Cultura

TAURINO ARAUJO ANALISA CRÍTICA DE CELSO CUNHA À OBRA DE ALMANDRADE

Um artista da invisibilidade: Taurino Araújo analisa a crítica de Celso Cunha Neto à obra de Almandrade
Taurino Araújo , Salvador | 06/12/2025 às 19:38
Taurino é advogado e poeta
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    A obra do artista baiano Almandrade, marcada pela tensão entre clareza formal e opacidade conceitual, ganhou nova camadas de leitura a partir da coluna “A arte da invisibilidade clara”, publicada por Celso Cunha Neto na Coluna Olhares, do jornal A Tarde, em 30 de novembro de 2025. O ensaio do jurista, poeta e crítico Taurino Araújo propõe uma metacrítica desse texto, examinando não apenas o artista e o crítico, mas também o próprio ato de ver, escrever e interpretar a arte.

No artigo, Taurino organiza sua leitura em três níveis: apresenta Almandrade como um “artista da invisibilidade”, analisa Celso Cunha Neto como o crítico que torna essa invisibilidade visível e, por fim, volta-se ao próprio gesto crítico, discutindo como se vê, como se lê e como se organiza a experiência perceptiva diante da obra de arte. A abordagem aproxima o debate brasileiro de referências internacionais em teoria da imagem, hermenêutica e crítica de arte.

A partir desse enquadramento, o texto mobiliza conceitos como autoria, enigma visual, topologia da forma, função escópica (modo como a obra organiza o olhar) e economia estrutural, articulando a produção de Almandrade à trajetória escultórica e teórica de Celso Cunha Neto. O resultado é a construção de um campo em que obra, crítica e metacrítica formam um circuito de (in)visibilidades que depende da participação ativa do observador.

Almandrade e a poética da invisibilidade

Na leitura apresentada, Almandrade é definido como “artista da invisibilidade”, expressão que sintetiza a maneira como sua obra combina simplicidade aparente e profunda indeterminação de sentido. Suas construções visuais e poéticas sugerem um mundo de formas claras, linhas precisas e geometrias ostensivamente estáveis, mas sob essa superfície existe um núcleo de silêncio que escapa a qualquer explicação definitiva.

O ensaio de Taurino dialoga com a noção de “morte do autor”, formulada por Roland Barthes, mas propõe um deslocamento: em Almandrade, o autor não desaparece; torna-se inacessível. A obra exige interpretação, mas recusa garantias interpretativas. A autoria não é anulada, e sim deslocada para um regime de responsabilidade compartilhada entre artista, crítico e fruidor.

Nessa perspectiva, a invisibilidade não significa apagamento, mas método. O artista produz objetos que expõem quase tudo, ao mesmo tempo em que preservam um espaço estratégico de não dito. O observador é convidado a atuar, a construir leituras, porém sempre sob o peso da consciência de que algo permanece fora de alcance, preservando o enigma que sustenta a força poética da obra.

Imagem, enigma e teoria: de Didi-Huberman ao neoconcretismo
Ao tratar da tensão entre visibilidade extrema e opacidade radical, Taurino aproxima a obra de Almandrade das reflexões de Georges Didi-Huberman sobre a imagem como sobrevivência, latência e anacronismo. A imagem, segundo esse referencial, nunca se oferece por completo; ela sempre escapa ao olhar.

Em Almandrade, essa condição é levada ao limite: as formas parecem absolutamente precisas e equilibradas, mas, na profundidade, são zonas de espessura silenciosa, campos em que o visível aponta para o invisível, não por transcendência, mas por falha deliberada, produtiva. Essa “falha” é o espaço em que o observador é chamado a participar da construção do sentido.

O ensaio também insere Almandrade no diálogo com o concretismo e o neoconcretismo brasileiros. Ao manter a precisão geométrica e recusar a transparência racionalista, o artista atualiza, a seu modo, o debate que passa por Ferreira Gullar, Mário Pedrosa e outros intérpretes da arte construtiva no Brasil. Em vez de função comunicativa, há silêncio como estratégia. Em vez de pureza formal, um campo de ambiguidade em que a forma clara abriga um sentido indeterminado.

Função escópica: como a obra organiza o olhar

Um dos conceitos centrais do texto é o de função escópica, expressão oriunda da fenomenologia e da psicanálise, que descreve o modo como a obra organiza o olhar do observador. Em vez de pensar apenas no sujeito que vê o objeto, a função escópica considera que o objeto também estrutura a forma de ver.

Ao analisar a crítica de Celso Cunha Neto, Taurino mostra como a leitura do escultor e crítico revela a engenharia perceptiva da obra de Almandrade. As formas, as linhas, os vazios e as superfícies organizam trajetórias para o olhar, criam vetores visuais e produzem zonas de instabilidade em que não há frente, verso ou centro fixo. O volume e a profundidade são menos dados materiais e mais resultados do movimento do fruidor.

Nesse sentido, cada observador torna-se um coautor da obra. A posição, a distância e o deslocamento definem quais aspectos se tornam visíveis em cada experiência. A invisibilidade não é um defeito, mas um recurso epistemológico: o sentido só se realiza quando o olhar aceita a incerteza como parte da experiência estética.

Celso Cunha Neto: escultura, topologia e teoria da forma
Ao voltar o foco para Celso Cunha Neto, Taurino mostra que a força da crítica publicada na Coluna Olhares está vinculada à própria trajetória artística do autor do texto. Celso é escultor e pesquisador da forma, desenvolvendo uma investigação que parte de elementos básicos — ponto, linha, plano — para construir estruturas tridimensionais a partir da curvatura do plano.

