Até a suspensão do julgamento, somente o relator havia votado - a favor do
reconhecimento da união estável entre casais do mesmo sexo. Faltam ainda os
votos dos outros nove ministros - o ministro Dias Toffoli se declarou impedido
de votar porque, quando era advogado-geral da União, se manifestou publicamente
sobre o tema.
Caso o Supremo reconheça a união estável entre casais gays, a decisão criará
um precedente a ser seguido por todas as instituições da administração pública,
inclusive pelos cartórios de todo o Brasil. Direitos como herança, comunhão
parcial de bens, pensão alimentícia e previdenciária passariam a ser assegurados
a casais de pessoas do mesmo sexo.
Para Ayres Britto, a decisão do tribunal sobre o reconhecimento da relação
entre pessoas do mesmo sexo pode viabilizar inclusive o casamento civil entre
gays e a adoção, que são direitos garantidos a casais em união estável. Isso só
acontecerá se o voto do relator for seguido pela maioria dos integrantes da
Corte.
A diferença é que a união estável acontece sem formalidades, de forma
natural, a partir da convivência do casa, e o casamento civil é um contrato
jurídico formal estabelecido entre suas pessoas.
Duas ações
O plenário do STF começou a analisar nesta
quarta duas ações, de relatoria do ministro Britto, propostas pela
Procuradoria-Geral da República (PGR) e pelo governo do estado do Rio de
Janeiro.
A primeira, de caráter mais amplo, pede o reconhecimento dos direitos civis
de pessoas do mesmo sexo. Na segunda, o governo do Rio quer que o regime
jurídico das uniões estáveis seja aplicado aos casais homossexuais, para que
servidores do governo estadual tenham assegurados benefícios, como previdência e
auxílio saúde.
Na prática, a decisão pode garantir a famílias formadas por casais gays os
mesmos direitos das uniões estáveis de heterossexuais. O relator dos processos
defendeu a união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar e condenou o
preconceito contra os homossexuais. "O órgão sexual é um plus, um bônus, um
regalo da natureza. Não é um ônus, um peso, em estorvo, menos ainda uma
reprimenda dos deuses", disse Britto.
O ministro afirmou ainda que o sexo não pode ser usado como motivo para
tornar pessoas desiguais perante o Estado. Para ele, a conduta dos casais
homoafetivos não é ilegal e deve ser reconhecida pelo estado.
"Quem ganha com a equiparação postulada pelo homoafetivos? Os homoafetivos.
Quem perde? Ninguém perde. Os homoafetivos não perdem, os heterossexuais não
perdem, a sociedade não perde", afirmou o relator.
Julgamento
O procurador-geral da República, Roberto
Gurgel, afirmou que não reconhecer a união homossexual significa dizer que ela
"não tem valor e não merece respeito social".
"Os homossexuais devem ser tratados com mesmo respeito e consideração que os
demais cidadãos e a recusa estatal em reconhecer uniões implica, não só em
privá-lo de direitos, como também importa em menosprezo a sua própria
dignidade", afirmou Gurgel.
Ele rebateu o argumento de que a expressão "homem e mulher" citada no texto
da Constituição impediria a legitimação da união entre pessoas do mesmo sexo.
Gurgel afirmou que a lei não veda a união entre homossexuais.
"Esta ausência de referência não significa de qualquer modo o silêncio
eloquente da Constituição Federal. Não implica, necessariamente, que a
Constituição não assegure o seu reconhecimento. Temos que concluir que a união
entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar é implicitamente reconhecida
pela Constituição e equiparada por analogia à união entre homem e mulher", disse
o procurador.
O advogado-geral da União, Luís Inácio de Lucena Adams, defendeu a posição do
governo em favor do fim da discriminação dos direitos dos homossexuais. Sob
olhar atento da ministra da Secretaria de Direitos Humanos, Maria do Rosário,
que acompanhou o julgamento do plenário do STF, ele citou ações do governo
federal para assegurar direitos previdenciários e fiscais a casais do mesmo
sexo.
"Esse reconhecimento que vem acontecendo mostra que o primeiro movimento de
combate a não discriminação é a partir do Estado. Temos visto na nossa sociedade
violenta manifestações de agressão às relações homoafetivas, mas que só serão
passíveis de rejeição na medida que o Estado for o primeiro a rejeitar essa
discriminação", afirmou o advogado-geral da União.
INFORMAÇÃO DO STF
O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) interrompeu, no início da noite desta quarta-feira (04), o julgamento conjunto da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132, em que se discute a equiparação da união estável entre pessoas do mesmo sexo à entidade familiar, preconizada pelo artigo 1.723 do Código Civil (CC), desde que preenchidos requisitos semelhantes.
Dispõe esse artigo que "é reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família".
