Alberto de Irará, melhor limpador de cocos de Lauro de Freitas, diz que tem um criatório de galinhas e um facão amolado para se defender do 'labisome'
Em prosa rosada na varanda da casa do meu compadre Eustáquio onde passo uns dias de veraneio no Litoral Norte da Bahia com minha adorada senhôra Ester Loura, presente também a consorte dele, dona Dil Zélia dos Paz, e a nos servir um café sertanejo dos mais fartos a cozinheira irmã de Abelha Machado, oriunda do Jardim Tropical da Itinga, e o caseiro Eliezer, vulgo Zezé de Coração de Maria, a conversa seguia rumo aberto, no descampado, quando um coco caiu do céu e bateu na lateral do 'frisa' do compadre e este tomou aquele susto e esbravejou: - Toma cuidado Alberto nessa limpa dos coqueiros senão a gente sai estropiado e tenho visita ilustres em casa.
- Este escapuliu de minha não e caiu fora do prumo - respondeu Alberto, vulgo Irará, pendurado num coqueiro, um dos dois existentes no quintal da casa de praia do compadre, onde o limpador de cocos fazia uma faxina.
Dona Dil Zélia - que também é conhecida como Dil - interveio: - Liga não Lobi que Irará é sem modos.
A conversa foi se miudando na mesa a medida em que o cuscuz com farinha de milho Tabajara, da Feira, tinha sido devorado quase todo, o aimpim de Sêo Lidio do Merk-Abate estava pelos finalmente, e os ovos, a manteiga e o requeijão que trouxera como regalo da lanchonete do Amaral, em Santa Bárbara, estavam mexidos, assim como a carne de sol em cubos e a farofia com cebola e alho que tinham dado boa baixa.
Eustáquio, guloso como é, lambia os beiços e pedia a Zezé pra completar sua xícara de café com leite, café do bom, Pilão e leite em pó argentino.
Depois do desjejúm, dona Dil perguntou a Ester se ele não gostaria de se delicir com um beijuzinho feito na hora recheado com doce de goiaba e vê Irará descer do último coqueiro em limpa, quando este pede um copo d'água a irmã da Abelha dizendo que tava todo mordido de formiga.
- O senhor precisa mandar 'defumar' esses coqueiros senão as formigas matam a gente - comentou Irará com Eustáquio.
- Já viu formiga matar ninguém. Depois que recolher essas palhas que você jogou no chão, arrumar os cocos num canto e varrer o terreiro venha tomar um café reforçado que você tá magro demais- falou Eustáquio.
- Tô magro de andar de bicicleta. Mas, pro sinhô ficá sabendo meu 'frisa' tá lotao de carne - sorriu.
- O aimpim está uma delícia - comentou Zezé falando no pé do ouvido de Irará, tentando realinhar a conversa.
- E eu lá gosto de aimpim...tolo...coisa da roça não é comingo. Eu gosto é de pão com margarina e queijo.
Estáquio, que tudo ouvia, mandou a Machado, que salvo engano se chama Márcia, providenciar dois pães com manteiga e queijo Palmira.
De barriga cheia, dinheiro no bolso pago pelo serviço, Irará era todo contentamento. Ester então resolveu presentea-lo com uma camisa do Lobisomem de Serrinha, nossa marca registrada.
Seu moço, quando Irará abriu a camisa que viu a cara do lobisomem, aqueles dentes poteagudos, unhas enormes, o homem deu um pulo pra trás e disse: - Cruz credo ...pé de pato mangalô três vezes...é coisa 'dele'.
Ester que é devota de Senhora Sant'Anna, paciente como ela só, pigarreou: - Dele quem? O lobi é do bem, é da paz e do amor. O senhor não gostou da camisa.
- Gostar eu gostei, mas eu tenho medo do 'labisome" respondeu fazendo menção que se vestisse a camisa teria parentesco com o demo.
- Ester obtemperou: - É lobisomem... Sêo Alberto. gente boa, educada, católica e trabalhadora.
- Pois vou contar a senhora e a todos aqui presentes - eu só cubava Irará dos pés-à cabeça - um causo que aconteceu lá em Irará, no povoado Das Pedras, e foi meu avô Faragoso que me contou que havia um 'labisome' que gostava de comer morotós que juntava num alagadiço próximo de sua casa de farinha, e adorava também se empanturar com os beijús que ele fazia.
