Crônicas de época e de momentos biográficos fazem parte da literatura brasileira há muitas décadas. É só lembrar, entre outros, textos de Machado de Assis, João do Rio, Lima Barreto, Paulo Mendes Campos, Pedro Nava e o Baú de Ossos - médico e escritor - com o resgata dos seus antepassados; Meus tempos de criança. Rostand Paraíso; A Criança no Meu Tempo, de Ian McEwan; A Casa do Meu Avo, de Carlos Lacerda; Jaboatão dos Meus Avós, Van-hoeven Ferreira Veloso; Casa da Vovó, de Marcelo Godoy; e dezenas, centenas de tantos outros títulos.
Chegou às minhas mãos e leitura o livro do jornalista Tasso Franco, "No meu Tempo de Menino e o último Apito do Trem" 1945-1957 (Editora Ojuobá, 165 páginas, R$35,00 à venda pelo site Amazon.com agosto de 2020) que narra extamente a trajetória de vida do autor na cidade onde nasceu no interior na Bahia, as lembranças da primeira professora, do dentista que foi pela primeira vez com o pai, das brincadeiras, da filarmônica local, das brigas de travesseiros, dos álbuns de fotos ainda em p&b, as lições que os avós deixam para os netos e assim por diante.
É um livro com tema universal. Toda criança em qualquer localidade onde nasceu passou por essas experiências e apertos, de enfretar o dentista, de fazer exame de admissão (na época não havia Enen), de experimentar a primeira calça comprida, de aprender a nadar por conta prórpia escondido dos pais, de caçar passarinhos, da chegada do primeiro avião na cidade, do catecismo, das procissões, de todas essas narrativas comuns a todas as crianças que seja no Brasil, na Itália, na China, no Canadá ou onde for. É impossível chegar a adolescência sem essas experiências próprias da idade infantil e que sempre ficam marcadas para o resto da vida em qualquer pessoa.
É curioso como ao chegarmos a idade da velhice ou da maturidade termos lembranças bem nitidas da época da infância e não guardarmos com tanta nitidez o que se passou com 45 ou 50 anos de idade, numa fase de amadurecimento. O jornalista Tasso Franco revela-nos o legado que os país e os avós deixam para os filhos e netos como eles guardam esses ensinamentos em suas mentes e as épocas em que cada qual vive, distintas entre si, porém interligadas pelo afeto, pelos ensinamentos e lições de cada familia.
O livro é muito interessante. Escrito numa linguagem bem acessível a qualquer leitor (a) são 36 crônicas de uma leveza admirável e que traz a quem ler suas lembranças infantis, remexe com o pensamento das pessoas, as analogias, as coincidências, momentos que são muito tipicos de toda criança fazendo com que os leitores se sintam presentes.
O fato do jornalista ter acrescentando ao titulo "o último apito do trem" é porque na sua cidade o trem da antiga Leste Brasileiro marcou a sua vida infantil e até da cidade, equipamento que chegou em Serrinha no final do século XIX, e foi o divisor de águas entre uma comunidade que vivia da pecuária e da agricultura, da terra, da cultura bovina, e de repente teve à sua disposição um meio de transporte que encurtou a distância para a capital Salvador, trouxe à cidade a engenharia, a medicina, a organização sindical, a hotelaria, entre outros, e entrou em decadência nos anos 1960/1970 com o modelo rodoviário adotado pelo Brasil.
"No Meu Tempo de Menino" periodo em que o jornalista viveu em Serrinha (1945/1957) o trem era - sem redundância - a locomotiva do progresso, a modernidade, a revolução das comunicações, e tudo isso ele acompanhou e depois viu o trem morrer daí a expressão "o último apito", crônica das melhores do livro.
Mas, há outras crônicas relacionadas a influência da igreja católica junto as familias e as crianças numa época em que predominava praticamente sozinha na comunidade, as festas populares sempre ligadas a tradição católica - Semana Santa, São João, São Pedro, São José, Senhora Sant'Anna - a padroeira da cidade - e o Natal, a visão de Deus e do Diabo, Perguntas que ficaram sem resposta - quem nasceu primeiro: o ovo ou a galinha? - os heróis dos gibis, os baleiros, os alfaiates, a virada do ano e outros.
Comenta o autor: "Não dá para fazer comparativos entre o meu tempo de menino e os dias atuais. O mundo mudou tanto nesses 75 anos que seria impossível tal comparativo. Nasci numa cidade que não tinha luz elétrica, não possuia água encanada, não existia hospital, o fogão era alimentado a lenha e só conheci uma televisão quando já tinha 18 anos de idade. Diria, no entanto, que a satisfação de ser criança naquela época é idêntica a atual".
O livro, inclusive, é um incentivo a todos aqueles que têm histórias para contar e poderão fazê-lo. São esses retalhos da vida, esses pedacinhos da vida, que formam a história geral de uma comunidade, de um estado e de um país.