Ohilma disparou um tiro com carga de chumbinhos e a serpente rodopiou no ar e quando ia caindo em nossa direção tirei o facão da bainha e cortei seu pescoço.
Tasso Franco , Salvador |
22/04/2025 às 10:40
Cardeais voam para o além
Foto: Seramov
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OS CARDEAIS SUMIRAM
A Serra dos Cardeais é a nossa fortaleza. Não no sentido de forte com canhões e soldados armados de mosquetões para defender a costa marítima como vemos com frequência nos documentários da TV. A apreciamos como força da natureza e de proteção ambiental. Inspiração a paz. Um encanto que tentamos preservar ao máximo.
Por isso mesmo fiquei sem acreditar que as cobras com que havia sonhado - uma delas me esmagando e a outra engolindo a perna de Roque – tivessem vindas da nossa serra. Pareceu-me mais uma coisa do campo da bruxaria, de um Pé-de-Botelho oculto, um tinhoso para me atormentar num momento de aflição, do que algo que tenha brotado da natureza.
Dizem que no banquete dos roxos quanto mais tormentos são revelados mais prazer têm. Riem daqueles que sofrem por amor, adoram o gênero musical sofrência, caçoam dos oprimidos e estão sempre pensando no mal.
Eu, Ohana, no entanto, sou mais forte do que se imagina e se pensam que vão me amedrontar com uma ou duas cobras se enganam, nem um serpentário.
No dizer do povo a serpente é sobrinha do sombrio, do corvo de bico torto, e já sabendo disso tenho e uso meus protetores.
Sigo em frente como sempre fui. Mas, como seguro morreu de velho, convidei minha irmã Ohilma para fazermos uma vistoria na trilha do calvário onde o povo fincou no chão 7 cruzes representativas da caminha de Cristo, em Gólgota, onde, no alto, em nossa serra, há um cruzeiro para orações e se tem bela vista do povoado.
Levei comigo o facão de Roque amarrado na cinta como uma camponesa e Ohilma muniu-se de uma espingarda e um pinção próprio para captura de cobras.
Seguimos cedo a caminhar nessa expedição exploratória pela trilha mais comum e usada pela população e, a depender do resultado alcançado poderíamos, se tempo desse, descer pela trilha Sul, mais íngreme, onde há uma gruta nas terras da fazenda de Sêo Aluizio.
O resultado de nossa caminhada não foi dos mais auspiciosos em relação aos reptéis. Ohilma – a meio caminho - só capturou uma cobra verde de duas cabeças inofensiva.
Enfrentamos, no entanto, uma alerta adicional ao encontrarmos na sexta cruz, nas proximidades de um pequeno oratório de pedras, uma mulher orando, a qual que teve o atrevimento de perguntar o que fazíamos na serra naquela hora.
- Quem vem lá? – perguntou.
E quando eu disse que éramos do povoado e estávamos passeando, se surpreendeu e quis saber porque estávamos armadas. Respondi que era um direito e caçávamos cobras.
- Ah! que atrozes. São minhas primas, não mexam com elas.
Confesso que me arrepiei e Ohilma que tem mão forte levou a espingarda ao ponto de mira.
Em seguida, perguntei: - Quem és tu.
Ela se levantou do pequeno oratório, arremessou uma pedra na cruz e disse se chamar Libuca, dona da mata virgem, das florestas e córregos. Sem mais falar abriu os braços, tomou de uma vassoura e voou em direção a Serra do Lagarto, em Sergipe, soltando das ventas uma fumaça azulada e lançando contra nós uma serpente que saiu de sua boa.
Salvamo-nos porque Ohilma disparou um tiro com carga de chumbinhos e a serpente rodopiou no ar e quando ia caindo em nossa direção tirei o facão da bainha e cortei seu pescoço.
Daí voltamos correndo para casa e passei a entender que os sonhos que havia tido com as cobras eram artes de bruxaria.
Descemos de mãos dadas eu cantando a quadrinha: A paz fugiu de mim/A saliva da cobra é preocupação/Atira na serpente irmã/Corto a cabeça dela com o facão.
Um arco íris apareceu no céu e houve revoada de cardeais não sei se a seguir a bruxa ou chamados por São Francisco.
E segui cantando até chegar ao povoado: Voem, voem, cardeais/ A espingarda não falha tiro certeiro/ Voem, voem, cardeais/Meu facão decepa cobra em galinheiro.
Que sapecas somos.
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Durante um tempo fiquei atormentada com essa plenitude e minha angústia só aumentou porque o governo não abria a escola São Miguel novamente, onde os nossos filhos (falo por mim e pelas outras famílias) estudavam e necessitavam dar seguimentos aos seus cursos. Na sede da Terra do Sol as aulas já tinham recomeçado e no nosso povoado nada.
As psicólogas, os promotores e os policiais já tinham retornado para suas bases, os políticos desapareceram e nós voltamos à nossa rotina e ficamos como sempre desamparados tocando as novas vidas como tocávamos antes. Ao que parece uma maldição dos céus se abateu sobre nós.
A alternativa mais prática que imaginei foi me aconselhar com tio Damasceno, homem viajado e experiente, o qual poderia me falar alguma coisa da natureza, do meio ambiente; e com o diácono Clóvis que sendo letrado em religião, dizia ter feito um curso de teologia pela internet, poderia esclarecer algo sobre bruxaria e maldição.
