Colunistas / Causos & Lendas
Lobisomem de Serrinha

LUBI E AMIGOS ASSISTEM PROTESTOS DE MULHERES E RECEBEM OVADA

Protesto de mulheres de Serrinha diante da morte de João Alberto e o exército de bracoleones
22/11/2020 às 11:06
 Acordei cedo para ordenhar Mimosa, Coração e Maracujá - amealhei mais de 25 litros de leite - provei com prazer o cuscuz da Ester Loura com ovos de galinha de terreiro pedreses e depois já alimentado, bem nutrido, o sol ainda morno, andei em direção ao Larguinho da Rodagem até na Barbearia do Matos para aparar os pelos da cabeça e ajeitar a baba. 

  Por lá encontrei o pintor Bino Aríate, gongado nas últimas eleições na sua candidatura a edil só conseguindo preciosos 9 votos, o poeta Serafim Alves, o sanfoneiro Etelvino Gago - toca mas não canta - e o churrasqueiro Pinguinha Flores a comentar observações do manda chuva da Rússia, Vladimir Putin, sobre nosso presidente, o Jair, o comunista dizendo que o messias enfrentou a pandemia do coronavirus expressando "as melhores qualidades masculinas". Ou seja, macho retado.
 
   E mais estava a falar Pinguinha que, ao tempo em que Putin elogiava Jair como Conan, o prefeito do Rio de Janeiro, mister Marcelo Crivela, que é pastor evangélico, homem de Deus e das escrituras sagradas, desandou a chamar o governador de São Paulo, João Dória de ‘viado e vagabundo’. 

  Daí, observava o arguto Flores, que estamos a viver numa nau sem rumo - como a arca de Noé - com elefantes, tigres, corsas e galheiros.

  Imagino que cheguei em hora inoportuna visto que, certamente iriam pedir minha opinião a respeito desses temas, e eu preferiria não me meter nisso. Até porque, são pautas do inútil e que não interessam ao povo de nossas comunidades dos bairros da Rodagem e do Oseas preocupados com suas sobrevivências e não com firulas.
 
  O poeta Serafim, que ajustava o cavanhaque com o barbeiro Wilmar, um dos assistentes da Matos, retirou do bolso a fala do Putin a Jair, que imprimira, e passou a ler:

  ‘Desejo a você tudo de melhor, em primeiro lugar, saúde. Todos nós vimos como não foi fácil para o senhor. O senhor expressou as melhores qualidades masculinas e de determinação. O senhor foi buscar a solução de todas as questões, antes de tudo na base dos interesses do seu povo, seu País, deixando para depois as soluções ligadas aos problemas de sua saúde pessoal. Isso é para todos nós um exemplo de relacionamento corajoso com o cumprimento de seu dever e a execução de suas obrigações na qualidade de chefe de Estado’, disse o Putin.

  O pintor Bino, ao término da leitura, aplaudiu e comentou: - Tá certo o russo que, aliás, nem conheço nem hei de conhecer uma vez que Moscou fica muito distante da nossa Serrinha, mas aprovo o que disse uma vez que nossa Pátria - com a ressalva da Serra, terra de rambos - está repleta de boiolas, de homens que vestem saia e pintam as unhas, de homens que andam de bike sem quadro, de homens que colorem os cabelos com hena, de homens com argolinhas e pulseirinhas, com tatuagens de borboletas nos pescoços, e nada melhor do que um Jair, um Putin, num Mike Tyson, um Bond, para acabar com essa frescuragem.

  Não apoiado interveio o músico Etelvino Gago dizendo que, quem tem o seu dá a quem quer, quem tem sua orelha põe argola que deseja, quem tem seu pulso usa correntinha de ouro que pode comprar, que o mundo é livre, que a liberdade de imprensa e do corpo é total, o homem faz do corpo o que quiser, e se Bino quisesse ver a fauna da Serra fosse a um barzinho que tem na Morena Bela que iria ver o que é diversidade, que beleza, que maravilha, até homens de colan verás. homens usando sandálias de alto, de sutiãs com seios abertos, homens com meias coloridas e sapatilhas de balé, mas no fundo machos com M e H maiúsculos.

   - Jesus Cristo, só o senhor salva - benzeu-se o barbeiro Wilmar.

   - Que achas dessa prosa nosso gigante da colina? perguntou Serafim provocando-me.

   - Acho que nem muito nem tampouco. O Putin é reconhecidamente um machão e na Rússia gays caem literalmente na vara. Nada do que vocês estão a pensar. Pancadas mesmo, varadas nas costas dos rapazes alegres. E o Jair já disse que somos um país de maricas no enfrentamento ao coronavirus. Somos o que somos e vivemos o nosso viver, cada qual no seu cada qual, os machistas, as feministas, os trans, os bis, enfim, somos um país altaneiro e da miscigenação geral das raças, das ideias e das afirmações.

