Colunistas / Literatura
Rosa de Lima

ROSA DE LIMA RECOMENDA O LIVRO DO DESASSOSSEGO DE FERNANDO PESSOA

Edição revista e ampliada da Companhia das Letras, 2019
22/09/2020 às 11:58
  Entender o poeta Fernando Pessoa quem há de. Só mesmo os especialistas, os estudiosos de sua complexa obra poética são capazes disso. Ao menos, após longos anos de estudos profundos se aproximarem do seu pensamento, um enigma. Cada poema seu requer uma análise detalhada de cada estrofe, de cada linha, pois, nega a si mesmo, se reveste de dezenas de heterônimos e deixa os leitores atordoados. Mas também é um imenso prazer ler Pessoa, passear por seus poemas, em versos ou na prosa ao modelo Walt Whitman o que requer atenção redobrada, exercícios de interpretações para a mente.

  Imaginem, então, ler o seu mais intricado trabalho realizado por um artesão das letras, um texto a cada dia ou noite no seu apartamento na Rua dos Dourados, Lisboa, milimetricamente pensado, porém, sem estabelecer uma sequência lógica, sem pés nem cabeça; e com pés e cabeça. Assim é o "Livro do Desassossego", em parte ou no todo, até porque não há uma ordem cronológica de sua produção e tanto pode ser lido de trás da frente ou vice versa, que dá no mesmo. 

  Recentemente li o Desassossego edição revista e ampliada (Companhia das Letras, 542 páginas, R$37,00, 2019, organizado por Richard Zenith) com interpretação de Murilo Dantas, um exercício demorado, atencioso em interpretações. 

  - Por que é bela a arte? Porque é inútil. Por que é feia a vida? Porque é toda fins e propósitos e intenções. A beleza das ruinas? O não servirem já para nada. A doçura do passado? O recordá-lo, porque recordá-lo é torná-lo presente, e ele nem o é, nem o pode ser - o absurdo meu amor, o absurdo. E eu digo isso - por que escrevo eu este livro? Porque o reconheço imperfeito. Sonhado seria a perfeição; escrito, imperfeiçoa-se; por isso o escrevo. E, sobretudo, porque defendo a inutilidade, o absurdo. Eu escrevo este livro para mentir a mim próprio, para trair a minha própria teoria.

  Por esse trecho vocês podem ver o quanto Pessoa é intricado e, propositadamente, se faz incompreensível ou põe as pessoas para pensarem de maneira diferenciada, para refletir. O Livro do Desassossego é pontuado por centenas de variantes deixadas pelo autor nas margens e nas entrelinhas como propostas de alterações, aproveitáveis para uma revisão que nunca fez. Morreu antes de fazê-lo. Trabalho que foi realizado por seus estudiosos, pela família, sobrinhas e parentes, pois, não chegou a se casar com Ofélia, seu amor e ao mesmo tempo nem sabia se era seu amor, e não teve filhos. Teria desprezado Ofélia para se "casar" com a literatura.

  O livro seria uma autobiografia. É. Uma autobiografia diferenciada das que conhecemos em literatura, pois, fala mais do seu eu, da sua alma, da percepção que tinha das coisas e pessoas de Lisboa, desde o seu patrão onde trabalhava como escriturário, "guardador de livros", aos transeuntes que andavam pelo Chiado, pela Baixa e outras ruas da capital portuguesa, do Tejo, da chuva, da noite, dos elétricos (bondes) com especulações filosófica, observações sociólogos, credos (acredita em Deus, mas, o questionava, não praticava nenhuma religião nem falava em santos), política,  máximas, aforismo, credos estéticos e uma preocupação permanente com a ordem existencial e a morte. 

  Haja complexidade. Diz: - Minha alma é uma orquestra oculta; não sei que instrumentos tangem e rangem, cordas e harpas, timbales e tambores, dentro de mim. Só me conheço como sinfonia... Tudo se tornou insuportável, exceto a vida. O escritório, a casa, as ruas - o contrário até se o tivesse me sobrestado e oprime; só o conjunto me alivia. Sim, qualquer coisa de tudo isso é bastante para me consolar. Um raio de sol que entra eternamente no escritório morto; um pregão atirado que sobe rápido até à janela do meu quarto; a existência de gente; o haver clima e mudança dos tempos, a espantosa objetividade do mundo..."

  É uma autobiografia de alguém que nunca teve. O livro ganhou várias formas, fragmentos, escrito por diversas personalidades (seu heterônimos, Bernardo Soares e outrsO0, que, em si, era o próprio Pessoa e o escritor sequer sabia o que faria com os textos e apenas doze trechos foram publicados quando o poeta estava vivo de um total de 450 que elaborou e reuniu antes de sua morte. Que legado fantástico deixou para a posteridade. Não os teria publicado em livro ou nas revistas literárias da época, simplesmente, porque Pessoa sabia da grande dimensão de sua obra, porém, possivelmente dava tempo ao tempo, ao amadurecimento, mas, morreu jovem e não chegou a ver e sentir a repercussão do Desassossego. 

  Várias edições foram publicadas desde 1982, no Brasil pela Ática, depois a Nova Presença, 1990 edição aumentada, depois a Relógio d'Água e agora a edição completa e ampliada da Companhia das Letras. Uma floresta de textos com variantes e anotação à margem feitas pelo poeta. Arrumar tudo isso tem sido um trabalho permanente dos pesquisadores, ainda inacabado, porque podem surgir edições críticas e/ou comentadas, estudos complementares e assim por diante.

  Tomemos a pena do poeta emprestado: - O poeta nasceu depois de ele morrer, porque foi depois de ele morrer que nasceu a apreciação do poeta. Agir, eis a inteligência verdadeira. Serei o que quiser. Mas tenho que querer o que for. O êxito está em ter êxito, e não em ter condições de êxito. Condições de palácio em qualquer terra larga, mas onde está o palácio se não o fizeram ali? O meu orgulho lapidado por cegos e a minha desilusão posada por mendigos.

  Pessoa contestava a si mesmo, frequente, a sua existência, procurava saber quem ele era. - Agir é repousar. Todos os problemas são insolúveis. A essência de haver um problema é não haver uma solução. Procurar um fato significa não haver um fato. Pensar é não saber existir.

  Amava o rio Tejo: - Passo horas, às vezes, no Terreiro do Paço, à beira do rio, meditando em vão. A minha impaciência constantemente me quer arrancar deste sossego, e a minha inércia constantemente me detém nele...O cais, a tarde, a maresia entram todos, e entram juntos, na composição de minha angústia.

   Por fim, para o comentário não ficar muito grande, diz o poeta: - Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente.