Brasil ainda faz parte do Mapa da Fome da FAO (da qual havia saído em 2014 e retornou em 2019), visto que a insegurança alimentar e nutricional ainda afeta mais de 2,5% da população
Veja quais são os principais resultados do Relatório das Nações Unidas sobre o Estado da Insegurança Alimentar e da Nutrição no Mundo (SOFI 2024), que analisa anualmente a evolução dos indicadores globais, regionais e nacionais de insegurança alimentar e nutricional no mundo e mostra as dificuldades no alcance das metas dos ODS associadas à segurança alimentar e nutricional. A divulgação é do Observatório Brasileiro de Hábitos Alienmtares (OBHA)
O lançamento do relatório no Brasil fortalece a liderança nacional no combate à fome e reconhece os avanços no país nessa agenda, tendo reduzido significativamente a população em insegurança alimentar severa o último ano, enquanto coloca grande responsabilidade sobre a aliança global proposta pelo Brasil no G20.
No dia 24 de julho mês de maio de 2024, foi lançado, no Rio de Janeiro, o novo Relatório das Nações Unidas sobre o Estado da Insegurança Alimentar e da Nutrição no Mundo, o SOFI 2024 (FAO/IFAD/UNICEF/WFP/WHO, 2024), em evento que atualiza os dados globais, regionais e nacionais sobre insegurança alimentar e nutricional. Além da importância desses dados, o lançamento fora de Roma, onde tradicionalmente é oficialmente lançado o relatório, reconhece o momento técnico e político do Brasil na agenda e seu papel como referência mundial na temática, considerando as políticas nacionais, os movimentos nacionais como a Ação da Cidadania e a liderança global do país na proposição da Aliança Global contra a Fome e a Pobreza no mundo, no âmbito da Cúpula do G20.
A avaliação da fome global em 2023, medida pela prevalência da subnutrição (Indicador 2.1.1 dos ODS) revela uma contínua falta de progresso em direção ao objetivo de Fome Zero. Após um aumento acentuado de 2019 a 2021, a proporção da população mundial enfrentando a fome permaneceu praticamente no mesmo nível por três anos consecutivos, com as estimativas mais recentes indicando uma subnutrição global de 9,1 % em 2023. Em termos de população, entre 713 e 757 milhões de pessoas (8,9 e 9,4% da população global, respectivamente) foram estimadas como subnutridas em 2023. Considerando a estimativa intermediária (733 milhões), cerca de 152 milhões de pessoas a mais podem ter enfrentado a fome em 2023 em comparação com 2019.
Em termos regionais, a prevalência de insegurança alimentar moderada ou grave na África (58,0%) é quase o dobro da média global, enquanto na América Latina e no Caribe, na Ásia e na Oceania, está mais próxima da estimativa global – 28,2%, 24,8% e 26,8%, respectivamente. Isso mostra que o mundo está fracassando no principal princípio orientador da visão apresentada pela Agenda 2030 é garantir que ninguém seja deixado para trás.
O relatório SOFI destaca que, apesar da existência de várias estimativas do custo para alcançar as Metas de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 2.1 e 2.2, não há uma imagem coerente do total de recursos financeiros sendo gastos em segurança alimentar e nutrição e sua decomposição, nem do custo para alcançar as ODS 2.1 e 2.2, em parte devido à ausência de uma definição consensuada de financiamento para segurança alimentar e nutrição. Segundo o documento, a ausência de uma definição padronizada para esses valores nos impede de avaliar adequadamente os níveis existentes e as lacunas no financiamento para segurança alimentar e nutrição.
Parte das dificuldades de delimitação dos custos da segurança alimentar e a nutrição estão relacionados à necessidade de incorporar conceitos complexos e multidimensionais que não se encaixam facilmente em estruturas definidas por setores individualmente. As intervenções para alcançar segurança alimentar e nutrição abrangem vários setores e dimensões do desenvolvimento econômico, saúde, social e ambiental, entre outros. No entanto, os fluxos de financiamento e os orçamentos normalmente são definidos e classificados por setor e, dentro de cada setor, por finalidade. Ao mudar de um sistema de classificação baseado em setores para uma medida baseada em resultados, surgem questões complexas sobre a contribuição dos recursos baseados em setores para a segurança alimentar e resultados nutricionais positivos.
