Pará adota cela exclusiva para gays
Terra , Pará |
31/10/2013 às 10:03
Julye, mais segura
Foto: Terra
“Nós cumprimos duas sentenças aqui: uma imposta pelo juiz e outra imposta pelos prisioneiros”. O relato de um presidiário homossexual publicado no relatório O Brasil Atrás das Grades: Abusos Entre os Presos, da ONG Human Rights Watch, em 1997, ainda é realidade nas casas penais brasileiras. Há décadas, ter aparência delicada já traz riscos de abusos em celas masculinas. Só há quatro anos os Estados começaram a tomar atitude mais contundente contra isso.
Seguindo uma tendência internacional de separação de detentos de acordo com o perfil, o Pará se tornou o quinto Estado brasileiro a oferecer celas exclusivas para lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, grupo conhecido como LGBT. A medida já havia sido adotada em Minas Gerais, em 2009, e, depois, no Rio Grande do Sul, Paraíba e Mato Grosso.
Há cerca de dois meses, o Centro de Triagem Metropolitano 2 (CTM 2), no município de Ananindeua, e o Centro de Recuperação do Coqueiro (CRC), em Belém, passaram a setorizar presos de acordo com a orientação sexual. O objetivo é diminuir conflitos e proteger homossexuais de qualquer forma de violência.
Antes dessa separação, o CTM 2 já tinha uma ala de idosos e doentes, no qual eventualmente eram alocados homossexuais acusados de crimes não-violentos. Isso fez com que Allison Parente Lima, 24 anos, que se apresenta como Julye, tenha corrido menos riscos nos últimos 14 meses em que está no local. Ele responde processo e aguarda julgamento por tráfico de drogas.
Mesmo assim, a cicatriz no seu antebraço direito mostra que o detento não esteve imune. Antes da criação da cela LGBT, um preso "ficou afim” dele e fez de tudo para ser transferido para a mesma ala, de presos idosos. “Ele conseguiu e, um dia, ele ficou com ciúme porque me viu conversando com outro e me atacou com um estoque de ferro, gritando que ‘viado’ tinha que transar’”, conta a vítima.
Outro momento de tensão foi quando Julye foi a uma audiência no município de Óbidos, oeste paraense. Cerca de três horas em uma cela masculina foram suficientes para o detento temer um abuso. “Até o diretor foi lá e pediu para os outros não mexerem comigo. Alguns me olhavam diferente, com um olhar de quem quer sexo”, relata, aliviado por ter saído ileso.
Conquistas recentes fazem Julye aparentar bem diferente da maioria dos cerca de 250 presos do CTM 2. Ele pode manter os cabelos longos e lisos, em vez de raspar a cabeça, e também usar sutiã. Além disso, são aceitas visitas íntimas do mesmo sexo. Na hora de sair da cela, porém, é cobrada máxima discrição; nada de roupas femininas.
Mas não é necessário se vestir de mulher para ser alvo de discriminação. Acusado de tráfico de pessoas, José Guedes Gomes, 25 anos, é o único dos quatro homossexuais de sua cela que usa roupa masculina. Na mesma ala, há cerca de 60 internos considerados menos perigosos - a maioria, evangélicos. “Aqui a gente já não sente tanto o perigo de violência, porque é uma parte mais tranquila do presídio. Só que a gente percebe o jeito que olham julgando a gente; respeitam, mas não se misturam”, diz José Guedes.
A setorização da casa penal tem efeito positivo no trabalho da psicóloga do local, Aina Rodrigues. Segundo ela, separar presos de acordo com o perfil diminui conflitos. “Até diminui a demanda pelo meu trabalho e, em muitos casos, evita que alguém em situação de agressão familiar, por exemplo, se veja forçado por outros a entrar no crime”, explica a psicóloga.
A separação de celas é uma reivindicação antiga do movimento homossexual, de acordo com Raicarlos Coelho, um dos diretores da Associação de Gays, Lésbicas e Transgêneres do Pará. O tema foi levantado na primeira Conferência GLBT em Belém, em 2008, e só agora foi atendido.
“Não dá para tratar igual pessoas tão diferentes, quando pode haver héteros tarados, com a sexualidade reprimida. Essa política é boa e precisa ser implementada nacionalmente”, afirma.
O tema, porém, é visto como um mal necessário. Para Raicarlos, o certo seria a convivência pacífica na mesma cela. “Espero que isso possa ocorrer no futuro, mas hoje o resultado é catastrófico. Recebemos relatos de violência só que em presídios essas coisas não costumam ser denunciadas”, lamenta.