Quando o plano é curvado, ele abandona a geometria euclidiana clássica e passa a operar em uma lógica topológica, em que pequenas deformações geram novos campos de curvatura. Triângulos, superfícies e vértices são trabalhados como operadores que, ao serem deformados, produzem volumes inesperados. A tridimensionalidade surge, assim, como propriedade emergente, e não como dado inicial.

Taurino aproxima esse procedimento de debates sobre morfogênese, geometria diferencial e filosofia da forma, citando referências como Gauss, Riemann, D’Arcy Thompson, René Thom, Umberto Eco e Gilles Deleuze. A pesquisa de Celso Cunha é descrita como uma “hipótese que insiste em permanecer questão”, inserindo a arte em um campo de conhecimento em que não há respostas definitivas, apenas versões em permanente teste.

Controle, acaso e a ideia de “obra aberta”
O texto também destaca que a prática de Celso Cunha combina controle rigoroso e contingência. Ao permitir curvaturas aparentemente aleatórias, o artista se aproxima da formulação de Ilya Prigogine sobre a “ordem a partir do caos”: pequenas variações podem produzir grandes transformações na forma final.

Mesmo diante dessas variações, o triângulo ou o plano inicial preservam uma coerência estrutural que impede a dissolução total da forma. O resultado são esculturas em que a previsibilidade técnica convive com a surpresa perceptiva, compondo um campo em que cada peça exige do observador uma leitura atenta das transições entre luz, sombra, volume e vazio.

Essa estratégia ressoa o conceito de “obra aberta”, formulado por Umberto Eco, em que o sentido não está inteiramente fixado pelo autor, mas se realiza na interação com o receptor. Em Celso, e na leitura que ele faz de Almandrade, essa abertura não elimina o rigor: ela atua como método de investigação, que mantém a obra em estado de questão e desloca o olhar do público para um patamar mais exigente.

Invisibilidade, história e resistência
O ensaio de Taurino ainda acentua a dimensão histórica da obra de Almandrade. Formado sob o contexto do AI-5 e atuando fora dos principais centros do circuito de arte, o artista construiu sua trajetória em um ambiente de restrição política e distância institucional.

Nesse cenário, a opção por uma poética marcada pelo silêncio, pela rigidez formal e pela introspecção ganha outro peso interpretativo. A invisibilidade, nesse contexto, pode ser entendida também como uma forma de resistência discreta, em que a insistência na pesquisa formal e na experimentação poético-visual se oponha à lógica de apagamento cultural.

Segundo a leitura articulada por Celso e aprofundada por Taurino, essa postura de Almandrade garante à sua obra um lugar singular na estética brasileira contemporânea. Longe do exibicionismo e das soluções fáceis, o artista constrói um conjunto de trabalhos que se mantêm claros e indecifráveis, precisos e instáveis, obrigando a crítica a renovar continuamente suas ferramentas de leitura.

A metacrítica como exercício de responsabilidade interpretativa
A metacrítica desenvolvida por Taurino Araújo propõe que a crítica de arte não se limite à descrição das obras ou à explicação de seus sentidos. Ao examinar o texto de Celso Cunha Neto sobre Almandrade, o ensaio evidencia que a crítica é, também, um ato de exposição de seus próprios métodos: mostrar como se olha, como se escreve e como se organiza o discurso sobre a arte.

Esse movimento reforça a ideia de que a crítica, para ser consistente, precisa reconhecer seus pressupostos teóricos, seus recortes históricos e seus limites interpretativos. Ao mobilizar referências como Didi-Huberman, Rosalind Krauss, Gadamer, Lyotard, Merleau-Ponty e Nicolas Bourriaud, o texto de Taurino posiciona a discussão sobre Almandrade em um patamar em que a arte é tratada como campo epistemológico, e não apenas como produção sensível.

A leitura proposta sugere que, em um contexto de circulação acelerada de imagens e discursos, a crítica de arte que se ancora na reflexividade de segunda ordem — ou seja, na consciência de si mesma — tende a oferecer ao público não apenas juízos, mas ferramentas para pensar. A metacrítica torna-se, assim, exercício de responsabilidade interpretativa, em que o leitor é convidado a compreender não só o que se diz sobre a obra, mas como e por que se diz.

Quem é Taurino Araújo e qual o lugar dessa metacrítica

O autor do ensaio, Taurino Araújo, é jurista, poeta, crítico literário, artista visual e Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais. Reconhecido pela obra “Hermenêutica da desigualdade”, ele propõe uma epistemologia de matriz brasileira, em diálogo com filosofia, direito e ciências sociais, defendendo uma leitura crítica das estruturas de poder e dos sistemas de significação.

Taurino acumula experiências em gestão de pessoas, planejamento educacional e história e antropologia, além de atuar como ensaísta e organizador de coletâneas sobre semiótica, literatura e geopoética. Entre seus projetos recentes está a coletânea “Signos em Transe: uma Fortuna Crítica sobre a Semiótica de Lícia Soares de Souza”, lançada na Academia de Letras da Bahia com apoio da Uneb e do CNPq, reunindo 62 autores de sete países.

Condecorado com a Comenda João Mangabeira, maior honraria do Estado da Bahia, Taurino transita entre arte, direito e crítica cultural, articulando uma visão em que a interpretação é sempre um ato de responsabilidade. Ao escrever sobre a leitura que Celso Cunha Neto faz de Almandrade, ele amplia o debate sobre a função da crítica de arte na cena contemporânea e reforça a centralidade da reflexividade — isto é, da consciência sobre o próprio ato de interpretar.