Dessa forma, os estudos fornecem diferentes estimativas de custo. Os resultados preliminares indicam que políticas e intervenções para entrar nos trilhos para atingir as Metas 2.1 e 2.2 dos ODS exigiriam recursos adicionais de agora até 2030 que variam de US$176 bilhões a US$ 3.975 bilhões para erradicar a subnutrição, além de US$90 bilhões adicionais para atender a metas globais selecionadas de desnutrição. As estimativas saltam abruptamente para US$ 15,4 trilhões ao adicionar os tipos de políticas transformacionais que exigiriam financiamento para aumentar a acessibilidade de dietas saudáveis para milhões, enquanto ainda reduzem a subnutrição.
Portanto, o custo de não suprir a lacuna de financiameninclusivas e equitativas são necessárias para aumentar o financiamento para a SAN em países com altos níveis de fome e desnutrição, mas, ao mesmo tempo, muitos desses países de baixa e média renda enfrentam restrições significativas no acesso a fluxos de financiamento acessíveis. É preciso, portanto, considerar a governança dos países no desenho e implementação dessas estratégias de financiamento para a SAN.
A situação nacional e o lançamento do relatório SOFI 2024 no Brasil
Segundo o relatório SOFI 2024, a insegurança alimentar e nutricional no Brasil diminuiu significativamente: entre 2020 e 2022, 32,8% dos brasileiros enfrentavam insegurança alimentar, enquanto entre 2021 e 2023 esse número caiu para 18,4%, representando uma redução de quase 44%. Esse progresso significa, em termos absolutos, que, embora ainda haja 39,7 milhões de pessoas nessa situação, 30,6 milhões saíram da insegurança alimentar.
Além disso, segundo o relatório, entre 2020 e 2022, 70,3 milhões de brasileiros enfrentavam insegurança alimentar moderada ou grave e esse número caiu para 39,7 milhões no período seguinte, com uma diminuição expressiva na fome severa, de 9,9% para 6,6%. Ainda, entre 2020 e 2022, 21,1 milhões de brasileiros enfrentavam insegurança alimentar e nutricional severa, mas esse número caiu expressivamente para 14,3 milhões entre 2021 e 2023.
Mesmo diante dos relevantes avanços nacionais, o Brasil ainda faz parte do Mapa da Fome da FAO (da qual havia saído em 2014 e retornou em 2019), visto que a insegurança alimentar e nutricional ainda afeta mais de 2,5% da população, refletindo a persistência dos impactos da crise alimentar.
Essa rápida evolução é muito expressiva, pois mostra o impacto imediato da reorganização e fortalecimento das políticas nacionais de segurança alimentar e nutricional (SAN) sobre a fome. Vale lembrar que, o nosso informe 13 de 2022 tinha como título “Da fome para a fome? O Relatório do Estado da Segurança Alimentar e Nutricional no Mundo de 2022 e os sistemas alimentares”, remetendo à perda de todos os avanços de uma década durante a gestão federal que desmontou as políticas de SAN e fragilizou a realização de múltiplos direitos humanos por meio das políticas econômicas e sociais no país, somada ao impacto da pandemia de COVID-19, levando o Brasil de volta ao Mapa da Fome da FAO.
Conforme também abordado em informes anteriores, o Brasil uma redução gradual e relevante da insegurança alimentar e nutricional grave entre 2004 e 2013, passando de 9,5% para 4,2% no período, segundo inquéritos nacionais. Contudo, a fome voltou a crescer a partir de 2018, após o golpe parlamentar, aumentando primeiramente para 5,8% e, depois, na gestão federal de 2019 a 2002, alcançou a triste marca de 15,5%, ou seja, maior do que a encontrada em 2004 (Rede PENSSAN, 2022). Além disso, a grande redução observada entre 2022 e 2023 no percentual de famílias em situação de insegurança alimentar grave foi corroborada pelos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD/IBGE), segundo a qual, em 2023, esse percentual caiu para 4,1% dos domicílios (IBGE, 2024).
