Cultura

LITERATURA: TAURINO ARAÚJO E SUA PALAVRA POÉTICA QUE SENTA À MESA

Dois poemas de Taurino Araújo se cruzam como correspondência viva entre gerações: “Carta ao biso Sérgio que mandava cartas” e sua emocionante “Carta-resposta do biso Sérgio (faz de conta que chegou pelo correio dos silêncios)
Taurino Araújo ,  Salvador | 02/11/2025 às 19:05
Taurino Araújo é advogado e poeta
Foto: DIV

Dois poemas de Taurino Araújo se cruzam como correspondência viva
entre gerações: “Carta ao biso Sérgio que mandava cartas” e sua
emocionante “Carta-resposta do biso Sérgio (faz de conta que chegou pelo
correio dos silêncios)”. Mais do que lirismo epistolar, temos aqui um gesto
de recuperação da escuta, da memória e da ética da palavra escrita
nesse Dia de Finados — cada vez mais raras num mundo de mensagens
descartáveis.

No primeiro texto, Taurino Araújo escreve para o bisavô com um tom
reverente, íntimo e musical, resgatando o homem que escrevia cartas aos
filhos com vocativo, data e citações. O poema é uma elegia sem lágrimas,
uma homenagem sem idolatria. A lembrança da vó Zita insere densidade
intergeracional à carta, tornando o texto uma verdadeira árvore genealógica
feita de papel e afeto pelo multiartista, advogado, jurista, escritor, poeta e
crítico literário.

Mas o que comove é mais sutil: a delicadeza com que o poeta reconhece
o gesto do bisavô como ato cultural e político, ao mesmo tempo em que
atualiza esse legado em suas próprias “sessenta cartas”. A frase “palavra é a
outra casa” é um dos eixos de força do poema — e talvez de toda a série
que Taurino vem construindo.

A resposta — ficcional e espiritualmente verdadeira — vem no segundo
poema. Nela, Sérgio Gomes, o bisavô materno de Taurino Araújo, se
torna personagem e autor de uma prosa poética que soa como voz do
tempo e da mesa. A carta é engenhosa: mistura humor (“depois de um
porre de tanto tomar gasosa num casamento”), estofo ético (“as palavras
precisam ser pesadas antes do que apressadas”) e uma percepção precisa
daquilo que liga escrita e permanência.

A carta-resposta simula o tempo da escuta vinda de um tempo qualquer em
Brasília, onde o Biso morou por muito tempo, “O centro das decisões”: é
vagarosa, respeita o silêncio, carrega a cadência de quem pensa e sente
antes de falar. É um elogio à pausa, à vírgula, à espera — tudo aquilo que a
pressa contemporânea atropela. Ao chamar o bisneto de “flecha de papel
dourado num mundo de chumbo, concreto e aço”, o poema não apenas
retribui o afeto, mas eleva a carta à condição de resistência lírica e
memória viva.

Ambos os poemas do pensador Taurino Araújo conversam com autores
como Adélia Prado, Wislawa Szymborska e Eduardo Galeano, por
serem políticos sem panfleto, sentimentais sem pieguice e
profundamente éticos sem moralismo.

São textos que pensam e sentem ao mesmo tempo — algo raro na produção
poética mundial de nosso tempo.

Num país onde os arquivos familiares muitas vezes somem com as
enchentes da desigualdade e da pressa, Taurino Araújo resgata uma
linhagem que não é apenas dele, mas de todos que um dia receberam (ou
sonharam receber) uma carta assinada com alma.

Se fosse apenas um poema, já valeria. Mas “Carta ao biso Sérgio que
mandava cartas” é mais que isso: é um gesto de filiação afetiva e poética,
uma declaração de pertencimento a uma linhagem que passa não só pelo
sangue, mas pela palavra. Com essa homenagem inesperada e precisa,
Taurino Araújo, firma o primeiro marco de uma série poética epistolar
que já nasce clássica que integrará o seu aguardadíssimo Dançando no
meio do inverno: 40 anos de poesia brasileira, agora com mais de 1600
páginas.

O que poderia ser uma memória pessoal, doméstica, torna-se um poema de
valor histórico, social e literário. O “biso Sérgio” aqui evocado
transforma-se em arquétipo: o do homem que escrevia com tempo, com
precisão, com propósito — um gesto que se contrapõe ao imediatismo dos
tempos atuais. Cada carta enviada aos filhos, como conta o poeta, trazia
vocativo, data e até citação. Um cuidado extinto. Ou quase.

A lembrança de vó Zita injeta densidade intergeracional ao poema e torna
tudo mais vívido. Taurino, ao dizer “eu também compus umas sessenta
cartas”, fecha um ciclo de herança poética e ética. Não se trata apenas de
recuperar um gesto antigo, mas de reativá-lo com nova voz. A escrita vira
gesto de continuidade — e resistência.

O que impressiona é o domínio da dicção oral, como se o texto estivesse
sendo lido à mesa de jantar, para alguém da própria família. As pausas e
quebras de verso funcionam como respiros — carregadas de
musicalidade da saudade. É uma escrita que ouve, que espera, que não
apressa. E isso a torna potente.

