Cultura

ROSA DE ROSA DE LIMA COMENTA A FILHA DO CAPITÃO, ALEKSANDR PÚCHKIN

O romance ganha contornos da história real, a conquista da fortaleza por Pugatchóv, a morte do capitão, a fuga de Matcha, a prisão de Piotr e sua relação com o cossaco,
Rosa de Lima ,  Salvador | 21/11/2025 às 10:45
A Filha do Capitão
Foto: BJÁ
Falaremos de um escritor requintado. Diria que Aleksandr Serguêievitch Púckin (1799-1837) se encaixa nessa expressão. Revela-nos uma escrita leve, refinada, prazerosa. Afinal de contas Púckin é considerado o fundador da literatura russa moderna (não há unanimidade nessa afirmativa) e estamos falando de um poeta que viveu apenas 38 anos de idade na era do ouro da literatura europeia, século XIX, e teve contemporâneos na Rússia notáveis na arte de escrever.

   O livro que comentamos é o romance histórico “A Filha do Capitão” (Editora 34, RJ, reimpressão 2023, tradução de Boris Schnaiderman, prefácio de Otto Maria Carpeaux, imagem da capa de Eugène Delacroix, 207 páginas, R$53,00 no portal Amazon) um primor de narrativa  sobre a revolta camponesa de 1733, liderada pelo cossaco Emelian Pugatchóv, e que tem como núcleo central da trama a paixão de militar à serviço do império czarista (Piotr Griniov) que, enviado para servir na área onde explodiu o conflito, se apaixona pela filha do comandante da fortaleza, situada em lugar remoto.

   Em se tratando de uma narrativa que envolve um conflito armado, sangrento, a Rússia sempre foi um país onde as revoltas rolam muitas cabeças e corre sangue em demasia com crueldades extremas, era de se imaginar que a obra de Púchin trouxesse à tona de forma mais visceral esses fatos escabrosos. Ele não os omite, porém, os revela com astúcia e leveza, e foca sua narrativa no romance, no amor, no lirismo, o que torna o livro uma doçura.

   Otto Maria Carpeaux que foi um dos mais importantes críticos literários do Brasil, falecido em 2010, diz que a afirmação de que Púchkin foi o fundador da literatura russa moderna é pouco exata, pois teve no seu país percussores notáveis como Lomonóssov considerado o primeiro poeta moderno da Rússia; Radischev, destacado crítico social da prosa; Dierjávin, que escreveu odes insuperáveis; Karamzin – historiador notável; Jukóvski – grande tradutor de poemas gregos. Mas, mesmo assim, com esses escritores de escol nominados, confessa que Púchkin foi gênio universal, grande poeta lírico e épico. 

  O personagem (o ser) Púchkin viveu na época do despótico czar Nicolau I e em momentos de sua vida teria se vinculado aos decabristas - oficiais do Império que foram influenciados pela revolução francesa e conspiraram para derrubar o czar, muitos dos quais presos e enforcados e tantos outros exilados na Sibéria - foi perdoado por Nicolau I, casa-se com uma mulher frívola Natália Gontchanova, teria havido infidelidades diversas e numa prova de fogo para redimir uma delas, em duelo com o barão Heeckeren d’Anthès é morto. 

 Carpeaux diz que aos leitores ocidentais ele seria um romântico. Para os russos, porém, é o grande clássico de sua literatura. Mas, na literatura russa clássico é sinônimo de realista. () O nacionalismo de Púchkin é dos aspectos do seu realismo. E realista ele é sobretudo na prosa, nas novelas e nos contos () Mas a obra principal do realismo de Púchkin, na prosa, é a novela “A Filha do Capitão”, escrita em 1836. 

   O que tem de relevante nesta obra, ainda segundo a interpretação de Carpeaux, são as revelações do mundo antigo da Rússia - a aristocracia, a fidelidade leal do povo russo aos seus donos exposta sobretudo na submissão do criado Savélitch, este, sim, um personagem da ficção inventado pelo autor, porém, a encarnação exata de um servo da aristocracia. “A Rússia por inteira com seus donos e servos, oficiais e cossacos, casas grande e fortalezas, tudo com o sabor de um mundo que já se foi”, conceitua Carpeaux. 

   Ao ser destacado para servir na fortaleza de Belogórskaia. Seu pai, que era um aristocrata  enviou consigo um perceptor, isto é, um profissional experiente que supervisionou e orientou o ensino de Piotr. O serviçal levava alguns recursos e a orientação para cuidar do bem estar do jovem oficial. Logo, de cara, no início da viagem entre Petesburgo e Orenburg, Piotr se envolve numa bebedeira na localidade de Simbrisk com um certo Ivan Ivanovitch Zurin - capitão de hussardos - e perde uma aposta.

