Cultura

ROSA DE LIMA COMENTA O PINTOR DE BATALHAS, DE ARTURO PÉREZ-REVERTE

Eis, pois, onde encontrar o sabor deste livro: nos diálogos que vão seguir adiante entre o pintor (ex fotógrafo de guerra) e o sérvio (sobrevivente de um massacre durante a guerra e cuja imagem foi utilizada pelo fotógrafo)
Rosa de Lima ,  Salvador | 22/08/2025 às 22:25
O Pintor de Batalhas de Arturo Pérez-Reverte
Foto: bja
  Membro da Real Academia Espanhola, Arturo Pérez Reverte, 76 anos, tem sua obra literária pouco lida pelos brasileiros salvo os aficionados ou aqueles que se dedicam aos estudos de escritores da Espanha que são muitos e bons. 

   Falando nisso, a Espanha que tem 1/5 da população brasileira, hoje em torno de 48 milhões de habitantes, pouco mais do que existe somente em São Paulo, tem uma indústria livreira mais potente do que no Brasil e os espanhóis leem muito mais do que nós.

   Pérez-Reverte foi repórter de guerra durante vinte e um anos e vem publicando romances e ensaios há muitos anos desde que estreou com o romance “Hussardo” sobre as guerras napoleônica, em 1986, e o último dos seus trabalhos “Sabotagem” é de 2019. 

   Vamos, no entanto comentar o que considerado o mais sublime de sua obra o romance intitulado “O Pintor de Batalhas” (Editora ASA, Alfragide, Portugal, 229 páginas, 2007, capa Maria Manuel Lacerda, tradução Helena Pitta, R$80,00 no portal Amazon) vencedor de um prêmio internacional na Itália, onde o autor leva o leitor a analisar o comportamento humano de um pintor ex-fotógrafo de guerras e conflitos sangrentos do século XX a se isolar do mundo, vivendo um lugar ermo próximo a um castelo onde executava um mural com tema da guerra e é ameaçado de morte por um personagem que havia sobrevivido a um desses conflitos na Europa central, um sérvio.

   O enredo é espetacular. O sérvio era um sobrevivente de guerra que fora fotografado pelo pintor e que teve a cena registrada na foto estampada em manchetes de jornais e emoldura o livro mais famoso do fotógrafo “The Eye of War”, o qual peregrina pela Europa para saber onde o fotógrafo habitava, pois, se considerava usado, sua imagem como a síntese do caos, o fotógrafo se tornando famoso e rico as custas dele e de outros, pois, muitas eram as fotos no livros e nas revistas especializadas, especialmente na “Newzoom” e a recompensa que teria, longe de pedir uma indenização pecuniária, seria a morte desse ser que ultrajou a sua personalidade.

  A base da história é essa. Coube ao autor, no decorrer de sua pena e da sua imaginação literária, em parte com base em fatos – afinal foi correspondente de guerra por muitos anos integrando também a equipe de um canal de TV da Espanha – e retratava a arte, a guerra, o amor, a solidariedade, o livre pensar e existir, uma combinação incrível de momentos que só os conflitos são capazes de gerar. 

   Evidente que para escrever um livro com esse enredo é preciso que o autor tenha conhecimentos de fotografia, de pintura e da solidariedade humana. E ele expressa isso de maneira detalhistas no decorrer da obra citando como calibrar uma máquina fotográfica para obter a melhor foto, os ângulos, as simetrias; e em relação a pintura o uso adequado das tintas, a mistura dos tons, o utilizar os pincéis adequados e assim por diante. Quem conhece de fotografia e de pintura observa que os detalhes apresentados pelo autor não são aleatórios. Pelo contrário: obedecem e seguem técnicas consagradas dessas duas artes.

   A obra de Pérez-Reverte se torna atraente e com grande valor literário porque ela mescla esses atributos de tal maneira e com sabedoria que mantém o leitor preso à sua narrativa e com vivo interesse sobre o que vai acontecer, afinal, logo nas primeiras páginas quando o sérvio que se dizia chamar Markovic o encontra, apresenta os livros e revistas que lhe incomodavam e levaram a fama o pintor (Faulques) e diz que vai matá-lo, diante de ter sido usada a sua imagem sem autorização.

