Livro que traduz o sentimento de uma época em que o ódio vencia o amor e a lei era das balas
Sinhazinha foi reeditado pela Assembleia Ccultural
Foto: BJÁ
O programa editorial da Assembleia Legislativa - o mais importante da Bahia - comandado pelo jornalista Paulo Bina, reeditou a obra "Sinhazinha" (EGBA, ALBA CULTURAL, 167 páginas, 2019), de Afrânio Peixoto. Trata-se de um romance escrito pelo chapadista de Lencóis durante três meses do ano de 1928, em Paris, e que retrata o ódio secular dos coronéis da Chapada Diamantina entre si e como viviam as suas famílias no final do século passado, muitas delas enclausuradas em suas fazendas.
Época em que o fio do bigode valia pela palavra dada e pelo respeito. E, a lei, embora existente no papel, o que predominava eram os poderes econômico e de fogo das famílias, de quem possuia mais jagunços, balas e mosquetões. Vivia-se também o sopro da primeira revolução industrial na Europa, nascente na Bahia com as ferrovias e as máquinas a vapor, mas, que ainda durariam anos para chegar aos sertões abastecidos em seus povoados e fazendas por mascates e suas tropas de mulas e burros que vendiam as novidades da capital Salvador e da França, em perfumes, jóias e tecidos, e também em gêneros alimentícios e drogarias.
Afrânio Peixoto, natural de Lençóis e formado em medicina pela Faculdade da Bahia, em 1897, mudou-se para o Rio de Janeiro, em 1902, aprovado em concurso para a cátedra de Medicina Legal. Tinha na veia as letras e sua primeira obra "Rosa Mística", data de 1900. Conhecia por vivência o ambiente da narrativa de "Sinhazinha", de como residiam aquelas famílias em luta onde os coronéis ainda determinavam os amores das filhas para casamentos, onde "roubar" uma donzela de família rica adversária por paixão nascedoura numa quermese da festa da padroeira era uma possibilidade real. E, se assim fosse, que o coronel adversário fosse buscar a sua filha usando a força e as balas ou consentisse.
"Sinhazinha" é uma personagem que se insere nesse contexto. A filha mais nova de um coronel prometida em desagravo a uma conquista antiga, na luta entre Mouras e Canguçus, a presença de um tropeiro que, na passagem pela fazenda dos Moura encantara-se com aquele menina donzela e recatada, de olhar fulminante e lábios sensuais tementes ao pecado.
Afrânio coloca sua história no papel com uma linguagem própria da região e se utiliza de um dos seus personagens, um capataz chamado Tomé para ser o intermediário da narrativa sobre o ódio entre as famílias e o desejo do tropeiro pela sinhazinha filha prometida do coronel João Batista na 'guerra' entres os Moura, os Canguçus e os Medrados. É uma obra ficcional com vivências do real em que o ódio se sobrepõe ao amor, linguagem que lembra um Guimarães Rosa com as peculiaridades, sotaques e tiradas do sertanejo da chapada e não do matuto das Gerais.
Tomé adverte o mascate Juliano: "Seu moço, desde que o mundo é mundo, e há homens no mundo, que honra de mulher é sagrada. É só o que há de sagrado. Pai e mãe a gente deixa; filho é ingrato; a gente peca contra Deus; deixa a terra; esquece o passado, que importa a vida? Tudo é assim sem maior quizila.(...) Dois crimes não se perdoa no sertão: roubo de cavalo e falta de respeito a mulher honesta".
Afrânio é primoroso na colocação das palavras, na montagem das frases e vai prendendo o leitor a medida que a narrativa segue adiante. É daqueles livros que dá ansiedade aos leitores esperançosos que aconteçam um final feliz mesmo sabendo que os dizeres de Tomé não se revestem de uma profecia, um sobrenatural que pode ou não acontecer, e sim de uma realidade em que viviam essas familias sempre na mira dos rifles e dos fuzis, das balas e dos punhais sendo os senhores da lei e da ordem.
Imagina-se, pois, o suspense quando um homem estranho a esse ambiente, um mascate bonito e desafornado, integra a trama como um dos personagens principáis, é bem visto e bem vindo pelo coronel e sua esposa, mais até da esposa do que do patriarca mandão, ela uma Canguçu roubada que fora e eternamente apaixonada pelo coronel, embora reconhecesse a existência do ódio entre as familias, temor irreconciliavel. Torce-se, o tempo todo para que a "Sinhazinha" se case com o mascate e sejam felizes para sempre, em paz, longe dessas rusgas.
O autor, no entanto, é sábio ao colocar o mascate, aos olhos dos leitores, sempre numa posição de perigo, de alerta máximo, como se dissesse assim: Não mexa com os sentimentos da "Sinhazinha" senão você morre. Ao mesmo tempo ele põe o personagem em posição desafiadora, quase à beira de um precipício, a ponto de parecer incentivá-lo a provar do mal do amor, uma vez que a donzela já tinha pretendente.
E ele prova um beijo ardente quase casual da "Sinhazinha" algo consentido. Daí nasce um pedido de casamento não aceito, enigmático, porque a jovem não lhe dá resposta e prende-se à mudez e a sua alcova. O autor mostra, então, a desilusão do mascate em não ser correspondido pela jovem. Há um desdém proposital por parte dela imposto pelo código de honra.
Ele, então, parte para outras jornadas com sua tropa de burros. Mas, o coronel determina que o capataz o traga vivo ou morto para ele honrar aquele beijo sem consentimento. E assim o faz Tomé. O diálogo do retorno é genial.
Ao perseguir o mascate e alcançá-lo, diz Tomé: - Moço, a gente não se deve meter com as coisas dos outros. "Seu" Coronel há de ter razão; alguma coisa vosmincê fez para o homem, brabo como uma suçuarana me dizer daquele jeito () traga-o vivo ou morto () O mal pode ser remediado senão Sinhá dona Emília não interviria, como um anjo da paz..."
Ele volta e se casa com a "Sinhazinha" em grande festa bancada pelo coronel para que assim honrasse o atrevimento do beijo em sua filha já prometida, há anos, desde o nascer, a outro varão. E na noite de núpcias "Sinhazinha" usa um punhal para dar sequência a honra do ódio.
Ou não! O autor deixa que os leitores interpretem ao modo que quiserem: ela pôs fim a própria vida para preservar o ódio de honra estabelecido pelo pai; ela guardou o punhal e foi feliz para sempre com o mascate.