   - Falou bonito - comentou Pinguinha - mas entendi pouco o que falaste.

   A essa altura, já no salão, o filósofo Pato de Almeida, que é um admirador de Carl Jung e de seus escritos alquímicos, teses da hermenêutica, comenta entrando na conversa e citando o psicanalista suisso que grande parte da natureza masculina inconsciente era a substância enxofre, que contribuiu para a flamejante personagem do Sol. Já a formação do inconsciente lunar do homem tem caráter feminino, a tendo como substância raiz o sal, associado ao longo da história humana, às lágrimas.

  - Retou, aí foi que não entendi bulufas, nem eu, nem Bino - suponho - nem o Hércules da Colina, nem os professores da UNEB se aqui estivessem.

   - Ora, meu distinto Pinguinha, o que o filósofo quer dizer com toda essa interpretação filosófica do sentido das palavras é que o homem tem lado masculino derivado do sol e lado feminino proveniente da lua, intervi na conversa para ser didático.

  - Agora, tá explicado. É por isso que tem uns personagens aqui da Serra que de dia são senhores e de noite, especialmente na lua nova, viram maricas e vão pra Janela da Dil, pro Rocks Bar, pro Ice, com licença da palavra, desmunhecar.

  - Natural meu eficaz churrasqueiro trata-se do inconsciente lunar do homem aflorando o seu lado feminino - explicou o filósofo Pato de Almeida ilustrando a fala com trechos do conto 'O Espírito da Garrafa' em que o poderoso Mercurius preso numa garrafa se liberta graças a ação de um jovem e depois quer matá-lo.

   - Lá vem esse filósofo alquimista do tempo de Paracelso com suas teorias. Ora, aqui pra nós, gay é gay; e macho é macho e pronto. Esses psicólogos e filósofos têm teorias pra tudo e só fazem complicar as coisas - arrematou Bino.

   Ouvimos um barulho que emergia da rua com apitos e sons de vuvuzelas, chocalhos e berradores. Corremos a porta da barbearia e um grupo de mulheres promovia um protesto, pelo que se lia nas faixas e banneres, senhoras da Associação das Mulheres de Cabelos Crespos da Rodagem, do Grupo das Suvacudas com Pelos do Oseas, das Destemidas e Guerreiras da Primeira Aguada, portando cartazes com dizeres 'abaixo o machismo', 'diga não ao racismo', 'vidas negras importam', citações e gritos de ordem exigindo justiça diante da morte de João Alberto, no Carrefour em Porto Alegre.

  Nos postamos em frente a barbearia até aplaudindo as senhoras, mas nossa recepção ao protesto - creio vista como tímida - despertou a ira de uma delas, salvo engano a Esmeralda de Argemiro das Telhas, uma baixinha peituda, seios à mostra, a qual gritando palavras de ordem - não aos machões - lançou dois ovos em nossa direção, um deles raspando a cabeça do poeta Serafim e indo chocar-se na parede e um outro que acertou o ombro do filósofo Pato de Almeida causando uma meleira na sua camisa.

  Sem alternativas, pois as mulheres eram muitas e os gritos ensurdecedores em nossa direção, nos refugiamos na barbearia e trancamos a porta. 

  As ativistas desceram rumo ao Marcado Municipal e ficamos a vê-las de longo até que sumiram de nossas vistas. Um alívio, é certo, e uma lição. Almeida limpava a camisa com o avental do barbeiro e resmungava: - Logo eu, um defensor do feminismo, da causa das mulheres, um ativista macho-fêmea passo por esse constrangimento.

  Bino, que acendia um cigarro na soleira da porta, diria um tanto nervoso diante do que vira no protesto, filosofou ao seu modo: - Os tempos são outro doutor. As mulheres querem dominar o mundo. Temos que reagir e convocar as nossas tropas.

  Paguei pelos serviços ao Matos, cabelo e barba, 18 reais, dei 2 reais de gorjeta - a pelega com efígie de tartaruga marinha - e descemos os seis - eu, Bino, Serafim, Etelvino, Pinguinha e Almeida - para tomar umas geladas no Candeeiros Bar. 

  Ao sairmos, ainda deu pra ouvir o proprietário do salão com a nota da tartaruga em mãos a dizer: - Com esse exército dos seis mosqueteiros canguinhas não iremos a lugar algum.

   - Só rindo. Lá vão o Sancho Pancha e seus barcoleones à guerra, completou Wilmar.