Colunistas / Literatura
Rosa de Lima

HISTÓRIA DO CERCO DE LISBOA, POR JOSÉ SARAMAGO

Romance de extraordinária criatividade do autor português Nobel de Literatura
12/02/2022 às 19:26
    Até um tema que já foi remastigado por cronistas portugueses e europeus a fundo, posto de cabeça para baixo e revisto a miúdo com profundidade, pois, muito do que se sabe além da carta "De Expugnatione Lyxbonensi", do mítico personagem Osberno, e outra carta do cruzado Arnulfo, sobre a retomada do poder em Portugal pelos lusitanos com apoio dos cruzados que participavam da Segunda Cruzada, da igreja católica e de mercenários, a reconquista de Lisboa, último bastião mouro no país, José Saramago conseguiu inovar com a "História do Cerco de Lisboa" (Companhia das Letras, 386 páginas, R$40,00, 2ª edição, 2017) produzindo um romance encantador.

  Não se trata como se há de pensar que seja um romance histórico com narrativa assemelhada aos fatos próprios desse gênero literário com as devidas adaptações, mas, de um romance na expressão pura da palavra, um caso de amor entre o revisor de uma editora (Raimundo Silva) e a chefe dos revisores (Maria Sara), característico de um possível romance havido no cerco entre Moguine e Orange, porém, com vida própria, narrativa criativa e crítica à literatura sobre o cerco, numa dimensão extraordinária, tanto no plano da criatividade como no da história, de um escritor que domina a palavra como quer e demonstra conhecimento da história de Portugal.

  O cerco de Lisboa, na real, durou entre 1º de junho a 25 de outubro de 1147 com as tropas de Afonso Henriques apoiadas pelos cruzados, literalmente, cercaram os mouros encastelados na Fortaleza de São Jorge. Osberno é um personagem histórico associado ao cerco. O rei português recebeu a ajuda decisiva de um grande contingente de cruzados do norte da Europa que participavam da Segunda Cruzada, com a promessa de que, após a conquista, os cruzados poderiam saquear o que quisessem, em especial, possíveis tesouros turcos.

  A carta de Osborne começa com uma fórmula abreviada de saudação: Osb. de Baldr. R. salutem. As ambiguidades do latim medieval fazem com que seja difícil saber quem foi o autor e quem o destinatário. A carta é atribuída a Osb. de Baldr. e é dirigida a R.; porém também é possível que tenha sido escrita por R. e dirigida a Osb.. Este Osb. é justamente Osberno (ou Osberto) de Bawdsey (Suffolk, na Inglaterra). R. é identificado por alguns como um presbítero inglês chamado Raul. A qualidade do latim da carta e as referências eruditas religiosas indicam que o autor era um religioso culto.

A narração associada a Osberno, de imenso valor histórico, faz parte do Códice 470 da Biblioteca do colégio do Corpo de Cristo, da Universidade de Cambridge e está adaptada para português moderno em várias edições. Pois; pois, José Saramago ao criar o personagem Raimundo Silva, revisor que estava com a missão de revistar um livro sobre o cerco de Lisboa, este, propositadamente coloca um NÃO no contexto da história, este programado erro mudando a versão ao cerco. Isto é, o NÃO significa que as tropas do rei Afonso Henriques não tiveram esse apoio que se descreve na história sobre o cerco.

A partir desse momento, quando Raimundo Silva entrega os originais revistos à editora e publica o livro, mesmo antes da descoberta do erro, considerado uma heresia, um absurdo, Silva começa a carregar um sentimento de culpa e teme por sua sorte e seu emprego na editora. Erro descoberto, escândalo montado no mundo literário, Silva é chamado às falas na editoria e conhece a recém contratada Maria Sara, chefe dos revisores, durona, severa, exigente, que o reprime, mas, também o acolhe em seu coração.

Nesse meio termo, entre desejos mútuos do futuro casal de apaixonados, Saramago justifica o NÃO posto por Silva revelando vários aspectos relacionados ao cerco, o papel de dois bispos, Pedro Pitões (arcebispo do Porto) e João Peculiar (arcebispo de Braga), a liderança frágil de dom Afonso Henriques e seu discurso perante os cruzados, que teria sido feito pelo bispo Pitões, a revolta dos lusitanos exigindo do futuro rei igualdade de tratamento no saque a Lisboa e soldos em dia, bem remunerados, todo um caldo de cultura que o autor português vai colocando à luz da história e dos seus leitores.

Tudo isso é posto na carapuça de Raimundo Silva que era um revisor intelectualizado, extremamente competente, e Maria Sara, vendo-o justiçar o NÃO da história, convence-o a reescrever a história do Cerco de Lisboa, tarefa que o revisor já vinha fazendo a sós, em sua modesta morada nos arredores da Lisboa velha, onde aconteceu o cerco, e, agora, com esse incentivo ele põe a mão na massa e termina o livro, a sua versão sobre o cerco.

Entre o escrito de um e outro capítulo finais, telefonemas são trocados entre os dois, rosas são entregues de presente a Sara e inicia-se o romance, bem posto, acalorado, na casa do revisor, ele que era tímido e apavorado, se soltando nos lençóis da cama e tendo um encontro caloroso com a ardente Sara, divorciada e que morava na casa da cunhada.

Saramago é milimétrico até nos finalmente, tanto nos lençóis e travesseiros da cama de Silva, com êxito, o revisor honrando a fama do português que não falha quando chamado a responsabilidade; quando na missão de concluir o seu livro, a sua versão sobre o Carco de Lisboa.

Trama mais original sobre um cerco histórico e quase impossível, o mais importante da história de Portugal, quando, de fato, nasceu a Nação portuguesa e um líder é aclamado rei, o baixote e valente Afonso Henriques, dominado intelectualmente por dois bispos de batina considerados sábios no seu tempo, igualmente valentes em armas e no domínio das palavras em nome de Deus e do papa Eugênio III, responsável por organizar a Segunda Cruzada contra os infiéis, E Saramago, com sua maestria no uso das palavras, no flutuar de sua pena, nos oferece um romance de qualidade e que prende o leitor do início ao fim.

O autor português não busca artifícios nem criar roteiros de surpresas para o leitor. Ao engatar o namoro do apavorado e precavido Silva com a livre e despojada Maria Sara poderia por óbices, devaneios, desistência, mas, o que se vê é o êxito do fogo ardente da paixão de ambos, uma união pra valer com força e determinação, tudo o que o leitor gosta e espera.