Colunistas / Crônicas de Copacabana
Nara Franco

CRÔNICAS DE COPACABANA: ADIR BLANC, O VASCAINO

Nara Franco é jornalista e vascaina
29/05/2020 às 11:26
Batidas na porta da frente
É o tempo
Eu bebo um pouquinho pra ter
Argumento
Mas fico sem jeito, calado
E ele ri
Ele zomba do quanto eu chorei
Porque sabe passar
E eu não sei  

Letra de Aldir Blanc, na voz de Nana Caymmi. Música "Resposta ao tempo". Aldir morreu em 4 de maio de 2020, o fatídico ano da Covid-19. Tinha 73 anos e escreveu canções que são verdadeiros hinos. No dia em que ele se foi, minha vizinhança, que sempre às 18h dessa pandemia ouve a Ave Maria para cinco minutos depois alternar xingamentos políticos, parou para ouvir O Bêbado e a Equilibrista que alguém colocou muito alto. Todos cantaram, aplaudiram e confesso que chorei. 

Foi um sopro de esperança nesse pandemônio. Porque enquanto o mundo luta contra uma pandemia, o Brasil atravessa um pandemônio. Mas não quero falar de política. Quero falar de Aldir Blanc, vascaíno, tijucano, boêmio, salgueirense. 

Minha maior referência de Aldir Blanc era o "Aldir vascaíno". Por causa do Aldir vascaíno, descobri fatos bem interessantes sobre futebol e, claro, sobre o Vasco. Relato aqui um deles, dos tempos que o Vasco não era chacota nacional. Mas segue a lenda, o mito ou o fato. Bernardo Gandulla, jogador argentino contratado pelo Vasco em 1939, não pode ser escalado no campeonato carioca daquele ano. Sem jogar, ficava à beira do campo durante as partidas. No que a bola saía, Gandulla corria, pegava a bola e a jogava no campo. Jornalistas e torcida adoraram a nova função do jogador que passou a ser apanhador de bolas chutadas para fora. Desse ato, surgiu o gandula, esse rapaz ou moça que fica fora do gramado, repondo a bola sempre que a bola sai. 

Essa e outras histórias Aldir Blanc escreveu em "A cruz do Bacalhau", um livro sobre o Vasco, pequeno, infelizmente fora de estoque nas principais livrarias digitais. Livrinho para torcedor, né? Mas foi ali que Aldir Blanc cresceu muito no meu conceito. Mas eu não conhecia o Blanc letrista, poeta etc? Sim e não. Sabia o básico do básico. Mas, quando se trata do time de coração, a gente dá mais atenção (pelo menos eu dou...). Quando se fala em Vasco, toda e qualquer referência passava pelo Aldir e ainda passa por Sérgio Cabral, o pai. Os dois, além de torcedores, são (ou eram) historiadores do clubes. Conhecem a história de frente para trás, sem nunca, sequer, terem ambicionado um cargo na dirigência vascaína. Sorte deles. 

A perda de Aldir Blanc foi doída para o Rio de Janeiro, na mesma semana que Rubem Fonseca (outro vascaíno), também se foi. Isolados em casa, não pudemos dar adeus àquele que narrou como ninguém a vida da Zona Norte carioca. Nasceu no Estácio, o bairro que dá nome à primeira Escola de Samba da cidade, fundada ali. Formado em medicina, foi cronista, poeta, letrista, sambista. Quase não saía de casa. Apenas para beber cerveja, batucar e observar o dia a dia da cidade. É dele o nome "Simpatia é quase amor", que batiza um dos blocos mais debochados do Rio. O desfile sempre começa com o infalível grito de "Alô burguesia de Ipanema!!" e a onda lilás e amarela (cores do bloco) invade a orla do bairro. 

Criou o Nem Muda Nem Sai de Cima, bloco do bairro da Muda, onde morava. A Muda é um simpático pedaço da Tijuca, que ganhou esse nome. Ali, tem o Bar da Maria, segunda casa do Aldir. Outro ponto que ele ia com certa frequência era o Bip Bip, aqui em Copacabana, bar do saudoso Alfredinho, notório pelas rodas de samba. Figuras como o Aldir vão rareando com o passar dos anos e a Covid-19, essa traiçoeira, nos levou logo ele. O intelectual de boteco, desleixado, cabelo grande, barba grande, fumante, inteligentíssimo, mas do povo, do samba, do Salgueiro, do grito de são Januário. Sem gírias em inglês, sem rede social, sem pseudo modismos. 

Não homenageá-lo com o devido respeito foi um gole em seco. A cidade solar, enclausurada, não cantou no velório, não aplaudiu cortejo, não jogou rosas, não cobriu o caixão com a bandeira do time e da escola de samba. Aldir merecia bem mais. Infelizmente, a pandemia não deixou. 

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   Hoje dei minha volta habitual pelo bairro. Além de muitas máscaras no pescoço e no queixo, vi muitas meias com chinelo. Nada mais carioca que descer à rua de meias e chinelo. É o frio sem ser muito frio, o calor sem ser muito quente. Uma desgraça para a moda. A cidade anda vazia, mas com os persistentes pé de cana bebendo com máscaras na mão, no sovaco e até na axila. 

   Para comprovar a persistência dos hábitos cotidianos, uma amiga me contou que está em casa, sem olfato e paladar, com tosse e cansaço. Diagnóstico: Covid. Estando em quarentena, perguntei como tinha arrumado a doença. Depois de profunda investigação, descobriu que o pai saíra escondido para jogar no bicho. Resultado: toda a família infectada e nada de águia na cabeça.