O tempo de uma nova comunidade que se apresenta no mundo e no Brasil na visão do filósofo italiano Giórgio Agamben
De antemão confesso aos meus leitores que a leitura dos textos do filósofo italiano Giorgio Agamben não é coisa fácil. A erudição está espalhada em dezenas, centenas de citações, e sua linguagem é hermética, própria dos filósofos, de reflexão apurada para os leitores e de dificil entendimento. Sua obra, no Brasil, ademais, está sendo publicada por diversas editoras, o que se torna ainda mais complicado achar os livros deste autor, com traduções de diferentes co-tradutores.
Agamben, no entanto, se tornou uma leitura obrigatória para quem deseja entender ou pelo menos tomar conhecimento preliminar para análises subsequentes, o que está acontecendo no mundo com as comunidades que se revoltam nos centros urbanos, desde a rebelião dos jovens chineses, em 1989, a recente primavera árabe, a guerra na Síria, os movimentos no Chile e na América Latina, a paralisação no coração do centro financeiro dos Estados Unidos com os black blocs e no Brasil, desde junho do ano passado.
Agamben tem uma série de livros já publicados no Brasil desde 2002, pioneiramente com a UFMG e depois com a coleção da Boitempo que editou quatro dos seis tomos da tetralogia "Homo Sacer"; e agora também chega ao país "Opus Dei", arqueologia do oficio, o exercício sacerdotal de Jesus Cristo.
O livro deste autor que mais chama a atenção na atualidade é, exatamente, "A Comunidade que Vem", (Editora Autêntica, 103 páginas, R$35,00) justo porque analisa (ou reflete) sobre as relações entre a essência e a existência, algo de novo que chega no meio da coletividade como aconteceram com as manifestações de ruas no Brasil, desde junho último, com a ausência de conteúdos reivindicatórios sistematizados.
Lançado na Itália em 1990, Agamben fala sobre aquilo que, até recentemente, não parecia ser um modo politico de pensar das comunidades, com arguições não fundamentados em ideias de identidade e universalidade, "gritos" com rejeições às instituições, partidos politicos e sindicatos, o que o filósofo chama de "singularidades quaisquer".
Segundo Agamben, o "ser que vem é o ser qualquer", que se queira, ou no limite por qual-se-queira, na ótica do seu tradutor. É complexo. Profundo. E o autor pergunta: "De onde vem as singularidades quaisquer, qual é o seu reino?". Busca a origem em São Tomás de Aquino e as questões sobre o limbo e as carências da visão de Deus. E comenta ou descreve a arqueologia desse novo pensamento, essa nova ordem, o sentido da ética, a verdade, a conquista do bem, o transcendente.
Cita o autor: "Não a indiferença da natureza comum com respeito às singularidades, mas a indiferença do comum e do próprio, do gênero e da espécie, da essência e do acidente que constitui o qualquer. Qualquer é a coisa com todas as suas propriedades, nenhuma das quais constitui, porém, diferença".
Cláudio Oliveira, professor do Departamento de Filosofia da UFF, lembra como o filósofo aponta para a ausência de conteúdos determinados como paradigma do seu pensamento político. "A politica da singularidade qualquer, isto é, de um ser cuja comunidade não é medida por nenhuma condição de pertencimento", é a base de interpretação de Agamben.
Essa ausência de donos, de pertencimento, se refletiu nas ruas do Brasil, recentemente, com os slogans "sem partidos", "sem bandeiras", "sem lideranças" uma luta por conquistas de determinadas coisas de responsabilidade do Estado (como foram o Passe Libre no transporte público e a redução das tarifas) mas não uma luta pela conquista do Estado. O filósofo classifica esses movimentos como a luta entre "Estado e não estado". Ou seja, ninguém está iteressado, em essência, por controlar ou assumir o poder.
No Brasil, o PT distorceu essa visão filosófica real para adotar e difundir a tese de que as manifestações seriam (ou foram) um grito de alerta porque o "país está bem e os jovens querem mais".
Pegos de surpresa, exatamente porque a "Comunidade que Vem" não tem datas pré-estabelecidas, e o homem sacer é aquele que pode ser morto sem que se configure um assassino, típico caso da morte do jovem Jean Charles no metrô de Londres, pela Policia Inglesa, o qual teria sido confundido com um terrorista, o governo criou esse eufemismo saído do marketing político para tentar abafar a perda de popularidade da presidente Dilma.
O livro é muito profundo. Tenho lido muitos comentários de jornalistas, políticos, sociólogos sobre esses "gritos" nas ruas mas nada me impressionou mais e até me convenceu ou abriu meus olhos, para o que comenta o filósofo italiano, com essa visão mais abrangente, mais universal, não se limitando apenas ao que se passa no Brasil, mas, em todo mundo.
"Pois o fato novo da politica que vem é que ela não será mais a luta pela conquista ou pelo controle do Estado, mas a luta entre o Estado e o não-Estado (a humanidade), disfunção irremediável entre as singularidades quaisquer e a organização estatal. Isso não tem nada a ver com a simples reivindicação do social contra o Estado, que, nos anos recentes, encontrou muitas vezes expressão nos movimentos de contestação", reza Agamben.
Estamos, portanto, de uma nova ordem, uma nova era, um novo pensamento a predominar doravante nas manifestações populares.