Irará pediu um copo d'água pra temperar a garganta e proessegui: - Ele (lá ele, falando e se benzendo) vinha em noite de lua cheia comer os beijus, e meu avô armou uma arapuca e deixou a porta da casa de farinha semi-aberta, colocou uma corda esticada a meia altura, coisa de três palmos e meio, e deixou tudo lá articulado feito uma armadilha pra prender o 'labisome'.
- E foi o que se deu quando o medonho foi comer os beijus. Ele 'atropeçou' na corda, caiu no chão, o trico da porta fechou pelo lado de fora e o lanzudo ficou preso.
Fazendo gestos de como o seu avô Faragoso havia armado toda aquela arapuca, Irará contou que, "no outro dia, logo cedo, meu velho acordava bem cedinho, pegou seu pau-de-fogo carregado até a boca e segurando firme com a mão canhota - ele era canhoto dos bons - e na outra mão levava um crucifixo, se dirigindo até a casa de farinha, abriu a porta bem devagar e quando mirou na cabeça do pé-de-botelho, já na alça da mira do parabelo, pra sua surpresa era um compadre seu, um dos meus melhores amigos do Irará que tava caído e amofinado no local.
Curiosa, Ester perguntou: - E o que foi que ele fez?
- Ele disse, mas cumpadé é tú que tá comendo meus beijus, é tu que vira 'labisome' e come os morotós...e o homem danou-se a chorar, a pedir perdão, e meu avô ficou com pena dele e mandou ele ir embora, passar na igreja matriz de Irará e rezar uma dúzia de pai-nossos.
- Ainda bem que seu avô não matou o compadre? - inquiriu Ester.
- Com pouco depois ele morreu de desgotso feito caçote em lama seca de barreiro, todo duro, estuqiado.
Sêo Alberto então pediu um cafezinho e mais um copo d'água a Zezé e danou-se a contar causos do demo, de pessoas que andam com o livro de São Cipriano debaixo do sovaco, dos 'labisomes' do Irará, Das Pedras, do Camamu do Irará, do Saco do Limão e disse que seu sogro que se chama Salu e é vivo - tanto que Ester poderia ir ao Irará comprovar o que ele falava - pegou um 'labisome' que se chama Lino - e o tal também ainda é vivinho da Silva - que era ardiloso, que virava 'labisome' para pegar as meninas novas do Irará e o danado usava uma cuica feita de cabaça com uma correia de tripa de carneiro ensebada, e ele botava a cuica pra cantar numa área que se chamava brejo, e as meninas ficavam encantadas com aquele canto e iam até lá e eles se aproveitava delas, fazia bolinações, usava elas, e isso chegou aos ouvidos do meu sogro porque uma parente dele que ainda era virgem foi bolinada.
Tomando fôlego e suando bastante, Irará, entusiasmado proessegiu: - Meu sogro pegou uma espingarda de dois canos que também cospia fogo que não era brincadeira e foi atrás do ronco da cuica e quando chegou lá que mirou no tal do 'labisome' era Lino e ele só não 'papocou' os miolos dele porque meu sogro é de paz, mas deu um tiro de advertência e Lino saiu correndo por dentro do brejo se molhando e se arranhando todo, desvirou o 'labisome' e foi se curar dos ferimentos na Farmácia de Sêo Jorginho', sendo que nunca mais botou cuica pra roncar e a menina que ele abusou teve que se casar com ela, daí que resultou até num livro de cordel que fez muito sucesso no Irará "O casamento do Labisome com a Virgem das Pedras"
- Que coisa! admirou -se Ester enaltecendo o feito de Salu e sua citação na literatura.
- Esse miserável ainda é vivo e nem a cachaça o matou. Vê a senhora...eu moro em São Cristovão e na minha casa tenho lá um 'criatoruzinho' de galinhas. Tá vendo esse facão aqui que corto esses cocos, que cepo essas 'paias' feito um papel, se aparecer um 'labisome' por lá pra comer minhas galinhas, eu corto o pescoço dele de uma façãozada só.
Eu tava quieto no meu canto e mais quieto fiquei ainda, A manhã já tava ganhando o inicio da tarde, Eustáquio me chamou pra comprar uns acarajés no crente de Vilas e lá fomos nós, de bugre, ele dirigindo e eu tomando uma gelada com meu pescoço inteiro, livre do facão de Irará.
Pouca hora ele passou por nós indo para São Cristovão, onde mora, com suas traquitanas de limpar os coqueiros, montando numa bicicleta. Falei com meus botões...'vai em paz labisome'. Ainda assim, passei a mão no meu pescoço pra verificar se tava tudo nos conformes.