O livro que mudou os rumos de poesia na era moderna com os versos livres e o fim do culto ao modelo europeu na América
O escritor Walt Whitman (1819/1892) é considerado o criador do verso sem rima, sem métrica, a prosa poética. Há quem entenda que o verso livre é mais fácil de ser feito. Ledo engano. Até porque, esse autor norte-americano considerado um dos grandes da literatura mundial, falava das coisas cotidianas, dos progressos técnicos do século XIX em seu país, da vida das cidades e do campo, do operário, do produtor rural, e criava uma nova linguagem e interpretação da poesia longe dos temas europeus que cultuava o amor, as epopeias medievais com seus castelos, reis, rainhas e cortes emplumadas.
Whithman poetizava a base, o povo, o marceneiro, o soldado, o lavrador, o pioneiro, o rio, o imigrante, o desbravador, o ferreiro, o maquinista, as montanhas e assim por diante.
Então, em nossa opinião, o que parece fácil, escrever sobre o cotidiano, se torna mais difícil poetizar. A sua obra "Folhas de Relva" com a publicação inicial de 12 poemas sem título, em 1855, e reeditado 9 vezes até 1891, edições modificadas com novos textos, torna-se o livro mais importante da poesia livre no mundo ocidental.
Somente em 1926 seriam recolhidos em edição completa vários poemas póstumos 'desprezados' pelo autor não se sabe se propositadamente por considerá-los menos importantes ou por estar doente e não ter disposição física para isso.
O comentário que faço é sobre a edição completa (Editora Martin Claret, 562 páginas, R$39,00, compra pela internet, tradução de Luciano Alves Meira, 2018) com um posfácio do autor intitulado "Um olhar retrospectivo sobre as estradas viajadas".
Walt diz: "Se não tivesse me postado perante aqueles poemas com a cabeça descoberta, totalmente consciente de sua grandeza colossal e beleza de forma e espírito, não poderia ter escrito Folhas de Relva".
O autor, pois, tem plena consciência de que seus poemas iriam modificar a literatura vigente nos Estados Unidos e mexeria em demais círculos literários do Ocidente.
"O Mundo Antigo teve os poemas dos mitos, das ficções, do feudalismo, das conquistas, das castas, das guerras dinásticas e de personagens e façanhas esplendidas e excepcionais que foram grandes; o Novo Mundo precisa dos poemas das realidades e da ciência, e da media democrática e da equidade básica, que hão de ser maiores", conceitua.
Whitman viveu numa época de grandes transformações nos Estados Unidos com a revolução industrial das máquinas a vapor, das ferrovias, do crescimento das cidades, da guerra que Seceção entre o Exército da União (Norte) comandado pelo presidente Abraham Lincoln e o Exército do General Lee, dos separatistas e racistas estados do Sul, que resultou em milhares de mortes, a vitória do Norte mais industrializado e da unidade nacional, o início da luta contra o racismo institucionalizado.
O poeta não foi aos campos de batalha como combatente, estava com 36 anos de idade quando estourou a guerra, em 1861, mas serviu como enfermeiro durante muito tempo (12 anos) no atendimento a feridos e no apoio psicológico, em Washington, e soube interpretar com sua poética poema muitos momentos da atrocidade que foi a Guerra da Seceção que durou 5 anos, entre 1861 e 1865.
Em "Retorno dos Heróis" canta: América fecunda - hoje/ Tu estás toda formada em nascimentos e alegria/ Tu vergas com a riqueza, tua riqueza te envolve com papel de embrulho/Tua risada é alta com a ânsia de grandes possessões/ Uma miríade de vidas interligadas, como vinhas entrelaçadas, prende todo o seu vasto domínio/ Como se um enorme navio fretado, nas bordas das águas trouxesses para o porto".
Fernando Pessoa o admirava e se inspirava na sua maneira de escrever e foi para os leitores da língua portuguesa o primeiro elo. Dizia Pessoa: "Não sou seu discípulo, não sou teu amigo, não sou teu cantor/ Tu sabes que eu sou tu e estás contente com isso!
Lembrar que Pessoa veio ao mundo entre 1888 e 1935 três a morte de Whitman, mas, como tinha formação inglesa em Durban, na África do Sul, e dominava a língua inglesa é provável que a partir desse conhecimento tenha se aproximado da obra de Whitman que era rara na Europa. No Brasil, então, nem se falava.
Hoje, os críticos de literatura reconhecem que "Folhas de Relva" é um trabalho dos mais importantes precursores da poesia moderna e um dos poucos autores a libertar-se na América dos modelos europeus. De início sofreu bastante com a crítica nos Estados Unidos, mas, tinha consciência de que esse movimento aconteceria, precisava resistir, se afirmar, não ceder, incorporar novos poemas aos 12 iniciais, e foi exatamente isso que fez e foi conseguindo, aos poucos, elogios e reconhecimento.
Whitman era um rebelde no causa no sentido puro da palavra, operário gráfico, aventureiro em minas, escritor consciente de sua imensa responsabilidade com a difusão de uma nova forma de fazer poesia, um apaixonado pelos Estados Unidos, pela América, de um conhecimento profundo do seu país, de Norte a Sul; de Leste a Oeste em "Folhas" não esquece de nenhum desses cantinhos, dos pioneiros, do seu adorável Missouri-Mississipi, dos grandes lagos, das montanhas e das cidades que cresciam naquele meados do século XIX inchadas, crescidas de gente diante da revolução industrial que trouxe o homem do campo para as cidades em busca de uma melhor qualidade de vida.
E do movimento imigrante Sul/Norte de escravos, de negros dos campos de algodão que se dirigiram para centros industrializados e democráticos, em especial Chicago.
Encerro o comentário colocando aos leitores trecho de um dos seus poemas mais famosos: Ó capitão! meu capitão!/ finda é a terrível jornada/ Vencida cada tormenta, a busca foi laureada/ O porto é ali, os sinos ouvi, exulta o povo inteiro,/ Com o olhar na quilha estanque do vaso ousado e austero/ Más ó coração, coração!/ O sangue mancha o navio, / No convés meu capitão/ Vai caído, morto e frio.
Mais de 100 anos depois de sua morte Walt Whitman é mais lido do que nunca, admirado, endeusado.