Cultura

ROSA DE LIMA COMENTA A BAILARINA DE AUSCHWITZ, DE EDITH EVA EGer

O livro de Edith Eva Eger é desses que se guarda na estante à vista, sem perde-lo em olhares, pronto para ser consultado. Trata-se de uma aula, um aulão de psicologia, de humanismo e de comportamento humano.
Rosa de Lima ,  Salvador | 05/12/2025 às 19:53
A Bailarina de Auschwitz, excelente
Foto: BJÁ
  Vamos continuar falando da literatura voltada para o holocausto que assassinou milhões de judeus a mando da doutrina nazista comandada por Adolf Hitler e outros. Depois do comentário do livro de Vicktor Frankl, “Em Busca de Sentido”, uma obra prima desse movimento, falaremos hoje de uma de suas discípulas e também sobrevivente de campos de concentração, a doutora em psicologia existencial, Edith Eva Eger, húngara, residente nos EUA ainda viva com mais de 95 anos de idade.

  Eva e a irmã Magda sobreviveram ao holocausto mas perderam pai e mãe, a família levada para o trem da morte de Budapeste rumo a Polônia pela polícia nazista húngara nyilas, na força e sob a mira de fuzis, e quando chegou em Auschwitz, nus na fila da cremação, foram apartados, separados, as duas pré-adolescentes para um lado e pai e mãe para o outro, ambos em direção as câmaras de gás e aos fornos. 

  O livro em tela de Edith Eva Eger que comentaremos se intitula “A Bailarina de Auschwitz” (EDITORA SEXTANTE, 303 Páginas, tradução de Débora Chaves, capa Bárbara van Buyven, RJ, 2019, R$70,00 nas livrarias de Salvador) onde ela narra toda a trajetória de vida de sua família, a morte dos pais e do namorado, o sofrimento num campo de concentração, o mais cruel de todos (Auschwitz), a sobrevivência, como se readaptou ao novo mundo que se formatou na Europa pós guerra, a Hungria dominada pelos comunistas e outro regime de terror instalado, o exilio nos Estados Unidos, sua formação profissional como psicóloga, palestrante, escritora, mãe e avó.

   Trata-se de um livro que muitos leitores se emocionam e vão as lágrimas, especialmente judeus, pois sua narrativa por mais que procure dissociar a crueza do holocausto e o comportamento selvagem dos nazistas, teve que revelar algumas passagens que são chocantes. Muitos momentos entre a vida e a morte. Eva Eger procura se controlar, usa todos as técnicas da psicologia comportamental, porém, fato é fato, e ela narrar como dançou para o carrasco Mengele no capítulo 3 intitulado “Dançando no Inferno”.

   Edith Eva tinha 16 anos de idade, era magérrima, estudava balet. 

   “Em Auschwitz ouvimos conversas entrecortadas em alemão, que vêm de fora do barração. A kapo se ajeita quando a porta abre com um estrondo. Lá, na entrada, reconheço o oficial uniformizado da fila de seleção. Sei que é ele, a maneira como sorri. Sei que é ele, a maneira como sorri com os lábios abertos, o espaço entre os dentes da frente. Dr. (Josep) Mengele, aprendemos. É um assassino refinado e amante das artes. Ele passeia entre os barracões à noite, procurando prisioneiras talentosas para diverti-lo.

   - Nesta noite com seu grupo de assistentes, ele entra e olha das recém chegadas em seus vestidos largos, os cabelos mal cortados. Ficamos em pé, imóveis, encostadas nos beliches de madeira no canto da sala. Ele nos examina. Magda discretamente toca minha mão. Dr. Mengele fez uma pergunta e antes que eu perceba o que está acontecendo, as garotas que estão vem junto de mim, que sabem que fui bailarina e ginasta em Kassa, me empurram para perto do anjo da morte.

   - Ele me analisa. Não sei para onde olhar. Olho para a frente, diretamente para a porta aberta. A orquestra está de prontidão bem do lado de fora. Está em silêncio, aguardando ordens. Eu me sinto como Eurídice no inferno, esperando Orfeu tocar uma corda na sua lira capaz de derreter o coração de Hades e me libertar. Ou como Salomé, obrigada a dançar para o padrasto Herodes, levantando véu após véu para expor seu corpo. A dança lhe dá ´poder ou a dança tira seu poder?

   - Pequena dançarina – diz Dr. Mengele – dance para mim.

  “Ele manda os músicos começarem a tocar a conhecida abertura da valsa Danúbio Azul. () Eu danço, danço. Estou dançando no inferno. Não consigo olhar para o carrasco enquanto ele decide nossos destinos. Fecho os olhos. () Ele deve ter ficado impressionado com meu desempenho, porque jogou um pedaço de pão para mim”.

   O livro tem várias passagens das irmãs Eger em Auschwitz até a libertação pelas tropas americanas e também a partir desse momento e no pós guerra uma nova jornada de incertezas e sofrimentos as cercam e também a muitos outros judeus e húngaros que não se sujeitaram ao regime comunista, uma vez que a Hungria depois da guerra passou a integrar o bloco soviético, até que migram para Israel e Estados Unidos.

   A vida de Edith é de uma permanente luta, sofrimento, incertezas, até que se forma em sociologia, tem filhos e netos e se torna uma profissional respeitada e que atua áreas com pacientes que carregam traumas imensos diante das guerras que participaram, especialmente, no Vietnã.

   O que é raro no campo da psicologia ela cita alguns casos de atendimentos a seus pacientes com detalhes do comportamento da vida deles, claro, usando nomes fictícios, e alguns desses casos vão ajudando a que a autora também cure as suas “feridas” traumáticas.

   Diz a autora no capítulo 14 (De um sobrevivente para outro): - Ninguém se cura em linha reta. () Minha jornada acadêmica me levou a conhecer o trabalho de Martin Seligman (psicologia positiva) e de Albert Elis, além de professores e mentores inspiradores como Carl Rogers e Richard Farson, que me ajudaram a entender partes de mim mesma e de minha própria experiência.

   “Sofrer é inevitável e universal, mas a maneira como reagimos ao sofrimento varia. Em meus estudos fui influenciada por psicólogos cujos trabalhos revelaram nosso poder de realizar mudanças em nós mesmos. Albert Elis, criador da Terapia Racional Emotiva Comportamental e um precursor da Terapia Cognitivo-Comportamental, me esclareceu sobre o quanto interiorizamos sentimentos negativos sobre nós mesmos e os comportamentos negativos e autodestrutivos que acompanham esses sentimentos. () Para mudar o comportamento devemos mudar o sentimento e para mudar o sentimento devemos mudar o pensamento”.
   Ora, para uma sobrevivente de Auschwitz, na prática, conseguir essa mudança até atingir o ponto de cura é extremamente difícil e dura muitos anos para alcançar esse objetivo. 

   E numa dessas jornadas para fechar o ciclo (mudar o pensamento) Edith retornou a Polônia para visitar o campo de concentração de Auschwitz, o que foi uma das missões mais complexas, e todo o preparativo para retornar ao local onde seus país e milhares de judeus foram executados em câmaras de gás e queimados em fornos donde o que restava como sinal das mortes era a fumaça negra das chaminés, foi tenso, cercado de cuidados com o apoio do marido e filhos, da irmão, enfim, algo que requer uma superação que envolve a responsabilidade de si para si com os sentimentos.

   O livro de Edith Eva Eger é desses que se guarda na estante à vista, sem perde-lo em olhares, pronto para ser consultado. Trata-se de uma aula, um aulão de psicologia, de humanismo e de comportamento humano.