Política

200 ANOS INDEPENDÊNCIA DA BAHIA -5: OS VERDADEIROS HERÓIS DAS LUTAS

Os efeitos da independência da Bahia são sentidos até hoje com a pobreza das comunidades do Recôncavo após 200 anos da independência
Tasso Franco , Salvador | 01/07/2023 às 12:45
Monumento ao caboclo no Campo Grande, representação simbólica da guerra
Foto: BJÁ

   Comemora-se domingo o bicentenário da independência da Bahia do jugo português numa guerra de cerco a Salvador, sem similar na história do Brasil, e que durou 17 meses, praticamente entre janeiro de 1822 a 2 de julho de 1823. Os números de mortos no conflito são incertos estimados no lado brasileiro em 150 a 180; e no lado português dados ainda estão a ser pesquisados. 

   O brigadeiro general Luiz Ignácio Madeira de Mello, o comandante em chefe português, retornou a Lisboa com quase toda sua tropa (incluindo feridos) foi preso por dom João VI, absolvido no governo de dom Miguel e morreu em 1834, aposentado como marechal.

   No lado brasileiro, os militares mais destacados foram o general Pierre (Pedro) Labatut contratado por dom Pedro (ainda príncipe regente) juntamente com José Bonifácio de Andrada e Silva para organizar o que se chamou de Exército Pacificador constituído por escravos libertos, voluntários de cidades do Recôncavo e desertores que viviam na capital e migraram para o interior devido a fome, no combate a Divisão Auxiliadora, de Madeira de Mello, o qual estabeleceu três frentes de combates: a divisão do centro, comandada pelo coronel José Joaquim de Lima e Silva; a divisão da esquerda, comandada pelo ten-coronel José de Barros Falcão e da direita comandada por Felisberto Caldeira.

   O combate mais relevante de todo conflito deu-se em Cabrito/Pirajá, novembro de 1822, primeiro embate entre as forças brasileiras x portuguesas numa guerra clássica em que, a frente brasileira comandada pelo francês Labatut se disse vitoriosa; e a frente comandada por Madeira, idem. 

  Na realidade, não houve um vencedor absoluto. Labatut não conseguiu que seu exército avançasse até Salvador, entrincheirando-se em Pirajá; e Madeira não conseguiu empurrar o Exército Pacificador para o Recôncavo, entrincheirando-se nas colinas de São Caetano e adjacências. E aí permaneceram por muito tempo, com investidas que se deram noutra frente na estrada de Brotas, Itapuã, Pituba e Rio Vermelho, também sem chegar ao centro da capital.

  No decorrer do conflito, em maio de 2023, houve um desentendimento no Exército Pacificador quando Labatut determinou a prisão de Felisberto Caldeira, em Itaparica. A frente comandada por Caldeira se rebelou. Labatut mandou Lima e Silva atacar essa tropa rebelde (por pouco não tem um conflito entre os brasileiros) e este decidiu reuniu o conselho militar, incluindo os batalhões de Pernambuco e da Paraíba. A decisão tomada pelo Conselho foi de prender Labatut (o que aconteceu, o general sendo levado para a cadeia improvisada na Câmara de Maragogipe), soltar Caldeira e entregar o comando do Exército Pacificador a Lima e Silva.

  Tudo isso foi feito até que dom Pedro I já coroado imperador do Brasil em dezembro de 1822 enviasse um novo comandante. O certo é que Lima e Silva reorganizou o exército com um estado maior e duas divisões, ele no comando chefe; e Barros Falcão e Felisberto Caldeira nas divisões. 

  Em seguida aconteceram alguns combates esparsos em terra e mar. A esquerda de Lord Crochane estacionada em Morro de São João não atacou a esquadra do almirante João Félix, em Salvador, porque não tinha forças para isso, deram-lhe alguns pequenos conflitos em Itaparica quando da libertação de Caldeira, dom João VI negociou uma evacuação das tropas portuguesas estacionadas na capital baiana, houve um acordo entre os dois comandantes Lima e Silva e Madeira de Mello, e a evacuação deu-se na madrugada de 2 de julho de 1823.

  Essa é a história real, militar. Um conflito dessa natureza com tanto tempo aconteceram muitas negociações no governo oficial em Salvador, na Câmara dos Vereadores e na Casa do Senado; no governo provisório estabelecido em Cachoeira a partir de 25 de junho de 1822 comandado pelos proprietários de engenhos de açúcar do Recôncavo descendentes de Diogo Álvares e Catarina Paraguaçu - os Albuquerque, os Araújo, os Moniz Barrêto, etc - os comandantes militares, os voluntários, etc, mas não aconteceram lutas nas cidades do Recôncavo salvo uma investida de uma canhoneira no Rio Paraguaçu, em Cachoeira, que bombardeou a cidade e matou um soldado tambor.

  Há muita informação sem confirmação história de conflitos em Cachoeira, Santo Amaro, São Francisco do Conde, Santo Antônio de Jesus, mas Madeira de Mello nunca teve forças para chegar a essas localidades. Tentou ocupar Itaparica, mas não conseguiu. Ficou sempre em Salvador solicitando reforços a Dom João VI, rei que lhe mandou alguma coisa, inclusive a Esquadra comandada por João Félix e dois navios com comidas já no final do conflitos. Armas e munições quase nada.

