Cultura

ROSA DE LIMA COMENTA PASTINHA O MENINO QUE VIROU MESTRE DA CAPOEIRA


Era essa arte que Pastinha se tornou mestre e fez escola no Pelourinho e vocês têm na obra de Barreto e Cau um documento valioso para lerem e guardarem com carinho.
Rosa de Lima ,  Salvador | 26/09/2025 às 21:25
Pastinha o menino que virou mestre de capoeira
Foto: BJÁ

  Um livro baianíssimo é como pode ser classificada a obra de José de Jesus Barreto (texto) e Cau Gomez (ilustrações) que narra a vida de Vicente Ferreira Pastinha nascido em Salvador no ano de 1889, filho de um comerciante espanhol que atuava no Pelourinho, na Rua do Tijolo, e de uma descendente de escravos africanos nascida em Santo Amaro da Purificação.

O menino nasceu um ano depois do fim formal da escravidão no Brasil e publicação da Lei Áurea, em 13 de maio de 1888, quando a Bahia vivia momento de incertezas e queda na economia diante da decadência do cultivo da cana no Recôncavo e da produção de açúcar para a exportação, que ainda era o principal produto da balança comercial baiana e que mantinha de pé o governo da Província.

Salvador nessa época tinha 150 mil habitantes a maioria afrodescendentes e pobres, como, aliás, ainda é hoje, e Pastinha e outros euro afro baianos da capital vieram se somar muitos negros que trabalhavam como escravos nos Engenhos do Açúcar de São Francisco do Conde, Cachoeira, Santo Amaro, etc, em busca de novas oportunidades de trabalho e na conquista de uma vida melhor, na capital, longe dos escravocratas que comandam os engenhos.

“Pastinha - o menino que virou mestre de capoeira” (SOLISLUNA Editoria, Salvador, BA, edição Valéria Pergentino, livro em formato 20.5 cm x 27 cm, 36 páginas, à venda no portal da editoria e nas livrarias de Salvador, R$75,00) é uma obra de arte. Ao texto leve e poético de José Barreto se somam as ilustrações de Cau Gomez e seu traço com uma força imagética que nos leva ao realismo de uma Bahia pós escravidão, num claro escuro onde predominavam o racismo acentuado, a perseguição da polícia às manifestações da cultura afro baiana no batuque, na dança, na prática do candomblé e da capoeira.

Tudo isso você vai ler e ver nesta obra da Solisluna e se encantar com o que está escrito e gravado, desde a infância de Pastinha no Taboão até se tornar o mais famoso mestre da capoeira Angola da cidade do Salvador e ensinar essa arte-luta aos seus discípulos no casarão amarelo ao lado da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, no coração do Largo do Pelourinho, onde também apreciava as paisagens e o vai e vem de baianos e turistas.

No livro, inclusive, há a reprodução de uma foto feita por Zelia Gattai, esposa de Jorge Amado, mostrando o mestre sentado no banco ao lado de Jorge Amado, ambos a contemplar o largo. Ambos também já de cabelos brancos.

É essa Bahia que está no livro de Barreto e Cau. O escritor narra na página 15 como o mestre aprendeu o jogo da capoeira, que na época não era um jogo e sim – na visão das autoridades e da polícia - uma prática criminosa de negros baderneiros: - Eu aprendi com a sorte. Quando tinha uns 10 anos – eu era franzininho. – um outro menino mais taludo do que eu tornou-se meu rival. Era só eu sair na rua – ia na venda fazer compra, por exemplo – a gente se pegava em briga. Só sei que acabava apanhando dele, sempre. Então eu ia chorar escondidinho de vergonha e tristeza. 

  - Vem cá meu filho, ele me disse, vendo que eu chorava de raiva depois de apanhar. ‘Você não pode com ele, porque ele é maior e tem mais idade. O tempo que você perde empinando raia vem aqui para meu canzuá [que na língua banto significa casa] que vou lhe ensinar coisa de muita valia’. Foi isso que o velho me disse e eu fui.

   O velho africano chamava-se Benedito, era um grande africano e, quando me ensinou o jogo, tinha mais idade do que eu hoje (mais de 70 anos). 

   Ele costumava dizer: ‘Não provoque o menino, vá devagarzinho botando ele sabedor de que você sabe’. Então ele me ensinou a jogar capoeira, todo dia um pouco e aprendi tudo.

  Depois de servir a Marinha formou seus primeiros alunos, agrupou pioneiros e algumas mulheres valentonas como Maria Homem e Palmeirona e especializou-se na capoeira Angola – jogo mais ao rés do chão – com a ginga do corpo dos jogadores ao som dos berimbaus, o gunga (principal berimbau da roda) dando os primeiros toques, seguido pelos outros berimbaus, pandeiros e agogôs e atabaque iniciando-se o jogo.

  Há, na capoeira, os golpes considerados básicos – benção ou chapa de frente, aú, bananeira, meia-lua, rabo de arraia, chapa de costas, cabeçada, cutilada etc – mas o jogo em si, o gingado dos corpos tem uma infinita variedade de posições que vai acontecendo no decorrer do dançar dos corpos, dos desafios, da agilidade dos contendores, enfim, há um improviso que é livre embora, sejam respeitadas e exigidas as regras básicas, os golpes ensinados pelos mestres.

   Uma cabeçada – por exemplo – será sempre uma cabeçada. A questão é em que momento o jogador vai praticar a cabeçada e como o outro jogador vai se defender. Aí, portanto, está a arte da capoeira, a surpresa, a agilidade, o pensar rápido na defesa e no contra-ataque deixando o jogo mais frenéticos e entusiasmado, porém, sempre no comando da orquestra. É um ritual harmônico: os jogadores devem sempre seguir o ritmo dos berimbaus e os cânticos dos mestres. Atravessar, jamais, desafina.

  Era essa arte que Pastinha se tornou mestre e fez escola no Pelourinho e vocês têm na obra de Barreto e Cau um documento valioso para lerem e guardarem com carinho.