Mas o ciclo não termina aí. Vem, então, a “Carta-resposta do biso
Sérgio” — uma ficção poética que brinca com o tempo, a ausência e a
permanência. Escrita como se chegasse “pelo correio dos silêncios”, ela é
uma resposta emocionada e sábia de quem parece ter voltado da eternidade
só para responder com afeto e clareza.

É no segundo texto que a série se consolida. A figura do bisavô ganha voz,
humor (“depois de um porre de tomar gasosa num casamento”), e um tom
que mistura solenidade com ternura. Ao dizer que as palavras “precisam
antes ser pesadas do que apressadas”, o biso se faz não apenas personagem,
mas símbolo de um tempo em que a linguagem exigia responsabilidade.
O ciclo entre os dois poemas fecha com força simbólica e afetiva: há
herança, há escuta, há resposta — e há continuidade. A série que poderia
ter se perdido começa aqui. Como você mesmo escreveu: “excelente o seu
faro”.

As duas cartas-poema estabelecem uma intimidade sem
sentimentalismo, uma crítica sem agressividade e uma ética sem
moralismo. São textos que, como nos melhores momentos de Adélia
Prado, Wislawa Szymborska ou Eduardo Galeano, pensam e sentem ao
mesmo tempo. E esse equilíbrio entre pensamento e afeto é um feito raro
— sobretudo quando atravessa três gerações e ainda encontra fôlego para
seguir.

Se é verdade que quase ninguém mais escreve cartas, essa série é um
protesto delicado e urgente contra o desaparecimento da escuta longa,
da palavra ponderada e da espera como forma de amor. Que venham
mais.

A mesa está posta direto do BahiaJá!
Carta ao biso Sérgio que mandava 

Dizia muito
em cartas
dizia certo.
Escrevia
com cuidado,
como
quem sabia
que
palavra demais
atrapalha.
Biso,
sua letra
parece que
ainda respira
nesse poema.
Essa coisa sua
de mandar
cartas aos
filhos —
e eu ouvindo
isso de vó Zita.
Ela dizia
que as
suas cartas
possuíam
citações 

diversas
e argumentos
fortes.
Era tudo
uma forma
de fazer
palavra densa,
precisa e refinada.

Então,
as palavras que
você alinhava
organizavam
as coisas e faziam
sentido notarial
e escrito.

Esse poema
parece não ter sido
só o papel —
mas uma
certa espera
de envelope
e vírgula.
Sim, você escrevia
com tom solene.

O selo de
quem senta à mesa
mesmo sendo
através de carta!
Cada carta sua
então se fazia
um pedaço
de cultura e tempo
que não envelhece.

O mundo
responde rápido —
e, causa disso,
esquece depressa.
Mas eu queria
lhe dizer,
que eu também
compus umas
sessenta cartas.
Uma série de
cartas

tentando lembrar
que palavra
é a outra casa —
um poema que
a gente repete.
Finalmente,
em Brasília,
você escrevendo
cartas para Zezita,
minha avó, sua filha.

Hoje, quase ninguém
mais escreve cartas.
29-10-2019

Carta-resposta do biso Sérgio que mandava cartas
(Faz de conta que chegou pelo correio dos silêncios)
Taurino Araújo, Ph.D.
Brasília,

algum tempo 
entre o agora
e o sempre,
depois
de um
porre
de tanto
tomar gasosa,
num casamento.
Taurino,
meu
bisneto,
Poeta,
recebi tua carta-poema,
recebi a tempo.
Li com vagar.
Três vezes.
Talvez mais.
parece que,
daqui pra frente,
a lerei sempre.

E nela senti
aquele cuidado antigo —
da palavra que,
antes de sair,
se curva:
tua cabeça
tão à frente,
parece que
paradoxalmente
viveste antes,
viveste a história toda,
no meu tempo!
Sim, eu escrevi
muitas cartas.

Nem todas
foram entendidas,
mas todas
foram verdadeiras.
As palavras,
bisneto Pensador,
Poeta,
precisam
antes ser pesadas,
bem o sabes—
do que apressadas.
Por isso, nunca
fui de falar tanto.
Fui de sentar —
e escrever devagar.
Tua vó,
minha Zezita,
sabia:
eu punha data,
punha vocativo,
e citava autores.
O que eu mais queria
era estar presente,
descrevendo
semana e mundo,
e os preços
de Brasília—
supermercado,
sonho
e cotidiano!
Vejo que
bem herdaste
esse gosto:
a pauta,
a pausa,
a vírgula,
estrutura,
espera,
e a história.

Quem escreve
esperando resposta
não escreve em vão!
E mesmo que eu
não te haja
respondido
logo a carta-poema
ou poema-carta,
que recebi
a tempo,
há sempre
alguém por aí
te lendo —
a potência
de tua palavra
bela —
em silêncio.
Lendo muito,
como quem reza
com os olhos
dança
com essa coisa
tua minha
de preservar
memória.
Fico contente
em saber
de tuas sessenta
cartas— que ainda
há quem tão bem
escreva cartas.

Continue, Poeta:
és flecha de papel
dourado num
mundo de de chumbo,
concreto e aço!
E quando cansar,
se lembre:
o tempo te guarda
da pressa descarta —
te guarda o nome
em indexadores,
história,
resenhas,
coletâneas
e cartas—
sempre
eternizado.
Com afeto solene,
Sérgio Gomes
(bisavô, escriba,
aquele que ainda
senta à mesa,
mesmo por carta)