Na minha cabeça a nossa comunidade passava por essa provação e na semana santa eu ouvi o papa falando na TV que a estrada da vida era cheia de dificuldades.
E, por isso mesmo, é preciso ter fé e estar sempre pronta para enfrentar as labaredas de fogo emanadas pelos sopros dos demônios e pendurar na porta principal da casa uma placa azul com uma cruz branca e os dizeres “Cristo reina nesta casa”.
Tio Damasceno que desde jovem percorria a trilha da Barra do Vento com um amigo chamado Cutia, segundo ele imitador de pássaros; e outro apelidado de Aderaldo, cantador e tocador de viola, e também fazia o Caminho do Calvário somente na semana santa, me confessou que nunca viu nenhuma bruxa na serra e os pássaros, de fato, em determinada época do ano migravam para a Serra do Lagarto, mas vão em busca de comida e acasalamento.
Quanto ao diácono Clovis pensei que entendesse um pouco mais de bruxaria e quando lhe narrei o acontecido comigo e Ohilma, veio com uma conversa fiada de que tínhamos que rezar 50 pai Nossos e 50 ave Marias todos os dias -isso durante 3 meses - e fazer uma oferta em dinheiro a capela que estava precisando de reparos.
E ainda teve a ousadia de dizer que eu estava inventando essa narrativa da bruxa e só não azucrinei com ele porque sou comedida, educada, e tanto eu como minha irmã vimos a Lili, com seus cabelos dourados e nariz grande torto.
E, aqui para mós, deveria ter dito a esse sacripanta que o dinheiro que déssemos iria botar no seu bolso, pois, a capela fora reformada e pintada recentemente, com a nossa ajuda.
Para mim, tudo o que estava acontecendo desde a morte dos meninos e meninas era apavorante e fiquei sem saber se falava com a diretora da escola ou com algum vereador para chamar novamente as psicólogas e os promotores, e se eles tinham algum conhecimento de bruxaria e o poder de convencer os pássaros a retornarem para a nossa serra.
Preferi, no entanto, me manter com esse drama, ou talvez orar para São Francisco, santo que conversava com os pássaros.
O relevante é que tínhamos (eu e o Roque) que descobrir uma solução para dar continuidade aos estudos de Alicinha. Ela iria completar 16 anos de idade e estava na sexta série faltando apenas duas para concluir o segundo grau e ir estudar numa faculdade.
Roque queria que ela fosse doutora - médica ou advogada - porque essas são profissões que dão dinheiro, segundo ele falava.
O problema é que Alicinha quando conheceu a psicóloga do governo havia se manifestado a mim, que gostaria de ser como ela.
Isso representava um desafio e tanto porque pelo pouco que sei é uma profissão que não dá dinheiro, é igual, salvo engano, a pedagoga, nutricionista, enfermeira.
E em segundo lugar porque se ela se formasse em psicologia teria que trabalhar numa cidade grande, longe da gente, longe do nosso povoado.
E como ficaríamos eu e o Roque? E nossos netos nasceriam aonde? E o aconchego de nossa filha?
Perguntas que ainda sequer tinha assimilado, quanto mais respostar a dar a elas.
Digo a vocês que foi um drama para a cabeça do Roque quando lhe falei dessa intenção de nossa filha.
E numa conversa que tivemos os três, ele levantou a voz e perguntou se ela conhecia alguma psicóloga em Umbuzeiro, no Escorrego, em Cícero, em Poço Redondo?
E dava exemplo do doutor Bernardo advogado que morava na melhor casa da cidade. Que tinha carro, que possuía fazenda e até apartamento em Aracaju.
Alicinha tentou acalmar Roque e disse que era sua vocação, cuidar de gente, cuidar da cabeça das pessoas.
Roque a contestou respondendo que no povoado que nasceu, cresceu, mora e pretende morrer não havia doidos, todo mundo tem a cabeça no lugar, e que os assassinatos dos meninos foi uma coisa que só pode ter sido algo influenciado pelo demônio.
E sobre o desaparecimento dos pássaros, do qual também havia lhe falado, disse ser uma coisa passageira, que eventualmente migram para outros lugares melhores em busca de comida, da sobrevivência, e isso estava acontecendo com maior frequência devido as mudanças climáticas, a quentura da Terra.
E mais falou que a Serra dos Cardeais já foi um lugar muito viçoso no seu tempo de criança e agora enfrentava essa instabilidade e até as cobras que viviam por lá sossegadas descem para o povoado em busca de comida e aparecem nos quintais das casas, as raposas veem comer nossas galinhas e assim por diante.
Também profetizou que na primeira trovoada que desse na época de floração dos cajueiros e das mangueiras, os cardeais retornariam, as árvores voltavam a ficar verdes porque uma trovoada não vem sozinha, são duas a três em carretilhas e a água desce nas ladeiras e enche os tanques, a terra fica fofa e molhada.
Ainda bem que não falei nada da bruxa para Roque nem da serpente que eu e Ohilma matamos, senão quem iria morrer seria eu. Fiquei de bico calado como os cardeais.