  Essa jura, essa predisposição, também leva o leitor a se interessar em saber como o autor vai conduzir o livro, os diálogos entre ambos até que aconteça a morte, quando ela se dará, de que maneira acontecerá e como Faulques poderá se livrar da morte.

   A escrita se engrandece exatamente nesses momentos dos diálogos, das reflexões, da existência humana, do valor da vida e assim por diante, na conversa desses dois seres na colina onde se situava o castelo e na vila à beira mar próxima desse local, onde o pintor vivia e se abastecia em materiais de pintura – óleos, vernizes, pincéis, espátulas – para a realizar do seu mural.

  - O visitante fumava concentrado num novo cigarro, como se cada porção do fumo fosse valiosa. Faulques identificou os velhos gestos do soldado ou do prisioneiro. Vira fumar muitos homens em muitas guerras, onde o tabaco era com frequência a única companhia. O único consolo. 

   - Uma noite – continuou Markovic – um grupo de chetniks apareceu na casa onde viviam a mulher sérvia e o filho do croata. Violaram-na um atrás do outro, as vezes que quiseram. Como o miúdo de cinco anos chorava e se debatia defendendo a mãe, cravaram-no à porta com um golpe de baioneta: tal como aquelas borboletas na cortiça, veja lá, as do efeito de que me falava antes. Depois, quando se cansaram da mulher, cortaram-lhe os peitos e degolaram-na. Antes de irem embora, pintaram na parece uma cruz sérvia e as palavras” Ratazanas ustaches.

   - A guerra – disse o pinto depois de pensar o que responder ao sérvio – só pode ser bem fotografas se, ao levantarmos a máquina fotográfica, não formos afetados pelo que vemos...o resto é preciso deixar para mais tarde.

  - O senhor tirou fotografias de cenas como a que acabo de lhe contr, não é verdade?

  - Dos resultados, sim. Tirei algumas.

  - E em que pensava enquanto focava, calculava a luz e tudo o resto?

  Faulques levantou-se à procura da garrafa. Encontrou-a em cima da mesa, junto dos frascos de tinta e do copo vazio do visitante.

  - Na focagem, na luz e em tudo o resto – respondeu.

  - Por isso lhe deram o prêmio pela minha fotografia? ...porque eu também não o afetava?

   Faulques servira-se de dois dedos de conhaque. Apontou com o copo para a pintura mural, que começava a cobrir-se de sombras. 

  - - Talvez esteja aqui a resposta.
                                                                     ***
   Eis, pois, onde encontrar o sabor deste livro: nos diálogos que vão seguir adiante entre o pintor (ex fotógrafo de guerra) e o sérvio (sobrevivente de um massacre durante a guerra e cuja imagem foi utilizada pelo fotógrafo sendo merecedora de prêmio e aclamação), as indagações sobre a importância da vida, o respeito ao semelhante diante do mais pavoroso dos momentos, a guerra, a insanidade brutal da guerra onde a palavra de ordem é matar, executar o inimigo de qualquer maneira, e o refletir do profissional da fotografia defendendo a sua parte, a sua arte, o seu oficio, sem resignar-se entendendo que integra um conjunto do cenário.

   Ou seja, o fotógrafo de guerra não registra momentos de um conflito pensando em ganhar prêmios ou usufruir de fama ou ganhos pecuniários. Isso pode acontecer como consequência alheia a sua vontade. 
   Faulques, portanto, ao pintar um grande fresco circular numa torre de vigia do Mediterrâneo, onde vive sozinho, perturbado pela memória de uma mulher que nunca conseguiu esquecer e por um homem que deseja lhe matar, tenta transmitir o caos do universo com o mural em que retrata batalhas (daí o título do livro O Pintor de Batalhas) e procura compreender sua trajetória de vida como fotógrafo de guerra e resumi-la numa imagem que supostamente seria a definitiva, usando para isso não a máquina fotográfica e sim os pincéis e sua imaginação do que estava gravado em sua memória.

   O final lembra os barqueiros que transportavam a morte para Caronte.