   OS NEGROS LUTARAM?

  Os negros lutaram na guerra da Independência. Sim. Eles integraram o exército regular de Labatut a maioria dos combatentes pardos e negros. Labatut enviou inclusive uma correspondência a dom Pedro queixando-se que os filhos dos ricos do Recôncavo não se alistavam no exército. 

  O que, aliás, acontece até hoje. Se você analisar a tropa do 29 BC e do BI de Feira de Santana, na atualidade, 99% dos soldados são de pardos e negros. Os filhos dos ricos, das autoridades, dos conselheiros de tribunais, etc, tal como em 1822, no máximo se alistam no NPOR. 

  O Exército Pacificador - segundo dados do Memórias Históricas e Politicas da Bahia, de I. Acciolli e Braz do Amaral era constituído por 10.148 pessoas sendo 7.924 combatentes ativos 1.237 que se encontravam hospitalizados 574 (civis que atuaram como empregados, serventes, etc, com soldo). Desse total a Brigada de Pirajá era a maior com 3280 combatentes, seguido da Brigada de Itapoan 2791, Engenho Novo 138, São Thomé Costa 854 e Maré de Boca do Rio 861. 

A tabela inclui o consumo de carne em arretéis para as 10148 bocas.

  Consta no relatório o Batalhão de Libertos número 9 agregado do Batalhão do Imperador, batalhão da Vila de Penedo, os voluntários atiradores de Armações , os Belona e Mavorte, de Cachoeira, duas companhias formada por gente de Conquista.

  AS MULHERES NA GUERRA

  As mulheres participaram das lutas pela independência. Há dúvidas até na intendência. O relatório do exército publicado por Braz do Amaral não detalha se dos 574 empregados (força da intendência, o consumo de bois era estimado em 60 todos os dias) havia mulheres e o que faziam. 

  Há o registro do alistamento da sd Medeiros (Maria Quitéria, roceira originária de São José das Itapororocas) no Batalhão de Periquitos, mas esse batalhão ficou estacionado no Recôncavo e não lutou.
  As mulheres com folhas de cansanção de Itaparica e as do mingau de Saubara integram o folclore da guerra. Trabalhavam, no entanto, no fornecimento de mariscos e peixes para os voluntários e tropas estacionadas nessas localidades.

  PAPEL DOS INDIGENAS

  Os indígenas guaranis (tupinambás) de Itaparica aturam na defesa da ilha.

  A MORTE DE JOANA ANGÉLICA

  A morte de Joana Angélica deu-se em fevereiro de 1822 num momento isolado quando soldados portugueses que haviam atuado num confronto no Forte de São Pedro retornavam ao Campo da Pólvora e tentaram invadir a clausura do Convento da Lapa sendo impedidos pela soror Joana Angélica e pelo capelão Luis Alselmo. 

  Joana Angélica foi morta por um soldado (anônimo) que a matou com uma baioneta e Anselmo recebeu uma coronhada desmaiando, mas, não morreu.

LUTAS NAVAIS FORAM POUCAS

  As forças do mar eram comandadas pelo almirante Crochane estacionadas na ilha de Tinharé (Morro de São Paulo) e o primeiro combate naval (batismo de fogo) contra o almirante João Félix deu-se em 25 de abril 1823, participando as naus brasileiras Pedro I, fragata Piranga, corveta Maria da Glória, corveta Liberal, brigue Guarani e escuna Real. 

  A força portuguesa tinha nau capitânea Dom João VI que encalhou no Forte do Mar (desencalhou dia 30). Os combates aconteceram dia 4 de maio a charrua Princesa Real abrindo fogo contra os navios de Crochane, assim como o navio Principe, as corvetas Calipso e Dez de Feverieo, e a nau Dom João VI "apenas com os cachorros de proa". A esquadra de Cochrane "virou toda e fugiu". 

  Numa carta a José Bonifácio, Cocharne expõe o mau estado da esquadra e sua incapacidade para combater, "tanto pelo mau navegar dos navios, dos quais só andavam bem a Pedro Primeiro e a Maria da Glória, como por causa das péssimas e deficientes equipagens", contra Braz do Amaral em "A História da Independência da Bahia".

  João Félix Pereira de Campos a bordo do Dom João Sexto, assim relatou: "No dia 4 do corrente (maio de 1823) estando esta esquadra do meu comando a distância de 9 para 10 léguas ao Sueste da Ponta de Santo Antônio (Farol da Barra), avistei 7 navios mui longe, a barlavento, correndo caminho de Oeste a procurar a dita Ponta de Santo Antônio, os quais conheci serem da esquadra do Rio de Janeiro() pouco depois do meio dia, a nau inimiga próximo de n´s, a charrua Princesa descarregou uma descarga de artilharia () e mais as corvetas Princesa, Dez de Fevereiro e Calipso() e não pude continuar a caça porque a andadura deste era muito melhor e, no dia seguinte (a esquadra de Cocharne) se achava muito longe".  