A interrupção ocorreu depois que o relator, ministro Ayres Britto, havia julgado procedentes as duas ações para dar ao artigo 1.723 do Código interpretação conforme a Constituição Federal (CF). Antes do voto de mérito, o ministro havia convertido também a ADPF 132 em ADI, a exemplo do que ocorrera anteriormente com a ADI 4277, que também havia sido ajuizada, inicialmente, como ADPF.
Pedidos
A ADI 4277 foi ajuizada pela Procuradoria-Geral da República (PGR) com pedido de interpretação conforme a Constituição Federal do artigo 1.723 do Código Civil, para que se reconheça sua incidência também sobre a união entre pessoas do mesmo sexo, de natureza pública, contínua e duradoura, formada com o objetivo de constituição de família.
A PGR sustenta que o não reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar fere os princípios da dignidade humana, previsto no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal - CF; da igualdade (artigo 5º, caput, da CF); da vedação de discriminação odiosas (artigo 3º, inciso V, da CF); da liberdade (artigo 5º, caput) e da proteção à segurança jurídica (artigo 5º, caput), todos da Constituição Federal (CF).
Com igual objetivo, considerando a omissão do Legislativo Federal sobre o assunto, o governo do Rio de Janeiro ajuizou a ADPF 132. Também ele alega que o não reconhecimento da união homoafetiva contraria preceitos fundamentais como igualdade, liberdade (da qual decorre a autonomia da vontade) e o princípio da dignidade da pessoa humana, todos da Constituição Federal.
Manifestações
O voto do ministro Ayres Britto foi precedido de manifestações da Advocacia-Geral da União (AGU), da Procuradoria-Geral da República (PGR) e de diversas entidades representativas de homossexuais pela procedência das duas ações, enquanto a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e a Associação Eduardo Banks se manifestaram contra.
O representante da CNBB alegou que a Constituição Federal não prevê este tipo de união. Segundo ele, a CF estabelece limitação expressa, ao prever união estável entre homem e mulher, e não entre seres do mesmo sexo. Portanto, de acordo com o advogado, não se trata de uma lacuna constitucional. Logo, não caberia ao Judiciário, mas sim ao Legislativo, se for o caso, alterar o correspondente dispositivo constitucional.
Voto
Em seu voto, o ministro Ayres Britto lembrou que foi dito na tribuna que o artigo 1.723 do Código Civil é quase uma cópia do parágrafo 3º do artigo 226 da CF. Mas ressaltou que "há uma diferença fundamental". Isto porque, segundo ele, "enquanto a CF nos fornece elementos para eliminar uma interpretação reducionista, o Código Civil não nos dá elementos, ele sozinho, isoladamente, para isolar dele uma interpretação reducionista".
"Agora, o texto em si do artigo 1.723 é plurissignificativo, comporta mais de uma interpretação", observou ainda. "E, por comportar mais de uma interpretação, sendo que, uma delas se põe em rota de colisão com a Constituição, estou dando uma interpretação conforme, postulada em ambas as ações".
Na sustentação do seu voto, o ministro Ayres Britto disse que em nenhum dos dispositivos da Constituição Federal que tratam da família - objeto de uma série de artigos da CF - está contida a proibição de sua formação a partir de uma relação homoafetiva. Também ao contrário do que dispunha a Constituição de 1967, segundo a qual a família se constituía somente pelo casamento, a CF de 1988 evoluiu para dar ênfase à instituição da família, independentemente da preferência sexual de seus integrantes.
Ele argumentou, também, que o artigo 3º, inciso IV, da CF, veda qualquer discriminação em virtude de sexo, raça, cor e que, nesse sentido, ninguém pode ser diminuído ou discriminado em função de sua preferência sexual.
"O sexo das pessoas, salvo disposição contrária, não se presta para desigualação jurídica", observou o ministro, para concluir que qualquer depreciação da união estável homoafetiva colide, portanto, com o inciso IV do artigo 3º da CF.
Ele lembrou, neste contexto, que a União Europeia baixou diversas resoluções exortando seus países membros que ainda mantenham legislação discriminatória contra homossexuais que a mudem, para respeitar a liberdade e livre determinação desses grupos.
Ademais, conforme argumentou, a Constituição Federal "age com intencional silêncio quanto ao sexo", respeitando a privacidade e a preferência sexual das pessoas. "A Constituição não obrigou nem proibiu o uso da sexualidade. Assim, é um direito subjetivo da pessoa humana, se perfilha ao lado das clássicas liberdades individuais".
"A preferência sexual é um autêntico bem da humanidade", afirmou ainda o ministro, observando que, assim como o heterossexual se realiza pela relação homossexual, o homoafetivo tem o direito de ser feliz relacionando-se com pessoa do mesmo sexo.
Por fim, o ministro disse que o artigo 1723 do Código Civil deve ser interpretado conforme a Constituição, para dele excluir "qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como ‘entidade familiar', entendida esta como sinônimo perfeito de ‘família'".