Direito

TRAGÉDIA DOS YANOMAMIS COMEÇA NA DÉCADA DE 1960 COM PERIMENTRAL BR 21O

Já são mais 60 anos que a tragédia começou nas terras do povo Yanomami
InfoAmazonica , AM | 23/01/2023 às 11:03
A devastação das terras Yanomamis pelos garimpos
Foto: REP
   Com o início da construção da rodovia Perimetral Norte BR-210 na década de 1960, a cobiça pelo ouro levou ao povo Yanomami um rastro de epidemias, violências e massacres que ainda hoje repercutem em suas aldeias.

Explosão de casos de malária. Desnutrição. Violência e estupros. São todos elementos que compõem o atual estado de calamidade vivenciado pela população Yanomami, que vive entre os estados brasileiros de Roraima e do Amazonas, e também do outro lado da fronteira, em território venezuelano. Essa situação decorre da intensa atividade garimpeira que assola as formas de vida Yanomami, cuja origem está nos planos de “desenvolvimento” que a Ditadura Militar elaborou para a região.

Sobrevoo regista áreas de garimpos ilegais dentro da Terra Indígena Yanomami, em Roraima, em abril de 2021
Aos 85 anos, o missionário católico da Instituto Missionário da Consolata, Carlo Zacquini, tem uma memória espantosa. Manteve diários do que vivenciou e testemunhou entre os Yanomami desde a década de 1970. Italiano, Zacquini estava no território Yanomami, junto à fotógrafa Claudia Andujar, mais precisamente na missão Catrimani, no ano de 1974, quando um avião pousou na pista de terra batida utilizada pelos missionários. Os passageiros, ao descerem, avisaram a Carlo que as empresas iriam chegar e começar a estrada, a Perimetral Norte (BR-210). Que não passaria muito longe dali. “Fiquei muito perplexo, quase sem acreditar”, relembra o missionário.

Poucos dias depois, começaram a chegar, a pé, homens doentes, com enfermidades adquiridas ao longo de dias caminhando dentro da floresta. Era uma equipe de topografia. “Na hora, a gente tentou tratar bem as pessoas que chegaram, com pena deles”, rememora Zacquini. “Foram embora, depois outros pediram para fazer uma espécie de barraco, para os homens que vieram atrás desta primeira equipe, desmatando”. Eram pequenos grupos, de duas, três ou quatro pessoas que desmatavam trechos de floresta: “na prática, fizeram picadas, traçando o rumo da estrada”.


Mapas em relatório assinado pela antropóloga Alcida Ramos em 1979, localizavam as aldeias Yanomami e BR-230
“A gente soube que ia fazer a estrada, quando a estrada chegou”, reflete Zacquini. A Perimetral Norte (BR-210) passou a fazer parte do projeto de colonização da Amazônia criado no bojo do Plano de Integração Nacional (PIN), elaborado pelo ditador Emílio Garrastazu Médici (1969-1974) junto a outros projetos de infraestrutura, como a Rodovia Transamazônica (BR-230) e a Rodovia Cuiabá-Santarém (BR-163), e que, em paralelo, previa também a construção usinas hidrelétricas, como Belo Monte e Tucuruí.

A gente soube que ia fazer a estrada, quando a estrada chegou

CARLO ZACQUINI, INDIGENISTA
A obra da Perimetral Norte ficou a cargo da empreiteira Camargo Correia, que, por sua vez, contratou subempreiteiros para tocarem parte do trabalho. Zacquini conta que eram homens que vieram de outros estados e que, uma vez chegando a Boa Vista (RR), “entravam no mato, assim a pé, com o machado e quase todos tinham uma espingarda: comida arrumavam no mato, porque para pagar a alimentação no subempreiteiro, significava um preço salgado”, reflete o missionário.

De acordo com Zacquini, esses trabalhadores derrubaram 35 metros de mata de cada lado do traçado feito pela empreiteira.

Para Alcida Ramos, antropóloga que trabalhou como pesquisadora junto aos Yanomami e defensora de seus direitos desde a década de 1960, “o governo militar fazia o cerco à Amazônia, atingindo em cheio povos indígenas inteiros que, sem contato anterior, se viam atropelados pela abertura de estradas, pelo avanço de mineradoras, madeireiras e toda sorte de intrusões, levando a mortalidade a índices alarmantes”, afirma.

A chegada do Sarampo

A chegada dos trabalhadores obrigou os Yanomami a se deslocarem para outras áreas, e gerou uma crise humanitária e sanitária, com transmissão de doenças e graves casos de desnutrição – situação dramática que foi acirrada, na década de 1980, com a invasão garimpeira. Zacquini lembra que com a chegada dos trabalhadores, “não demorou muitos dias, o primeiro foi buscar remédios andando com as pernas bem abertas, e dizendo que estava com muita coceira, mas já tinha contaminado outros. Depois de alguns dias, todo mundo estava com essa coceira. Era só encostar, porque era muito contagioso: escabiose”, ou seja, sarna.

