Rosa de Lima comenta a obra de Fernando Vita "O Avião de Noé", Editora Geração
Quando a gente 'devora' um livro num final de semana é porque o texto tem atrativos que nos leva a tal prazer. Nossa atenção fica concentrada na história, quer ficção ou ensaio, que só relaxa quando a última frase é lida e a pessoa para, pensa, volta às anotações que fez em algumas páginas e diz assim: maravilha, muito bom este livro.
Em "O Avião de Noé" (Editora Geração, 239 páginas) o jornalista Fernando Vita nos brinda com um desses prazeres e embora termina seu livro com um "The End" - como nos filmes do Glória - cinema que faz parte do enredo da cidade imaginária de Todavia (na real, a gloriosa Santo Antonio de Jesus), deixa o leitor a refletir sobre as imagnes de Noé no céus, assim como foram as películas exibidas no cine Glória e tantos outros lugares e tendas dessa Macondo do Recôncavo que o autor as coloca na fantástica aventura ficcional de Noé e seu ajudante-mor Ferramenta, uma espécie de fiel Sancho Pança do aventureiro de Todavia.
Se eu já era fã de Fernando Vita, por amizade e por entender que é um dos melhores escritores que surgiram nos últimos anos na Bahia, ele que durante anos se dedicou ao jornalismo e só há alguns lustros tem se debruçado pela literatura, ganhamos todos nós, os leitores e a Bahia, pois, algo de novo surge nesse cenário e que pode ganhar o mundo como o avião de Noé.
A obra é uma sequência do seu "Cartas Anônimas" - o primeiro texto ficcional sobre Todavia e sua gente, missivas sorrateiras postas embaixo de portas e que são comuns a várias comunidades mundo à fora - agora, na sequência, expondo novos personagens todavianos e a engenhosa aventura de Noé, um lunático, tal qual muitos outros que existem nas cidades do planeta, o qual de consertador de liquidificadores, ventiladores, rádios de válvulas e panelas de pressão, intentou e o fez um helicóptero caseiro a ser acionado com hélices de jepnipapeiro, convidou todas as autoridades locais para o voo inaugural e o pássaro alado tipo beija-flor do chão não saiu, do terreiro de sua casa não alçou voo e só fez zoada e poeira, para correria das galinhas e perus, escomungos do padre e desapontamento das autoridades.
Até chegar a Noé, Vita nos oferece outros personagens circulantes na obra descrevendo a sua Todavia e aqueles que compõem a comunidade, a partir da explosão de uma fabriqueta clandestina de fogos de artificio que matou 33 todavianos, fato que se registra com alguma frequência em terras do Recôncavo, a dual ficção-realidade, mostrando a eterna impunidade que acontece nesses episódios, o povo servindo como bucha de canhão e empresários que vivem acobertados pelas autoridades como foi o caso de Bigorrilho Fogueteiro, amigo do padre, do prefeito, do juiz, benemérito e soltador de foguetes para a procissão da santa de Todavia, Rita dos Impossíveis.
Vita mescla esses acontecimentos reais com a pena da ficção e complementa o cenário de sua obra com fatos da história do Brasil, desde a Copa do Mundo de 1958 vencida pelo Brasil na Suécia, que os brasis só ouviram narrativas em chiados dos rádios de válvulas, e o pipoco da fábrica de fogos que se confunde com a alegria (o pipoco do gol) e a glória de Belini ao erguer a Jules Rumet, o que dá ao livro um cenário local (Todavia), ao mesmo tempo Brasil (a Copa, a renúncia de Jânio Quadros, outros fatos narados pela revista O Cruzeiro dos anos 1950/1960, a glória de Maria Esther Bueno em Wembley, a moda, a vida brasis, etc) e universal (os personagens todavianos do monsenhor Galvani; ao juiz Efraim; de Celestino Cava Covas a Teles Cotó; a visionária Corina, o panfletário Amabílio Opobre e João Galocha) muitos dos quais, idênticos, ao que encontramos na literatura universal.
Noé é o cavaleiro errante qual Dom Quixote de la Mancha, sonhador e persistente visionário; e Ferramenta, seu ajudante, encarnando a figura de Sancho Pança, mais realista, apertador de parafusos e arruelas, mas fiel escudeiro de Noé até o final de sua aventura, nunca duvidando do mestre talvez por necessidade de sobrevivência.
O livro é uma viagem. Desde as primeiras páginas quando o leitor é convidado a embarcar na avenetura do desmiolado Noé (se é que podemos chamar assim alguém com tantas idéias na cabeça, atuando com admiração e prazer naquilo que acredita) e fica interessado em saber o que vai acontecer com o personagem, se terá sucesso ou não em sua empreitada.
Em suspense, o leitor torce (assim creio eu) para que tudo dê certo, ainda que fique com a pulga atrás da orelha, em expectativa, tendo dúvidas se um helicóptero feito num fundo de quintal por um curioso ferramenteiro, de fato, fosse voar feito um beija-flor.
Mas, isso faz parte da boa narrativa. Prender a atenção do leitor e supreendê-lo com novas imagens e mensagens, os recheios de uma obra, o que Vita faz muito bem, não só deixando que o leitor também possa embarcar no voo inicial de Noé, no helicóptero, mas, adiconando a vida Todaviana outros intentos como a fabricação do uisque Becosa, que iria fazer frente aos escoseses com a boa água da Fonte de Santinho; a criação da Sociedade Anonima Todavia de Passaros em Geral (Satopege) que ensinava pássaros a cantar e foi à bancarrota ao falhar na tentativa de fazer com que o pássaro de estimação do sargente Bezerra, um assum preto, em além de dobrar o canto ainda viver fora da gaiola; e a reviravolta de Noé, o qual mesmo sem conseguiur levar a efeito seu helicóptero, não desiste e fabrica um avião.
O livro contém narrativas hilariantes no contexto da obra de coisas que só acontecem em Todava, como o menino que nasceu sem cu; um sujeito chamado Braguinha e um inglês os quais montam um moinho com dinheiro do erário e araruta vira mingau; a "Tocha" jornal de brinquedo, fala sério dos impossíveis de Todavia; Amabilio esculhamba a invenção de Noé e monsenhor vê panfleto a cagar no maro; presidente doidão (Jânio Quadros), bambolê, banlom, sacy e sandália, eis as novidades; tudo isso dentro de uma sequência lógica da narrativa uma vez que Todavia é a terra dos espertos, dos gênios da invencionice e Noé, este sim, seu principal personagem e suas máquinas voadoras.
O livro não é só uma viagem. São múltiplas viagens e o leitor embarca em todas as aventuras com prazer na leitura, linguagem fácil, termos da vida popular, o que faz com que cheguem ao final querendo mais.