Comentário sobre a obra de José Paulo Cavalcanti Filho
Foto: BJÁ |
|
Fernando Pessoa, uma quase autobiografia, 730 páginas, ed Record |
O livro do pernambucano José Paulo Cavalcanti Filho intitulado "Fernando Pessoa - uma quase autobiografia" é uma preciosidade.
Editado pela Record, 730 páginas, pelo conjunto das informações num único volume, já que a poética de Pessoa está detalhada em diferentes segmentos e nuances por outros autores, é, provavelmente, a obra completa autobiográfica do poeta português (o maior desta língua) mais densa, mais detalhada e informativa.
À pena e aos olhos de Cavalcanti Filho não escaparam os mínimos detalhes, desde o local onde os sinos tocavam (e que lhe serviram de inspiração, lembranças) próximos a uma das casas onde o poeta morou, em Lisboa, no início do século passado; às observações sobre o dono e o caixeiro da tabacaria onde comprava cigarros e charutos, mercê freqüentava com regularidade essa mercearia e escreveu o belíssimo poema Tabacaria:
... Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu/ Estou hoje dividido entre a lealdade que devo/A Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora/E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Pessoa, pois, foi um poeta do cotidiano do seu tempo e versava sobre a rua, a cidade, as musas, sua eterna paixão Ophélia, as lojas, os botequins, a Brazileira, a barbearia, os amigos e tudo um pouco. Antes da morte diz sobre o seu barbeiro predileto: Põe a tua mão sobre o meu cabelo/ Tudo é ilusão/ Sonhar é sabê-lo.
É muito difícil escrever sobre Fernando Pessoa ainda mais quando se tenta abarcar toda sua vida. Cavalcanti Filho consegue fazê-lo com maestria, sem cansar o leitor, sem estabelecer verdades, num trabalho até de peregrinação jornalística.
Ainda que, numa obra tão densa exige-se a leitura como se degustam queijos e vinhos, vagarosamente, apreciando cada frase, relendo páginas, saboreando os poemas postos em ordem cronológica, acompanhando a vida e trajetória literária desde Lisboa a Durban, e vice-versa; em cada passagem de sua existência.
Enigmático como Pessoa, único em sua época lisboeta, só não foi mais difícil para o autor, este e outros que se aventuraram a tal empreitada, porque Pessoa deixou um cabedal enorme de escritos em sua arca, e também muita coisa do que produziu foi publicada em vida.
Além do que, como viveu na época da escrita à mão e depois datilográfica, nos primórdios do rádio (1891/1935) e era cuidadoso em guardar os seus textos, muito do que se sabe se concebe através deles.
E, aí, é claro, existem mil interpretações sobre a obra de Pessoa, mas, à luz do autor pernambucano sabe-se como foi conflituosa sua via na infância, a mãe viúva e depois se mudando para a África, Durban, para acasalar-se em novo amor.
Pessoa encobriu seu manto enigmático pondo sua pena e inteligência a serviço de mais de 100 heterônimos. Entre eles, os mais famosos (Caieiro, Sá Miranda, Accursio Urbano, Humberto Ferreira, Homem das Nuvens, Dr Pancrácio, Quaresma Decifrador, etc ) e até um brasileiro baiano Eduardo Lança, país que tinha apenas temperos esparsos porque achava que não existia literatura.
Lança teria nascido em Salvador, na cabeça de Pessoa, em 15 de setembro de 1875, ao que se supõe inspirado no padre Antônio Vieira que aqui viveu. E, tal à semelhança do autor era órfão, estudou administração no Brasil (como Pessoa fizera na África) e em Lisboa se empregara numa casa comercial (como Pessoa), e teria escrito o livro "Impressões de um viajante em Portugal", "maravilhosamente escrito num estilo belo e verdadeiramente português".
Em 1929 datilografava textos aposentando os lápis e são tantos os seus livros e publicações literárias em português e inglês, das revistas Renascença a Orpheu, os poemas em Alma Errante, a revista A Águia, a revista de arte Athena e inúmeras publicações em jornais, que fazem de Pessoa um poeta para ser lido, relido, revisitado e entendido em diferentes interpretações.
Sou louco e tenho por memória/ Uma longínqua e fiel lembrança/ De qualquer dita transitória/ Que sonhei ter quando criança. Interpreta Diniz da Silva um dos seus heterônimos modernistas que "viveu" em Paris, e escreveu um conjunto de três poemas sob o título "Coletivo da Loucura".
Teria sido Pessoa um louco?
Há quem assim entenda. Aliás, como ainda hoje são interpretações do mundo da poética. E, Pessoa, particularmente, tinha um mundo impenetrável, agora posto com maior clareza no livro de Cavalcanti Filho, o qual teve a precaução de situar como uma "uma quase autobiografia", ainda que assim seja, o mais completo sobre o enigmático autor português.
Não o único, é certo, porém, um livro que engloba um conjunto de fatos sobre a obra de Fernando Pessoa e que merece ser lido com toda atenção. Para quem gosta de Pessoa, quem aprecia sua obra, é um trabalho indispensável à leitura e aos estudos.
Inspirador, inclusive, para quem pretende se aventurar no desdobramento de análise sobre o poeta, sobre Portugal e uma parte da vida Lisboeta.
Tudo quanto penso/Tudo quanto sou/ É um deserto imenso/ onde nem eu estou (1935/Pessoa)- Rosa de Lima, 55 anos, é formada em letras pela UFBA e tem curso de especialização na Universidade de Lisboa