Colunistas / Literatura
Rosa de Lima

LIVRO DE JOÃO JOSÉ REIS "A MORTE É UMA FESTA" PARA ENTENDER SALVADOR

A construção do Campo Santo e a "Cemiterada"
01/11/2011 às 15:00
Foto: BJÁ
João José Reis é historiador da Bahia e seu livro é fantástico sobre costumes baianos
  Os ritos fúnebres e a revolta popular quando da construção do Cemitério do Campo Santo, em Salvador, no século XIX, estão bem retratados no livro do historiador João José Reis em "A Morte é uma Festa", editado pela Companhia das Letras, 354 páginas, 2009, e que revela como a população da capital da Bahia se indignava com os acontecimentos em sua cidade, ao contrário do que acontece nos dias atuais, onde se constrói uma Arena Fonte Nova a custo de mais de R$1 bilhão  e um metrô fantasma por igual valor e os cidadãos pouco protestam, ou sequer reclamam.
  A "Cemiterada" (destruição do inicial Campo Santo), como ficou conhecida a revolta que aconteceu em 25 de outubro de 1836, dia em que entraria em vigor uma lei proibindo o tradicional costume de enterros de pessoas nas igrejas e concedendo a uma empresa privada o monopólio dos sepultamentos em Salvador, por 30 anos, no Campo Santo, representou, também, uma mudança de hábitos que estava estabelecida na cidade desde a época do seu povoamento pela colonização européia, o sepultamento em igrejas, nas áreas das irmandades religiosas e assim por diante.



  Quando a cidade procurou se igualar aos centros mais desenvolvimentos do Ocidente, tendo como exemplo a Europa, mais precisamente Paris e Roma, e tentou modificar esse hábito, até por questões de saúde pública, a população, insuflada pelas irmandades, as quais tinham ganhos com esses sepultamentos, era um bom negócio, gerador de mão-de-obra circundante, se revoltou e detonou o que se construiu no Campo Grande, até porque não houve transparência alguma na cessão do benefícios que atendia diretamente comerciantes mas ricos da cidade, diante da omissão do estado e município.



  É como acontece nos dias atuais com algumas obras alinhadas em PPP (Parcerias Público Privadas), diante da inércia dos poderes públicos, que diz não ter capacidade de resolver o problema por falta de recursos,  três empreendedores - José Augusto Pereira de Matos, José Antonio de Araújo e Caetano Silvestre da Silva - se associaram com o objetivo de construir e explorar comercialmente um ou dois cemitérios em Salvador, homens de visão e farejo para bons negócios que eram.



  Pereira de Matos, que aparece como cabeça do negócio, segundo o autor, investia no ramo imobiliário e tinha doze casas de aluguel no corredor da Vitória, ele que morava num casarão no Porto da Barra, foi vereador em 1827 e elegeu-se para a Assembleia Provincial. Seu sócio José Antonio de Araújo, herdara do pai a banca de negócios mais próspera de Salvador com fortuna avaliada em 30 mil contos de reis; e Caetano Silvestre da Silva era juiz de Direito da 1ª Vara Cível e provedor dos resíduos e capelas (antigo provedor dos defuntos), morador da Vitória, e com acesso privilegiado a diversos inventários.



  Ou seja, a sopa no mel: dois homens de negócios e um juiz que tinha acesso ao controle dos mortos.



  A idéia do novo cemitério estava contida numa representação enviada a Assembleia  Provincial, que era presidida pelo arcebispo Dom Romualdo de Seixas, e o nome proposto (Cemitério do Campo Santo) remetia a prática de transferência dos mortos para além da fronteira urbana, em modelo que já existia na França, com organização das sepulturas de acordo com as classes sociais, com túmulos e catacumbas para os mais ricos; e covas comuns para os pobres. Aliás, como ainda se vê hoje, no Campo Santo: sepulturas individuais e jazigos de famílias mais nobre e as gavetas para a população de uma forma geral.



  Como o Campo Grande era afastado da cidade (hoje está praticamente no centro antigo) os requerentes também pensaram na mobilidade urbana, muito citada hoje em dia com o metrô para atender a Copa do Mundo na linha Iguatemi-Aeroporto, com coches e carroças para transportar os mortos, algumas mais ricas com panos mortuários, flores e adereços, sendo que a Assembleia Provincial aprovou o projeto com a assinatura do contrato entre a Companhia de Cemitérios da Cidade e o governo da Província em 25 de junho de 1835.



  O fantástico na obra de João José Reis é que para narrar esse movimento de protesto organizado pelas Ordens Terceiras e outras organizações católicas leigas, sobretudo as irmandades religiosas, na descrição da "Cemiterada", ele percorreu todo um caminho de pesquisas e estudos mostrando como aconteciam os sepultamentos em Salvador, as atitudes diante da morte, as formas de bem morrer, os ritos fúnebres domésticos, as missas fúnebres e os advogados divinos, a morte como negócio, e a Lei Provincial 17 que tratou da comercialização da morte até chegar a construção do Campo Santo.



  É um livro exemplar para quem deseja conhecer os costumes de Salvador, de resto extensivo à outras cidades brasileiras, nesse processo civilizatório onde não faltaram pareceres e observações médicas quando a doença deixava de ser um "castigo de Deus para se transformar num mal natural contagioso, talvez epidêmico", onde existiam aqueles que acreditavam num "contagium vivum" (por meio de organismos patológicos) e até arguiam a "teoria dos miasmas" (qualidade má do ar diante da decomposição da matéria orgânica provocavam doenças e a morte).



  O certo é que o projeto do Campo Santo prosperou e resistiu mesmo com a destruição inicial do levante da "Cemiterada", o governo provincial readquiriu o imóvel e o revendeu a Santa Casa de Misericórdia, em 1840, por dez contos de reis, administradora do Campo Santo até os dias atuais, sendo que, somente a parir de 1855, com a epidemia de cólera-morbo o CS começa a operar plenamente.
 
   Para fazer um gesto da "boa política", às demais confrarias o governo cedeu um terreno no morro da Quinta dos Lázaros, onde irmandades e ordens terceiras instalaram seus cemitérios.



   Ainda hoje há essa dicotomia: São Lázaro, o cemitério dos pobres; Campo Grande, o cemitério dos ricos.



   Evidente que a cidade do Salvador cresceu muito, inchou, e existe uma dezenas de cemitérios municipais (para os mais pobres) o Bosque e o Jardim da Saudade para a classe média, o velho cemitério dos Ingleses na Ladeira da Barra, e ainda persistem o Campo Santo e São Lázaro.

  Em igrejas, na atualidade, só por tradição religiosa são sepultados os cardeais na Catedral Basílica da Sé. O último por lá sepultado foi Dom Lucas Moreira Neves