Liliana Peixinho é jornalista, ativista humanitária, entusiasta do exemplo que registros históricos nos traz sobre o Ser, Francisco
Liliana Peixinho , Salvador |
05/10/2025 às 11:34
Plantão AMA Cabrobó luta pela preservação do Rio São Francisco
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São Francisco, o rio; e a história do Ser humano, Francisco de Assis, entraram na minha vida desde que me entendo como gente . E tudo começou lá na infância, com a família de minha mãe, Iracema, em Barreiras, nos passeios ao Rio de Ondas, braço do Rio Grande, Afluente do Velho Chico.
Como a Natureza sempre fora rota de vida, a história continuou, poucos anos depois, ainda criança, com 7 anos, para Juazeiro, depois que meu pai, seu Peixinho, e minha mãe, dona Iracema, então com cinco filhos, enfrentaram cerca de mil quilômetros oeste adentro, em estradas esburacadas e poeirentas, numa saga de mudança entre Angical/Barreiras até Juazeiro, onde a ponte que liga a Bahia com Perambuco, foi cenário de muitas histórias entre eu e meu pai, na espera da chegada dos vapores, saboreado melancia na beira do rio.
Arte como potência de vida
E foi em Juazeiro que o gosto pela arte, adquirida, em São Paulo, onde meu pai viveu, nos anos 50, abriria espaços de vida através do Cinema, com salas de projeção de filmes instaladas por seu Peixinho e o amigo Nilton. Entre centenas de filmes, de arte, aventura, chanchada, faroeste, musical, o filme "Irmão Sol, irmã Lua", lançado em 1972, direção de Franco Zeffirelli, cravou em meu Ser, de forma orgânica, a relação potente sobre a necessidade de harmonia entre Vida Humana e natureza.
São Francisco, como Homem, sem ser santo, despertou o sentido d"O outro no eu" (nome de grupo virtual que criaria, imagina, quase 60 anos depois, assim, sem nem pensar muito nesse sentido que vem de dentro) e que penso elevar a existência ao se observar e sentir os entornos do ambiente onde a vida insiste em continuar.
Vida e simplicidade
A nudez pública de Francisco de Assis, símbolo de indignação, luta e atenção ao que desde lá e historicamente, continua a desafiar estruturas religiosas, sociais, políticas e de comportamento individual.
Esta semana vi uma postagem sobre uma obra ecológica, de outro Francisco, o papa, onde a "Laudato Si" nos remete ao planeta como "Nossa casa Comum" cuja estrutura da Igreja como instituição é um verdadeiro paraíso, e diz-se poder aprender a cuidar do ambiente, através de cursos sobre a necessária harmonia entre ser humano e natureza.
Quando vi aquela perfeição de lugar, de imediato, pensei, se pago o que não posso para trabalhar em defesa da vida, e não consigo- depois de 25 anos - ver pratos decentes de comida para crianças, ricas ou pobres, obesas e mal nutridas, como o povo poderia acessar esses cursos que a Igreja está disponibilizando e que eficiência teriam em ambientes greenwashing?
AMA em movimento
Dia 04 de outubro sempre é dia de mais reflexão porque são muitas memórias de ação, Brasil e mundo afora, do Movimento ativista AMA, em atividade diária nesses 25 anos de existência. E podemos lembrar de alguns como a entrega do "Dossiê Velho Chico", pessoalmente, ao então embaixador da Unesco, em Paris, em 2002; do plantão de 28 dias na casa da anfitriã "Mãe Isaura" , na Comunidade rural de São Sebastião, em Cabrobó, marco da mobilização pela Revitalização do Rio São Francisco em 2005, durante e depois, a histórica greve de fome do Bispo Dom Cappio; a ação intinerante e permanente "Imersões Jornalísticas Comunitárias Sertão adentro- Brasil afora"; a campanha voluntária no Movimento Marina Silva, e posterior criação da REDE- Sustentabilidade; campanhas permanentes e itinerantes como "Desperdício Zero, Fome Zero, Lixo Zero"; "Tire o cimento, plante o alimento", "Floresta em Pe"; Agenda ADA- Ações Domésticas Ambientais ", entre tantas, que se ampliam com novos desafios.
São muitos os Franciscos inpiradores como Assis, italiano de uma pequena cidade, familia abastada, que botou os pés no chão, a mostrar ousadia, coragem no olhar sobre o outro.
Diferente dos pais de Francisco de Assis, meus pais foram e continuam sendo Norte, como filha inquieta com injustiças, fome, desigualdade, desumanidade, indignidade no viver.
Na contramão do poder
Francisco de Assis deixou de lado valores cultuados como brasão familiar, tranquilidade, herança, e foi ao encontro de gente sem teto, sem comida, sem saúde. Num texto de Fábio José Garcia Paes, Francisco rasga o mapa do poder, ignora a lógica dos castelos e da cúria, escolhe viver do lado de fora- dos muros, das normas, das certezas".
