Cultura

ROSA DE LIMA COMENTA EU, TITUBA - BRUXA NEGRA DE SALEM, MARYSE CONDÉ

O romance de Maryse dá voz a uma das mulheres de diáspora e do povo negro de Barbados, por extensão as caribenhas e escravizados e oprimidos de outros continentes
Rosa de Lima , Salvador | 18/07/2025 às 18:24

  Após uma rodada de comentários sobre obras de autores nacionais voltamos aos estrangeiros em mesa com seis autores começando com a guadalupense Maryse Condé (1934-2024), ex-professora de francês e filologia românica nas universidades de Colúmbia e Harvard, difusora da cultura africana no Caribe, ativista, autoria de ensaios, contos, novelas, poemas, mais conhecida por seus romances Sagu (1984) e Eu, Tituba: bruxa negra de Salém (1986).

  É exatamente este romance Eu Tituba (Editora Rosa dos Campos, RJ, 2024, tradução de Natalia Borges Polesse; prefácio de Conceição Evaristo, 13ª edição, 247 páginas, R$46,00 Mercado Livre) que vamos comentar. Condé descreve os aparatos do colonialismo extremamente perversos no Caribe (Barbados) e o pânico moral em torno das bruxas de Salém, Massachusetts, EUA, um dos episódios mais destacados sobre a bruxaria no território norte-americano que aconteceu entre fevereiro de 1693 e maio de 1694, julgamento que levou a morte 19 pessoas por praticarem bruxaria e não aceitarem a religião anglicana.

   O romance de Maryse dá voz a uma das mulheres de diáspora e do povo negro de Barbados, por extensão as caribenhas e escravizados e oprimidos de outros continentes, de um ser de alma livre e que não submeteu aos caprichos dos colonizadores que além de explorarem essa mão de obra de descendentes de africanos queriam também dominar a alma e o espírito impondo crenças que não eram as suas de raiz e isso violava a liberdade dos seres de alma livre.

  No prefácio Conceição Evaristo lembra que “já nas primeiras linhas da narrativa, a voz da protagonista, em primeira pessoa, revela: ‘Abena, minha mãe foi violentada por um marinheiro inglês no convés do Christi The King”, num dia de 16** quando o navio zarpava para Barbados. Dessa agressão nasci. Desse ato de agressão e desespero’. A concepção de Tituba por meio de um ato de violência metaforiza a povoação das Américas. A história da colonização do continente americano foi marcada por estupro das mulheres indígenas e africanas escravizadas”. 

  Segundo Conceição Evaristo no escrito do prefácio “a memória da escravidão vivida pelos povos africanos diversas vezes é conclamada pela personagem, na medição dos sofrimentos pelos quais ela passa no presente. Barbados, como metonímia da África, lugar distante, é retomado pela memória nas terras em que Tituba se encontrava isolada. A personagem, sujeito diaspórico, avaliava as dores do presente em consonância com as dores de seu povo no passado e concluía que: “[...] o sofrimento e a humilhação tinham plantado seu império. A vil esquadra de negreiros continuava fazendo girar a roda da miséria. Quebre moinho, corte a cana, entre meus braços e que meu sangue tinha seu doce sumo”.

   A obra oferece também uma leitura elucidativa no período em que a moral puritana imperava sobre a sociedade, as mulheres sob o poder de um patriarcalismo exercido pelos homens de sua família e pela igreja.

   No enredo histórico, Tituba foi uma escreva que viveu no século XVII cujo dono era o reverendo Samuel Parris, Salém, Massachusetts, e teria sido originária da Venezuela. Há dúvidas sobre sua real existência. Maryse Condé, no entanto, revive a personagem colocando no contexto da história, pois, sabemos todos, as vidas de milhares de negros foram apagadas pelos historiadores.

   No livro, Tituba nasceu escrava, mas passou por um momento de liberdade durante sua infância e juventude, voltando a ser escrava no tempo em que escolheu se casar com um escravo. Na visão de Condé, Tituba preferia permanecer presa, desde que fosse amada, a viver livre, porém sozinha; infelizmente foi o seu amor que teceu um destino tão horrível para ela. 

   Obviamente que a autora mescla narrativas do julgamento em Salém, 1693, real, documentado, e partes ficcionais que tornaram Eu, Tituba, uma história especial, já que pouco se sabe sobre sua vida antes e, principalmente, depois do episódio de Salém. 

