedosos. 

  E Vitor Hugo tinha razão quando profetizou, em 1832, que outros leitores poderiam estudar sua obra diante vários ângulo, o que se tornou uma realidade uma vez que o "Corcunda de Notre Dame" além de ser pesquisado nas escolas públicas de nível médio e nas universidade tem sido debatido e esmiuçado nas instâncias superiores de doutorado em linguística, psicologia e filosofia. Além de servir de roteiro e temas para peças de teatro, filmes (até infantil da Disney), audiovisuais, artes plásticas e outros.

  Em "O Corcunda de Notre Dame" o autor situa como era Paris no século XV dividida em três cidades totalmente distintas e separadas, "tendo cada uma delas uma fisionomia própria, com funções, costumes, moda, privilégios e história particulares: a cité, a Universidade, a cidade". E é na cité, que ocupava a ilha, a área mais antiga, "a menor e a mãe das outras, apertada entre elas" onde se situava a catedral de Notre Dame que ambienta o romance. É lá que Quasímodo, uma criança que nasceu com deformações no rosto e no corpo, é abandonado pela família e descoberto por freiras pudicas e supersticiosas (seria um macaco o que viam? perguntou uma delas a outra) sendo acolhido pelo arquidiácono – visto com um bruxo - como um filho de Deus.

  O personagem cresce entre as paredes góticas da catedral naquela imensidão interior, sem aventurar-se a percorrer as ruas da sombria Paris e se torna sineiro. Os sinos representavam seu mundo, os toques lhe traziam prazer, embora não houvesse esboço de alegria em seu gesto ao badalá-los, uma vez que era surdo ou quase isso. No entorno do templo viviam os descamisados, os poetas da praça, a população discriminada e a cigana que ganhava a vida dançando em frente da igreja. Frollo vê Esmeralda como uma tentação à carne, coisa do demônio, e ordena que Quasímodo a sequestre.

  Já maduro, Quasímodo é escolhido num festival de bufos como rei. O sineiro acaba se apaixonando pela dançarina, que é resgatada por um agente da guarda real, numa manifestação.

  O autor produz um drama dos mais intricados com essa deusa da rua cujo único dote que possuía - além  de sua beleza escultural - era uma cabra (Djali) dançante e falante (quase profética) ser desejada pelo arquidiácono, pelo sineiro e pelo capitão em paixões não correspondidas; enquanto ela, igualmente se apaixona pelo capitão em amor inconcebível uma vez que o militar já estava a casar (como posteriormente se casou) com uma jovem fidalga (Flor-de-Lis).

  Tudo isso posto numa Paris que vivia sob permanentes protestos da turba do povaréu abandonado e que morava acantonado na cité infra muros e não tinha oportunidades para sobreviver com dignidade, salvo como escravos ou servos. 

  Se sentindo rejeitado, o arquidiácono organiza um encontro do capitão com Esmeralda e comete um premeditado assassinato com um punhal ferindo-o de morte. O capitão, no entanto, não morre. Mas, a bailarina é acusada do assassinato. O que significava dizer que iria para a forca. É torturada pela força inquisitora num borzeguim de ferro e confessa o crime. Quasímodo percebe a injustiça e consegue levá-la para dentro da igreja, onde estaria segura devido à existência de uma lei de abrigo. No entanto, quando seus amigos (os esfarrapados, insuflados pelo poeta Gringoire) decidem invadir o edifício e leva-la embora, Esmeralda é capturada novamente pela guarda

  Quasímodo - a encarnação do diabo - assiste à execução pública de Esmeralda no topo da catedral, na Place de Grèves. Furioso, o sineiro joga o arquidiácono - a encarnação do bruxo - do telhado da catedral e nunca mais é visto na região.

  O autor contempla os leitores com as seguintes informações finais na obra: Luis XI morreu em agosto de 1843; o poeta Pierre Gringoire - na real do romance o marido de Esmeralda - consegue salvar a cabra e, posteriormente faz sucesso com tragédias (poéticas); Phobeus teve igualmente fim trágico: casou-se (com Flor de Lys); o corpo de Esmeralda foi retirado do patíbulo e levado para o repositório de Montfaucon; o esqueleto de Quasímodo também foi encontrado em Montfaucon ao lado do de Esmeralda; para Frollo o autor deu o seguinte fim depois de cair do alto de Notre Dame e morrer: "Presumiu-se que o corpo fora destroçado ao se retirar a alma mais ou menos como os macacos quebram a casca para comer o coco. Por esta razão o arquidiácono não foi enterrado em terra santa".

  Este romance de Victor Hugo tem traços antecessores do realismo fantástico e deve ser lido com muita atenção.