Cultura

ROSA DE LIMA COMENTA A EDUCAÇÃO DAS VIRGENS, DE ELIZETE SILVA PASSOS

As alunas – observa a autora - deveriam seguir o modelo de Maria, baseado na pureza, na dignidade, na bondade e no devotamento.
Rosa de Lima ,  Salvador | 27/12/2025 às 10:17
A Educação das Virgens, de Elizete Silva Passos
Foto: BJÁ

Depois de comentarmos o romance “Tudo é Rio”, da Carla Madeira; e “História por trás da História”, organizado por Katiana Rigaud, seguimos com nossa missão de falarmos sobre obras produzidas por brasileiros, de preferência dos baianos, uma vez que nossa praia é Salvador da Bahia. Iremos comentar uma obra da professora aposentada da UFBA e filósofa Elizete Silva Passos, que aborda a trajetória da Ordem Religiosa Ursulinas na Bahia (e no Brasil), mais especificamente sobre o Colégio Nossa Senhora das Mercês.

  Trata-se de um livro que está completando 30 anos de existência e se intitula “A Educação das Virgens – um estudo do cotidiano do Colégio Nossa Senhora das Mercês (EDITORA UNIVERSITÁRIA SANTA ÚRSULA, 1995, 303 páginas, foto da capa Lula Rodrigues, ensaio, Estante Virtual, R$24,00 usado) e aborda, como o próprio título reza, O cotidiano no Colégio Nossa Senhora das Mercês, Avenida 7, Salvador, que ainda estava em funcionamento. 

   Infelizmente, no ano de 2022, o estabelecimento foi fechado após 125 anos de história, devido dificuldades financeiras agravadas pela pandemia da Covid e a defasagem da estrutura para os padrões atuais, dentre outros problemas inclusive da falta de segurança no entorno, que resultou num crime bárbaro quando uma jovem aluna Cristal Rodrigues foi assassinada ao lado da mãe no passeio do Palácio da Aclamação, indo para o colégio, em agosto de 2022.

   Esse fato, no entanto, é complementar ao estudo de Elizete, concluído em 1995 e com descritivo de um tempo que vai desde a fundação do convento (1737) até inÍcio da década de 1990, quando, também, já havia um movimento intenso de mudança nos colégios da cidade e do ensino administrado por freiras. 

   O livro de Elizete é um documento precioso, bem estruturado e com inúmeras citações de fontes, entrevistas realizadas pela autora, estudos, análises, num apanhado histórico que remete a 1535, inicio do andar da Ordem das Ursulinas fundada pela freira italiana Ângela Merici até a prática da formação feminina no Colégio das Mercês de Salvador, que era abrangente e não se limitava ao ensino formal da pedagogia escolar, mas, também do comportamento, das formas de se relacionarem, das posturas, das vestes.

    Enfim, uma formação integral da mulher – assim se orientava – para ser pessoa culta, religiosa e capaz de constituir uma família com princípios éticos e respeito ao próximo. E, ao mesmo tempo, uma mulher obediente.

   Diríamos que o livro de Elizete aborda de forma completa e resumida em pouco mais de 300 páginas, o que é um feito de grande significado, desde a origem da Ordem de Santa Úrsula (capítulo I), o papel da Ângela Merici, a expansão da Ordem na Europa e no Novo Mundo (Brasil, em especial), o convento e o colégio de Nossa Senhora da Soledade, o convento e o colégio de Nossa Senhora da Piedade, outras comunidades ursulinas no Brasil e a União Romana.

   No capítulo II, a autora fala da educação das Ursulinas e os pressupostos teóricos-práticos, a regra organização por Ângela Merici, o testamento, a regra de Santo Agostinho e as constituições da União Romana. Adiante, no III Capítulo, vai se aprofundando nos detalhes, nas características das primeiras escolas, os objetivos e métodos, as formações pessoal, familiar, profissional e apostólicas; o ensino – religião, humanidades, ciências – toda uma cultura voltada para o crescimento de mulher, de forma integral.

   Na segunda parte do livro, base de sua tese acadêmica na formação em filosofia, se atém ao Colégio de Nossa Senhora das Mercês em Salvador historiando a instalação do convento, o papel de Úrsula Luiza de Monteserrate, a situação do convento entre os anos 1744 e 1897, a chegada das religiosas francesas e a criação do externato; o convento após a União Romana; as atividades ministradas a partir de 1897 e o espaço físico.

   Adiante, no capitulo II da segunda parte, creio, o mais pitoresco em se conhecer dessa cultura educacional religiosa ministrada por feiras rigorosas, disciplinadoras, aos olhos atuais, autoritárias, inflexíveis, a autora aborda o cotidiano do colégio – dormitórios, sanitários, refeições, salas de aulas, currículo, recreios, parlatório, festas e publicações. Uma delicia de textos que daremos alguns exemplos adiante.

   Nos capítulos derradeiros III e IV (Parte segunda) a configuração do cotidiano no colégio – a religiosidade, modéstia, caridade, silêncio, obediência; e uma leitura do cotidiano – o amor, o respeito, o exemplo; o disciplinamento como um mecanismo de educação – a firmeza, a disciplina e as punções. Fechando, a conclusão e a bibliografia.

   Em síntese conclusiva, a autora destaca que o processo educativo do Colégio Nossa Senhora das Mercês visava formar mulheres de caráter sóbrio, dócil, manso e dedicado. “Para isso, investiam no ensino da religiosidade, da modéstia, da caridade, do silêncio e da obediência”. 

   As alunas – observa a autora - deveriam seguir o modelo de Maria, baseado na pureza, na dignidade, na bondade e no devotamento. Precisavam ser modestas na forma de se trajarem e de se comportarem, aceitando seus murmúrios os castigos e as orientações dos mestres. Deviam comer com moderação, sem exigir o melhor bocado nem criticarem o cardápio oferecido”.

   Em suma: “Esse modelo de educação visava formar mulheres mansas, religiosas, caridosas, humildes, modestas, silenciosas e obedientes, mulheres disciplinadas no corpo e no espírito. Arrastava uma tradição historicamente ensinada e necessária aos interesses da sociedade baiana daquele momento”.

  O livro, pois, traduz um tempo em que, na Bahia, (e em parte no Brasil) a economia mais forte girava em torno do agronegócio – cacau, pecuária, fumo, comércio, exportação, etc e os internatos eram os modelos educacionais mais utilizados pelas filhas desses endinheirados. A sociedade, no entanto, gira em permanentes movimentos e esse modelo, aos poucos, foi se exaurindo. O próprio Colégio ao adotar o externato, abrir uma janela observando e acompanhando esses movimentos, foi também se atualizando.

   Ainda assim, já nos anos 1980/1990, esse modelo praticamente se extinguiu e o Mercês não resistiu e fechou suas portas em 2022, observando-se, no caso, uma série de outros fatores como a localização espacial do colégio, a mobilidade, a segurança, enfim, muitos outros componentes.

   A obra de Elizete, portanto, tem um tempo, uma época, e deve ser vista e entendida até o momento em que apresentou a sua tese. Um excelente estudo não só do Mercês, mas, com muitas anotações sobre Salvador da Bahia. Afinal, a fundadora da instituição, Úrsula Luiza de Montesserate nasceu na Rua Direita das Portas de São Bento, em 22 de outubro de 1700 e sua história de lutas para montar o convento integra a história da cidade.