   Um romance permite que um (a) autor (a) navegue sua pena com observações do dia-a-dia, do aconchego, do comportamento de escravizados como servis para tentarem sobreviver, e dos momentos de festa, de prazer, de sexo com os seus, entre os escravos, as danças, as relações sociais e familiares, o culto a ancestralidade e assim por diante.

   O livro está repleto desses momentos: - John Indien dançava com uma negra pele clara e traços africanos – um tipo conhecido como chabine -, alta, que usava um turbante típico – o masdra calendê. Ele abandonou-a de súbito no meio da pista e veio até mim, estrelas plenas em seus olhos, que lembravam do ancestral aruaque”. Ele ri: - É você? É você mesma? Depois ele arrastou: - Vem, vem. Eu resisti: - Não sei dançar. Ele deu uma gargalhada. Meu Deus, como aquele homem sabia rir. E a cada nota que fugia de sua garganta, uma tranca do meu coração se soltava.

   - Uma negra que não sabe dançar? Onde já se viu?

   Logo fizeram um círculo ao nosso redor. Asas brotaram dos meus calcanhares, nos meus tornozelos. Minhas ancas e minhas cinturas estavam soltas! Uma misteriosa serpente havia entrado em mim. Era essa a serpente primordial sobre a qual Man Yaya tinha me contado tantas vezes, figura do deus criador de todas as coisas da superfície da terra? Era ela que me fazia vibrar?

   A narrativa de Maryse Condé, que se dá em primeira pessoa é contundente como uma navalha. Vai deixando marcas, riscos, percepções as mais variadas nos leitores, seguindo a trajetória da personagem na esperança de que tenha um final feliz, mas, à cada momento, cada estrada à perseguir Tituba vai encontrando óbices e enfrenta-os com a força de sua personalidade e o desejo de ser livre e não se submeter à ninguém, nem mesmo a Indien de quem se apaixonou e vai ter um filho.

     Escrito por uma das mais importantes escritoras negras da atualidade, Eu, Tituba recebeu, em 2018, o prêmio New Academy Prize Award (Prêmio Nobel Alternativo da Literatura). Maryse Condé faleceu em 2024, aos 90 anos de idade. Em 2021, foi agraciada com o Cino Del Duca, principal premiação francesa destinada a reconhecer os grandes responsáveis pela divulgação de ideias humanistas. 

    Na obra em tela, ao longo do relato, comenta Conceição Evaristo, percebe-se que a experiência de ser “coisa escravizada” nas mãos dos senhores e das senhoras não retira de Tituba a humanidade. Ela cuida da criança, a filha da senhora. E foi justamente nesse cuidado, nesse zelar pela vida de Netsey, a pequena filha do casal Parris, que Tituba sofre a suspeição de ser uma bruxa. Torna-se vitima de quem a protege”.

   O final do livro é chocante. Depois de escapar do julgamento em Salem volta a Barbados e a sua cabana, grávida e redobra rezas e sacrifícios na esperança de que os invisíveis “me mandassem um sinal”. Tituba pergunta a Man Yaya e Abena, minha mãe. As duas velhas se livraram sempre me enrolando: - Aquele que quer saber porque o mar é tão azul acaba por morrer no fundo das ondas.

   Tituba se envolve numa revolta com um filho amante. – La fora, o cavalo da noite galopava! Cata-prás. Cata prás. Abraço em mim meu filho amante galopava () ...muitas imagens passam pela cabeça de Tituba, John Indien, Susana Endicort, Parris...e o cavalo da noite galopava () ...na fria e funesta América. A revolta fracassa e a cabana de Tituba é cercada por soldados. – Eu fui a última a ser conduzida à forca. Ao meu redor, estranhas árvore se eriçavam com estranhos frutos.

   Na ficção tudo pode e Condé nos oferece um livro que descreve o terror que foi o colonialismo e o caos do pós-colonialismo com vínculos a fatos reais, poesia, o amor como a pureza das águas azuis do oceano, a dureza da vida para os negros escravizados e libertos, uma luta incessante entre a vida e a morte, a progressão, a liberdade e a dignidade humana. Enfim, um belíssimo livro.