 A FUGA DE MADEIRA

  No dia 21 de junho, Madeira requisitou a João Félix a esquadra para embarcar a tropa da guarnição rumo a Lisboa. O número estimado de pessoas a embarcar fora a tropa, entre empregados e negociantes com suas famílias, se elevava a 1.400. O comboio total que partiu para Lisboa é estimado entre dez a doze mil pessoas incluindo marujos (4.000) tropa de Madeira com feridos (8 a 10 mil).

  O Exército Pacificador entrou em Salvador com 9.515 homens: Batalhão 1 (a frente Lima e Silva) 1.777 praças; 2, o Legião 796; 3, 3.708; 4 -598; 5 -710; 6 -280; 7 - 482; 8 - 510; artilharia, 576; Libertos 9, 327; Provisório, 467; Provisório 2 - 359; artilharia do major Sátiro Cunha, 713; cavalaria da cidade, 186; cavalaria da Torre, 67; Batalhão da Paraiba, 540; Batalhão de Pernambuco, 439; Cia do 4 do rio e do Penedo, 160; voluntários de Santo Amaro, 88; Atiradores de Armação, Belona e Mavorte cachoeirense, duas Cias de Conquista.

  Braz do Amaral estimou (pelos dados oficiais) juntando-se a Força Naval 14 mil pessoas em armas do lado brasileiro (durante toda a guerra) e que não foi possível saber o quantitativo da Esquadra de Cocharne, "mas não trazia menos de dois mil homens".

  Na fuga para Lisboa, em 3 de julho, os navios brasileiros Carolina e Coronel Allem (depois, Bahia) tomaram vários navios mercantes cheios de famílias.

  FIM DA GUERRA E SEUS EFEITOS 

  Salvador estava arrasada, os comerciantes falidos, a economia destroçada e demoraram-se vários anos para a sua recuperação bem lenta. O Recôncavo também sofreu bastante com a economia açucareira paralisada e a produção de alimentos idem; o mesmo acontecendo com Itaparica. Os efeitos dessa guerra do ponto de vista da economia são sentidos até hoje.

  Do ponto de vista político nada mudou. A junta de governo nomeada pelo imperador dom Pedro I tinha como presidente Miguel Calmon du Pin e Almeida, marquês de Abrantes, natural de Santo Amaro, governando de 7 de julho de 1823 a 26 de agosto de 1823; assumindo depois Francisco Vicente Viana, do Partido Conservador. o Barão do Rio de Contas.

  Antônio Risério, em "Uma História da Cidade da Bahia" cita (pág 331) que, "o que aconteceu na Bahia foi uma revolução essencialmente conservadora, no que disse respeito à estruturação interna da sociedade que vinha se construindo". 

  E mais, diz Risério: "A Assembleia Constituinte fora dissolvida, como se sabe, em 1823, e ao príncipe regente, agora imperador, se permitiu atropelar, quando achasse necessário, o princípio da soberania popular".

  Veja que no dia 31 de julho de 1823, o governo provisório com Calmon du Pin e Almeida à frente publica um decreto estabelecendo que "toda e qualquer pessoa que tiver em seu poder algum escravo que por legitimo título não lhe pertença, o entregue imediatamente ao seu verdadeiro dono: que todos os juízes e capitães mor façam a mais exata indagação para descobrirem tais escravos e fazê-los prender; e que todos os proprietários de engenhos e fazendas indaguem se nas suas terras se acolhem alguns desses escravos e os faça prender e remeter à cadeia vizinha".

  Do ponto de vista social houve mudanças significativas. Os negros e escravos libertos se igualaram aos demais da sociedade engajados numa mesma causa, uma guerra, ainda que defendendo um regime monárquico. Antes disso, a submissão era total. No período, da guerra e pós guerra acendeu-se um alerta para libertação da escravidão, o que só vai acontecer em 1888, embora várias lutas e episódios aconteceram entre 1823/1888, a mais importante a "Guerra do Paraguai".

  A Bahia sofreu muito com as lutas pela Independência e a elite do açúcar e dos engenhos continuou mandando por muitos anos até que novos ciclos se formataram os coronéis dos sertões, o cacau, a petroquímica até os dias atuais. E o Recôncavo ainda sofre até os dias atuais, com uma identidade própria, mas, locais como Cachoeira, Santo Amaro, Maragogipe, etc, com uma pobreza muito grande sobretudo entre os negros e mestiços.

  Nas representações simbólicas vale tudo, o civismo, a alegria do povo, inclusive a festa maior nas ruas das cidades no 2 de julho, a miscigenação, as figuras do caboclo e da cabocla (Catarina Paraguaçu), negros, mestiços, guaranis, brancos, pardos, heróinas e heróis.

  Diria que, no plano militar, se destacaram 3 bravos brasileiros, hoje, esquecidos: coronéis José Joaquim de Lima e Silva, Felisberto Caldeira e Barros Falcão. (T) - fim da série sobre o bientenário da idendependência da Bahia.