O missionário relata com precisão a chegada do sarampo, nos últimos dias de 1976, que explodiu ao longo do ano seguinte. “Um dos peões que ficou cuidando da cantina, perto da pista do avião, estava com sarampo. E, quando foi descoberto, o sarampo já tinha passado para os Yanomami. Tinham poucos Yanomami, e conseguimos tratar praticamente todos os que ficaram infectados”, relembra ele. “E eu já tinha pedido [à Funai] várias vezes vacina de Boa Vista, para sarampo. E eu continuei pedindo, e nada”.

“Até que, há mais de um ano que a estrada tinha chegado, e já era transitável, um Yanomami foi caminhando até Boa Vista porque estava doente, e acabou trazendo de volta o sarampo. E a epidemia se espalhou por muitas aldeias”, relembra Zacquini. O missionário rememora que, na aldeia Hwayau, que visitou com Claudia Andujar, estavam reunidos os sobreviventes: “nela e nas três grandes malocas ao seu redor, morreram cerca de 70 pessoas”.

“Encontrei uma situação terrível! A criança menor que tinha, devia ter entre 6 e 7 anos, e era um esqueleto. E as outras menores tinham morrido. Os velhos, tinham morrido. Foi um massacre mesmo”, relembra Zacquini. Ele menciona também um quadro de depressão generalizada entre os sobreviventes: “tinha um xamã deprimido. Ele era um xamã muito bom mesmo, que estava dizendo que ele não acreditava mais nos seus espíritos, que não servem para nada, que não conseguiu fazer nada”, diante do sarampo.


Denúncia publicada no Jornal Porantim (CIMI) em dezembro de 1979 Credit: Reprodução Credit: Reprodução
Caminhando até a aldeia Hwayau, relata que foram encontrados “esqueletos na beira do caminho, de Yanomami que, andando na beira do mato, acabaram morrendo, e outros parentes acabaram morrendo. Nunca tinha visto isso. Foi uma coisa muito chocante”, relata Zacquini, acerca dos impactos da epidemia de 1977.

Alcida Ramos avalia que a Perimetral, desativada, transformou-se numa trilha mais adequada ao tráfego entre as aldeias. No entanto, “a vida das comunidades afetadas por ela nunca mais foi a mesma. Nas cabeceiras do Catrimani, região do rio Lobo d’Almada, uma epidemia de sarampo aniquilou quatro aldeias em 1977. Com a facilidade de locomoção que a estrada proporcionava, uma epidemia de sarampo, iniciada num hospital em Boa Vista, rapidamente se alastrou pela floresta, matou metade de seus 133 habitantes e dispersou os sobreviventes”. 

Zacquini relembra com tristeza que, “anos depois descobri lugares muito longes, que o sarampo tinha chegado e tinha causado vítimas. Só não consegui saber quantas”.

A chegada do Garimpo

“Ainda sofrendo os efeitos da construção da Perimetral Norte, os Yanomami começaram a sentir os primeiros sinais da corrida do ouro, consequência previsível da divulgação dos achados do projeto Radambrasil e dos caprichos do mercado internacional que, em 1980, cotava cerca de 30 gramas de ouro a 850 dólares. Uma avalanche de 40 mil invasores assolou boa parte do território Yanomami, sem se limitar à fronteira internacional”, afirma Alcida Ramos. Iniciado em 1970, o projeto Radambrasil operou no âmbito do Ministério de Minas e Energia, mapeando recursos naturais de diversas regiões do país e, em especial, da Amazônia.

Carlo Zacquini estava no território Yanomami quando, em 1971, o projeto RadambrasilO Projeto Radam (Projeto Radar da Amazônia, após 1975, Projeto RadamBrasil), operou entre 1970 e 1985 , foi dedicado à cobertura de diversas regiões do território brasileiro (em especial a Amazônia) por imagens aéreas de radar, captadas por avião começou a fazer a prospecção de riquezas na área, com a atuação de geólogos fazendo análises de amostras de solo. “Entre eles, provavelmente havia garimpeiros. Provavelmente esses do trabalho manual, mas não é de se excluir que houvesse algum geólogo entre eles que não fosse honesto e cumpridor das normas”, reflete. Com a circulação da informação de que haveria ouro no território Yanomami, a partir deste momento começaram a surgir grupos de garimpeiros em diversas partes do território. Até que muitos garimpeiros passaram a se instalar na região do Paapiú, por lá existir na época uma pista de pouso aberta por missionários evangélicos.

Zacquini relembra que a Fundação Nacional do Índio (Funai) tinha uma estrutura muito precária, e de pouca assistência de saúde para os Yanomami, com apenas um médico e funcionários que faziam as vezes de enfermeiros, embora não tivessem formação. Enquanto isso, a CCPY (Comissão pela Criação do Parque Yanomami), ONG na  qual Zacquini atuava, tinha três médicos e um dentista. Até que, na região do rio Couto Magalhães, houve um desentendimento entre os indígenas e garimpeiros: os indígenas tentaram expulsá-los, e os garimpeiros, todos armados, se juntaram, e assassinaram quatro Yanomami, relembra o missionário.