  Entra em cena o lacaio: - Piotr –  está começando muito cedo a farrear – disse ao vê-lo acordar com ressaca. E completa sua observação com uma represália verbal: - Parece-me que nem teu pai, nem teu avô foram borrachos. Quanto a sua mãe, nem tenho o que dizer: desde que nasceu nunca provou bebida, a não ser o kvás (bebida popular na Rússia). E lhe oferece um chá. Piotr repele: - Vait-te Savélitch; não quero chá.

   Piotr contrai débito numa tramoia e ordena a Savérlicht, encarregado do seu dinheiro, que mandasse ao enviado de Zurin 100 rublos. – Como, para quê – retrucou o serviçal. – Estou devendo a ele esta quantia. – Mas, quando pudeste senhor contrair essa dívida. Há qualquer coisa que não está certo em tudo isso. Faze o que queres, mas eu não entrego o dinheiro.

   - Sou teu senhor e tu és meu criado. O dinheiro é meu. Eu perdi, porque assim quis. Aconselho-te não resolver as coisas sozinho e fazer aquilo que te ordenam.

   Savélitch caiu em pranto. 

   - Paizinho Piotr – disse ele com voz trêmula. Não me faças morrer de desgosto, Luz de meus olhos. Escuta o que te diz um velho escreve àquele bandido que tu estavas brincando e que nem temos tanto dinheiro. Cem rublos! Deus misericordioso! Escreve que os teus pais te proibiram severamente de jogar, a não ser com avelãs...

 - Basta de mentiras! Passe-me o dinheiro, senão vou lhe expulsar daqui a pescoções.

   Savélitch me olhou com profunda amargura e foi buscar o dinheiro.

  Nesse diálogo entre um nobre militar de baixa patente e um serviçal o autor mostra, exatamente, como era a subserviência de parte do povo russo com a elite, chamando-o de paizinho e outros adjetivos. E Savélitch vai sofrer outras humilhações, mas, mesmo assim, não abandona Piotr.

   O livro surpreende pela sutileza dos diálogos, pelas colocações que Púchkin faz, por seu conhecimento da cultura russa do campo apesar de sua pouca idade.

   A viagem segue – os dois juntos – Piotr perdoa o lacaio e promete não gastar mais um copeque sem lhe consultar – a neve cobria tudo e o cocheiro aponta para uma nuvem que indica uma tempestade de neve a caminho, mas conseguem chegar a uma pousada.

   O autor encanta com seu texto leve: - Apeia-te, senhor – disse o cocheiro. – Chegamos aonde? – perguntei esfregando os olhos. – A uma pousada. Deus nos ajudou, e quase nos chocamos com o muro. Sai depressa senhor e vai esquentar o corpo.

   - Desci do carro. A tormenta continuava, embora com menos força. Era tal a escuridão que me pareceu ter ficado cego. O dono da casa nos recebeu junto ao portão, segurando a lanterna sob a aba do capote, e me introduziu num quarto de tamanho reduzido, mas bastante limpo. Um lume de madeira servia de lâmpada. Na parede estavam pendurados um fuzil e u alto chapéu cossaco.

    É com essa linguagem doce, fraternal que a pena de Púchkin segue narrando a jornada de Piotr. Ao chegar na fortaleza Belogórskaia conhece o comandante e sua filha Maria Ivânova (Macha), em princípio uma moça tímida e tola, mas, com o correr das semanas, Maria perdeu a timidez e “travamos relações”. Adiante, a união se realiza. E também, logo depois, a vida tranquila na fortaleza iria se agitar com a noticia da fuga de Emilian Pugatchóv, o herege cossaco revolucionário.

   O romance ganha contornos da história real, a conquista da fortaleza por Pugatchóv, a morte do capitão, a fuga de Matcha, a prisão de Piotr e sua relação com o cossaco, as lutas que seguem, o enfrentamento a Pugatchóv pelas tropas do Czar e sua prisão e morte, o perdão a Piotr e o final feliz com Matcha.

  Aqui terminam as anotações de Piotr Andrêievitch Girinóv escreve o autor. – Sabe-se, por tradição familiar, que ele saiu da prisão em fins de 1774, por ordem expressa da imperatriz, e que presenciou a execução da Pugatchóv, o qual, reconhecendo-o entre a multidão, fez-lhe um adeus com a cabeça, que foi toda. Pouco depois, casou-se com Maria Ivânovna. Os seus descendestes vivem até hoje, em franca prosperidade, no governo de Simbirsk.