O livro de Antonio Robespierre está à venda no portal da Quarteto e na LDM
O professor Cid Teixeira dizia em suas locuções radiofônicas que a história de uma cidade, de um estado, de um país, são contadas pelos pedacinhos da vida livros escritos por centenas de pessoas - necessariamente não escritores profissionais - que vão dando suas contribuições aqui e acolá com relatos de suas vidas, das vidas de suas localidades, de momentos de determinadas épocas, enfim, de relatos pessoais que também fazem parte da história.
O empresário Antonio Robespierre, ex-vereador de Salvador, aproveitou os dias de folga diante da pandemia do coronavirus e brinda-nos com "O que dizem as cartas" (Editora Quarteto, Salvador, Bahia, 140 páginas, R$39,00) relato de parte de sua vida e da cidade do Salvador, com passagens por Itaparica e Rio de Janeiro, com base em lembranças de correspondências que recebeu durante parte de sua vida quando era solteiro, anos 1960/1970, e que traz a público com revelações de passagens da capital baiana, o veraneio em Itapuã, os carnavais do Bahiano de Tênis e do Bloco do Barão, as peripécias estudantis no segundo grau e na Universidade Federal da Bahia - é formado em engenharia pela Politécnica - as paqueras, as aventuras, as viagens, a mesada dos pais, um pouco de cada momento.
Só o fato de escrever um livro tendo como tema 'cartas' já representa uma boa iniciativa, uma boa ideia e lembrança, pois nos dias atuais -ou pelo menos desde final da década de 1990 - as cartas entraram em desuso e, hoje, praticamente, ninguém mais as utiliza com as facilidades que a internet proporciona. Mas, as cartas já foram um veículo de comunicação importantíssimo em todo mundo e veja que a narrativa inicial da história do Brasil nasce com a carta de Pero Vaz de Caminha ao rei dom Manoel de Portugal, o venturoso, falando da descoberta do novo mundo.
Robespierre lembra em pinceladas históricas o papel e a importância das cartas desde Caminha, o registro no século XVII da nomeação de João Cavalheiro Cardoso como "correio" da Colônia portuguesa no Brasil, o país tropical sendo o segundo no mundo a utilizar o selo, em 1843, o uso de pombos correios desde a época da antiga Grécia, nas guerras mundiais, o correio postal por cavalos e embarcações de todos os tipos, e a evolução até o século XX com a instituição do Correios e Telégrafos por Getúlio Vargas, em 1930. Lembra também do telex e da criação do correio eletrônico que data de 1971 até os dias atuais.
O livro, em si, tem um valor literário limitado - até porque Robespierre faz a ressalva de que não é um escriba profissional - mas representa uma contribuição valiosa desses pedacinhos da vida por sua simplicidade, leveza, ineditismo, e por revelar momentos da vida da cidade do Salvador graças aos cuidados e mania que tem o autor de guardar no seu baú de lembranças as correspondências e outras peças sentimentais bem conservadas.
Assim, mostra nas primeiras páginas uma carta data de 5 de março de 1969 - há mais de 50 anos - escrita para ele por José Cordeiro, amigo de jornada infanto-juvenil que havia passado no Colégio Naval, Angra dos Reis. Outra carta, de uma correspondente norte-americana Debbie Rement, data de junho de 1967; e uma carta bem sugestiva enviada por seu pai em 8 de fevereiro de 1971, quando Robespierre estava no Rio de Janeiro, de férias: "Segue o cheque de CR$260,00 conforme lhe prometi. Peça ao Marcelo para descontá-lo e pague a ele o que você já retirou. Estamos aguardando seu regresso no dia 13 deste. Espero que tenha aproveitado bem o passeio. Aqui, todos bem, mandando-lhe lembranças. Aceite o afetuoso abraço do seu pai Theodoro Santos".
Nos dias atuais uma mensagem dessa natureza de pai para filho em carta deixou de existir. A roda do mundo girou é possível o pai falar com o filho pelo iPhone vendo sua imagem, dialogando pessoalmente. Mas, em compensação perde esse glamour, desfaz-se a documentação escrita, o registro documental e que tem um valor inestimável. Para Robespierre - imaginamos nós - essas cartas que guarda em seu baú são um tesouro. A internet, hoje, nos aproxima em imagens e perda em documentação.
Robespierre narra as delícias que era o verão em Salvador na década de 1970, as serestas e as paqueras na Lagoa do Abaeté, o Bar do Galo, o violão de Castro, a presença de Vinicius de Moraes na capital baiana e o ouriço que isso representou, os carnavais da Praça Castro Alves e do Bahiano de Tênis, o Jacu, os Arabianos e como conheceu sua esposa Virginia, filha do saudoso jornalista Jorge Calmon, mãe dos seus filhos, o amor eterno depois de muitas paqueras e namoros em épocas que Salvador era uma cidade da paz e se transitava pelas ruas, pelas praças, pela noite, pelas madrugadas, sem medo de ser feliz.
O livro "O que dizem as cartas" traz toda essa magia nas entrelinhas e são um retrato de uma época tão próxima e ao mesmo tempo tão distante. O giro que o mundo vem dando nos últimos anos, com as novas tecnologias sepultando não só as cartas, mas os cartões postais, o telex, o fax, o álbum de retratos da família, os cds, os dvds, a máquina fotográfica e outros, tem sido de uma rapidez impressionante o que não acontecia até os anos 1970. A vida como ela se apresenta com meios de comunicação mais instantâneos e ao mesmo tempo mais frios.
Ler, pois, o livro de Robespierre é lembrar de um passado recente e histórico bem interessante e muitos daqueles que lerem esse comentário certamente vão se lembrar de cartas que algum dia escreveram e receberam. Os mais jovens vão se perguntar, o que é isso? O que são cartas?
É o giro da vida.