Os três livros narram as lutas e a vida no médio São Francisco controlada pelos antigos coronéis
A trilogia escrita por Wilson Lins sobre o coronelismo nas barrancas e interior do Médio São Francisco é um retrato fiel de como se dava o mandonismo nessa região da Bahia na República Velha e parte do governo Vargas, primórdios do Brasil republicano onde mais valia a valentia e as balas dos fuzis do que as leis.
"Os Cabras do Coronel", "O Reduto" e "Remanso da Valentia" (Editados pela Assembleia Legislativa da Bahia, coleção Mestres da Literatura Baiana, EGBA) são livros admiráveis, bem escritos por quem domina a linguagem daquela região, uso de termos preciosos do baú regional ("costumava cavaquear; um baile briga de jegue"; Deus quando tarda vem no meio do caminho), adjetivações que dão água na boca de tão belas, o que faz com que o leitor se sinta como se estivesse participando das conversas entre os jagunços, a gente do povo, os comerciantes, as sinhás, os coronéis, os chefes de tropa e os ribeirinhos que viviam e ainda hoje vivem do rio.
Quem lê a trilogia fica com uma imensa vontade de conhecer as localidades evocadas nos livros - especialmente Pilão Arcado, Remanso e Sento Sé - e também as localidades do interior, as fazendas, os povoados, a gente deste sertão que ainda hoje vive com alguns hábitos que remetem àquela época e até mesmo ao século XIX.
Wilson Lins é um perfeccionista da linguagem. Só ele, originário da região, filho do coronel Franklin Lins de Albuquerque, estudioso do local, politico, garimpeiro das palavras, poderia nos ter brindado com obras tão pitorescas. E, em se tratando de uma região da Bahia, pouco conhecida dos habitantes dos grandes centros urbanos, a reedição promovida pela Assembleia tem um valor inestimável.
Os livros têm uma sequência, na preferencial, começando pelo "Os Cabras do Coronel" - uma espécie de prelúdio para que o leitor se ambiente diante dos personagens, a fuga de um cabra cansado da vida do cangaço (Domingos Amarra Couro) do coronel "Vermelhão" passível de se integrar às forças de outro legendário coronel, Torquato Tebas, movido pela vontade da libertação, mas, 'preso" na paixão de uma mulher-dama (Doninha Calango); segue para "O Reduto" - a ambientação dos locais campestres, as familias, as caracterísitcas politicas e sociais, a trégua na guerra dos coronéis, por causa das andanças de Franco, antagonista de Tebas, enquanto luta contra Prestes; para depois chegar ao epílogo em "Remanso da Valentia", a batalha final que não tem fim mas é reveladora do coronelismo assentado em base de balas e lutas corpo-a-corpo na base do punhal, das lutas e dos conchavos no mundo político da capital da Bahia e da capital do Brasil, na época do Rio de Janeiro, envolendo, ainda, uma ação contra o couminsmo.
Mas, os livros podem ser lidos ao contrário. Diria que dá no mesmo desde que concluidas as leituras no seu conjunto, o que torna até mais intreressante, cinematográfico, exigindo-se uma maior atenção e compreensão dos fatos narrados, um grande quebra-cabeça.
Cada ação desenrola uma subsequente, nada é interminável e definitivo. Um ar de vingança perdura em todas as narrativas, desde os passos de Amarra Couro e a perseguição de João de Longe, um 'cabra', um 'cabecilha' que se sentira traido no amor, a um sentimento de fidelidade aos chefes que faz com que os homens se amarrem a terra e tenham uma vida dedicada ao bandoleirisomo, à aventura e a incerteza, mas, sem se arredar desse espaço como se fosse o único e bom para sobrevier.
É claro que o leitor pode ler somente um livro da trilogia - afinal de contas eles foram publicados um a cada época, a partir de 1964 - e já se sentir confortado e satisfeito com as narrativas de Lins. Diria, no entanto, que o bom é ler o conjunto da obra, compará-los, 'jordeando' (palavra usada autor) as suas entranhas para que tenha uma ideia mais precisa e completa onde quis chegar e legar à literatura com sua obra ficcional.
De uma ficção que beira ao realismo pois os elementos literários não são fantasiosos ou expressos no 'realismo fantástico' de autores latino-americanos ou das pinturas de Dali, mas, homens de carne e osso, típicos do sertão, - o canoeiro, o padre, o comerciante avarento, a mulher-dama, o cabra, o juiz de Direito, etc - ainda hoje presenciados nas feiras livres dessas cidades e nos gabinetes acarpetados.
E Lins, com sua mágica pena vai descrevendo-os, vai inserindo-os no campo, nas lutas, na vida das pequenas cidades e dos povoados, na paisagem do rio que é o motor econômico da região com seus ventos, suas lendas, suas assombrações e suas advinhações.
Há um personagem, Pedro Velho, o qual põe sabedoria e assento no Porto Izabel da Beirada como advinho de infortúnios, de mortes, de traições, e conversa com seus amigos fazendo revelações que lhes são passadas por 'Dindinha', personagem do outro mundo que inunda a mente dos ribeirinhos com suas desgraças.
Só isso já é o suficiente para deixar o leitor satisfeito com o que lê, com o que vê, uma espécie de romance popular cordelesco com tintas mais profundas, com descrições mais emocionantes e que colocam as figuras - do coronel ao jagunço; das sinhás aos aguadeiros - presos ao chão da terra do Velho Chico, cada qual vivendo em conforto ou nas esteiras, no bem do bom da comida ou de punhados de paçoca, mas, todos sobrevivendo num mesmo chão onde as tragédias se avolumam a cada cheia do Rio São Francisco.
É como se as águas do rio fossem e voltassem, nas cheias e nas secas, e aquele povo amando a sua terra, lutando por ela, com uma fidelidade a toda prova aos coronéis que dominavam a região.
Mas, ainda assim, há uma hierarquia, uma lei fora da lei do juiz de Direito, a lei do respeito a cada personagem, ao cabo de turma, ao cabecilha, ao lider da tropa; ao remador eficiente; ao padre, ao doutor dos males do corpo, cada qual em seu espaço, em harmonia, mas, ao mesmo tempo, todos na mira das balas de um mosquetão.
É isso, em sintese o que Wilson Lins nos lega nesses três romances de real grandeza.