Além disso, vale ressaltar que o Brasil anteriormente mostrou resultados impressionantes em relação às prevalências de baixa estatura para idade, que caracteriza a desnutrição infantil crônica, particularmente entre as décadas de 1990 e 2000, quando diminuiu pela metade (passando de 13,4%, em 1996, para 6,7%, em 2006). Mais importante, a maior redução foi observada entre as famílias de menor renda e nas regiões Nordeste, Centro-Oeste e Norte (Ministério da Saúde, 2008). Em seguida, um estudo a partir de dados nacionais entre nesse período analisou as principais causas dessa grande redução e constatou que dois terços eram atribuíveis às políticas sociais universais e outras políticas: a ampliação da educação materna (que repercute significativamente no cuidado infantil), o aumento na renda familiar (fruto da ampliação dos empregos formais e dos programas de transferência condicionada de renda), a ampliação do acesso à saúde (resultado direto da criação do Sistema Único de Saúde e da ampliação da atenção primária à saúde) e a expansão da cobertura do saneamento básico (Monteiro et al., 2009).
O lançamento do relatório SOFI 2024 fora de Roma representa um importante reconhecimento da prioridade política nacional e internacional do país em relação ao enfrentamento da fome, particularmente na liderança brasileira no âmbito do G20 para estabelecer uma Aliança Global contra a Fome e a Pobreza. Isso inclusive se alinha muito com o subtema de financiamento que o relatório SOFI 2024 trouxe, visto que a aliança deve buscar sua atuação a partir do apoio técnico e financeiro por governos, instituições filantrópicas e de pesquisa para a implementação de políticas.
Conclusão
A mensuração da insegurança alimentar e nutricional global, regional e nacional, bem como as recomendações para seu enfrentamento, voltam à agenda global de SAN com o lançamento do último Relatório sobre o Estado da Insegurança Alimentar e da Nutrição no Mundo (SOFI 2024), produzido conjuntamente pela FAO, IFAD, WFP, Unicef e OMS. A exemplo de outros relatórios lançados este ano, temos a mesma conclusão de que o mundo está distante do alcance das metas da agenda 2030 relacionadas à SAN e à nutrição em todos os grupos de idade, com progressos muito desiguais no mundo.
Contudo, novas oportunidades se apresentam para buscar que o mundo volte aos trilhos em relação a essas metas, incluindo a discussão do financiamento de SAN trazido pelo relatório SOFI 2024 e o momento oportuno da Aliança Global contra a Fome e a Pobreza proposta pelo Brasil no âmbito do G20. Ainda que não sejam alcançadas as metas propostas, é fundamental que as tendências de vários indicadores de SAN sejam revertidas e que sejam acelerados os avanços em outros indicadores.
Naturalmente, a Aliança Global proposta não é uma panaceia para esses problemas, mas pode contribuir para trazer novos elementos para essa agenda, particularmente na articulação renovada entre as agências internacionais, no compromisso renovado de governos e no envolvimento dos outros atores globais para tirar planos do papel e implementar as políticas de maneira mais efetiva.
A fome não é tolerável ou aceitável em nenhuma condição e estamos falhando nesse tema e deixando milhões para trás, enquanto nos aproximamos de 2030. É fundamental, portanto, que diagnósticos, evidências e compromissos tornem-se ações efetivas coordenadas global e nacionalmente, baseadas nos direitos humanos e considerando a multifatorialidade e intersetorialidade da SAN. Contudo, recentemente, conforme concluído em nosso seminário avançado sobre as estratégias para o enfrentamento da fome no mundo, para a resolução definitiva da crise civilizatória que é representada pela fome, são precisas soluções sistêmicas, de transformação dos sistemas alimentares globais, como parte desses compromissos e ações, visto que os sistemas hegemônicos estão entre as principais causas dessa crise.