Como filha de pais que foram exemplo de trabalho na proteção da natureza, e neta de vó que ensinou a entender a coragem de Francisco, é sonho realizar a construção de uma estrutura em pedras (deixadas por meu pai) como um lugar potente em informações para ensinamentos sobre proteção dos ambientes como nossa casa comum.
Aquela roupa, despojada, de Francisco, remete a cor da roupa da labuta do trabalhador do campo, onde a terra é símbolo de vida.
No precioso texto de Fábio José Garcia Paes, diz que "Francisco fugiu da santidade feita de ouro e ritual". E que, mesmo no fim da vida, quando já era reverenciado como um santo vivo, fez um último pedido: que o deixassem morrer nu, deitado na terra.
A reação dos "Irmãos" foi de desespero : “isso vai destruir sua imagem!”. Observação que pode reforçar respeito, admiração por um Francisco sem interesse em imagem. "Ele queria viver o mistério. Francisco não fundou uma ordem".
Obra poética
Como que movido pela potência da Natureza, Francisco "deu início a um sopro. Um movimento que não vem da lei, mas da arte. Da intuição. Do espírito.
Suas obras não são tratados. São poemas".
O quase milenar "Cântico do Irmão Sol "tem interpretação profunda como oração/manifesto.Um texto que, segundo estudiosos "desestabiliza o antropocentrismo antes que a palavra existisse".
Fraternidade e revolução
Aos 15 anos, numa excursão da cidade de Senhor do Bonfim, (onde morava), para Salvador, numa apresentação musical do Padre Zezinho, na Concha Acústica, me encantei com a mensagem poética de Francisco assim interpretada "É um hino onde o Sol é irmão, a Terra é mãe, o Fogo é alegre, a Morte é irmã, e até o verme mais ínfimo entra no coro da Criação. O Ser Francisco revela que a fraternidade é revolucionária. Longe de ritos rasos religiosos, reforça a interpretação da fraternidade "Não como um sentimento fofo ou ideal, mas como prática radical de convivência".
No mundo em cenários de violência, desrespeito, intolerância, "viver com o outro - o outro real, que incomoda, que pensa diferente, que nos desorganiza- é mais difícil do que votar, legislar ou discursar". E vamos concordar que "fraternidade não é um acessório da democracia- é sua alma. É viver o vínculo para além do controle, da utilidade ou do consenso". Vale reproduzir a ideia de que Francisco não se limitou a amar os humanos. Ele irrompeu a lógica da exclusão, chamando tudo e todos de irmãos".
Um poeta, inspirado nessa mesma vida que desinstalava o ego e refundava o afeto, compôs a célebre Oração da Paz. Não foi Francisco quem a escreveu- mas foi ele quem a viveu. Palavra por palavra.
E vale reproduzir e interpretar a interpretação de Fábio José Garcia Paes quando sublinha,
Ao dizer :
“Onde houver ódio, que eu leve o amor”,
é declarar guerra à lógica do revide.
“Onde houver ofensa, que eu leve o perdão”
é romper o ciclo da troca.
“É dando que se recebe”
é virar a economia de ponta-cabeça.
“É amando que se é amado”
é abandonar a exigência de retorno.
"A Oração da Paz não é um pedido: é um deslocamento.
Uma inversão do jogo. É Francisco encarnado num poema.
Francisco foi corpo aberto ao invisível.
E por isso incomoda tanto.
Porque ele mostra que é possível existir fora do esquema, fora da máquina, fora do script. E mesmo agora, tantos séculos depois, é difícil capturar quem ele foi. O “poverello” - o pobrezinho - ainda escapa. Ainda assombra. Ainda inspira".
O outro no eu
Num mundo onde a vida, planeta afora, pede socorro, quando consumo é símbolo de desejo, mais que necessidade, Francisco possa ser exemplo, inspiração, vivendo, escolhendo a simplicidade, como ele.
É difícil entender uma política que faz acordos com deliberação de bilhões de dólares para estruturas de guerra e impede uma flotilha em chamar atenção ao mundo que humanidade se faz com ações contra, por exemplo, o uso de alimentos como arma de guerra.
"E a terra geme sob a lógica do capital.
Os corpos seguem descartáveis.
A dignidade virou exceção.
E a Casa Comum está à venda.
E como a Natureza é mãe poderosa
"o vento ainda sopra,
a água ainda corre,
o sol ainda nasce.
E Francisco, com os pés descalços e o olhar firme, segue nos perguntando, sem pressa, mas sem trégua:
Quem és Tu?
E quem sou eu?
Talvez aí - nesse abismo entre o "eu" e o outro - esteja o começo de tudo", nos faz refletir, Fábio José Garcia Paes.
Que egos desinflem, que corações batam forte, que mentes se agigantem em cérebros conectados com "O outro no Eu".