Cultura

ROMANCE "A PSICÓLOGA", DE TASSO FRANCO, CAP 3: OS SONHOS COM A COBRA

Tio Damascendo diz que, quem sonha com cobra está sensível a ser traído (ou traida)
Tasso Franco , Salvador | 15/04/2025 às 09:17
A cobra tenta engolir a perna de Roque
Foto: Seramov

3. OS SONHOS

Tive um sonho apavorante no sábado para o domingo, mas não contei a ninguém. Não disse nada a Roque com quem falo tudo e divido por inteiro as nossas coisas, temendo que ele pudesse se assustar ou se preocupar. 

 Eu me protegia de uma enorme cobra que provavelmente tinha fugido da Serra dos Cardeais e entrara em nossa casa e estava tentando me engolir. Fiquei tão apavorada que não me lembro bem os detalhes, donde veio e chegou ao nosso quarto. 

  O certo é que segurei o seu pescoço bem firme com minhas mãos e o apertei com toda força. Ela abriu uma boca enorme, dentes afiados, língua imensa a me lamber e começou a se enrolar em meu corpo com sinais de que iria me esmagar. Acordei apavorada suando frio e fiquei sentada na cama calada. 

  Depois, respirando fundo e de leve para não acordar Roque, levantei para urinar e fui verificar se Alicinha dormia bem no quarto dela. Acendi a luz e notei que estava de lado virada para a parede, ressonando. Então voltei para o quarto e dormi ou tentei dormir o mais rápido possível. Nessas horas rezo silenciosamente vários pais nossos e conto carneirinhos. 

  No domingo, uma das nossas rotinas é ir ao culto na Capela de São João Baptista realizado por um diácono. Só uma vez ao mês o padre Bastos da Paróquia do Bom Jesus da Aurora, da nossa sede municipal, reza missa. Nos outros dias o comando é do diácono Clóvis.

   Também uma vez a cada trinta dias eu Roque reunimos a família e alguns amigos no quintal da nossa casa onde temos uma churrasqueira e fazemos uma roda de música.

   Roque toca cavaquinho, Ohreste dedilha violão e dona Tina marca bem no rebolo. E todos nós cantamos. É uma forma de nos divertirmos. 

   Em nosso povoado não há clube social, não temos rio nem praia, o campeonato de futebol é regional e a nossa equipe Cardeal Futebol Clube não é das melhores. Há tempo um vereador que nos representa ficou de conseguir uma sede para a CFC, mas até agora não passou de promessa de campanha.

   Então, nosso lazer é doméstico, cada família faz o que pode e ficamos esperando de ano em ano a chegada do São João quando homenageamos o nosso padroeiro e é tempo de milho verde, mais fartura na mesa em bolos, amendoins, laranjas que vem do Rio Real e tudo fica mais animado com festas de forrós e assim por diante. 

   Temos ainda um lazer adicional nos meses do inverno e da primavera, inverno é o modo de dizer porque chove pouco e as estações se parecem, realizar trilhas na Serra dos Cardeais, os rapazes já demarcaram uma pista para bicicletas, sobem e descem trechos da serra pela mata que não é muito densa, curtimos a natureza, observamos o canto dos pássaros, o correr das cobras, das raposas, dos quatis e outros bichos menores que são preservados.

  Há um caminho chamado Barra do Vento que sopra um vento frio vindo de Sergipe que é uma maravilha e nós nos protegemos com blusões, acampamos e retornamos para nossas casas a noite, mas tem gente que dorme por lá.

    Nós temos esse amor pela natureza e preservamos a nossa serra com todo carinho, as fontes d’água, os minadouros, as árvores, os ipês amarelos, as macambiras, tudo que Deus nos deu. 

  No domingo, logo após a tragédia, o culto na capela São João Baptista foi um mar de lágrimas das famílias. Nunca tinha presenciado tanto choro, de forma coletiva – eu também chorei – abraços, consolos. Foi uma coisa triste, tanto que havíamos programado um churrasco e cancelamos o evento porque não havia clima. 
  Como o Roque poderia tocar o cavaquinho? 

   Eu até havia ensaiado cantar “Sonho Meu”, de Maria Bethânia, e decidimos deixar para outro momento.

   A tragédia estava viva em nossas casas, em nossas portas e salas, e as conversas todas giravam em torno das mortes dos jovens e como as famílias iriam suportar aquelas dores, como seria a semana seguinte. Seguimos no domingo em clima de velório.

   Alicinha estava um pouco mais calma, porém, muito pensativa como se tivesse absorta. Voltei a me lembrar do sonho da cobra. Da possibilidade da cobra engoli-la e foi ai que ficando muito encabulada, Roque perguntou se eu estava me sentindo mal, o que passava na minha cabeça e decidi contar-lhe o sonho.

   Ele ficou com a pulga atrás da orelha por que seu tio Damasceno, irmão de seu pai, certa ocasião lhe falou que quem sonha com cobra vai ser traído ou receber uma traição.

   Contou-me isso no momento em que lhe narrei o sonho, mas a gente não levou a sério por que eu nunca imaginei trair o Roque e creio que a reciproca é verdadeira embora não possa garantir por ele. Imagina! tenho plena confiança na sua fidelidade. 

   Nosso foco, nossa atenção, está voltada para Alicinha, para o futuro da nossa filha, para a nossa marcenaria, para nossa vida em comum. 

                                                                        *****
    Na segunda feira foi um dia de expectativa enorme porque iriamos ter um encontro com as psicólogas do governo - eu e minhas amigas do povoado nunca tínhamos conversado com psicólogos - nem sabíamos direito o que elas fazem, que poder tinham para nos acalmar ou nos acalentar, mas era isso que se dizia, que iriam nos orientar, nos aconselhar.

   A Secretaria da Educação havia suspenso as aulas em todas as escolas do município e a Dom Miguel – palco da tragédia - estava lacrada.

  Compareci com Alicinha para a reunião com uma das psicólogas no salão paroquial, uma tertúlia coletiva com outras mães e filhos. A psicóloga estava acompanhada da vice diretora da escola e salvo engano de um promotor.
  Era uma pessoa que me pareceu bem educada, fala mansa, pausada, e afirmou umas coisas que nós – desculpem a nossa ignorância em desconhecer – iriamos recuperar a autoestima, elevar a autoconfiança, haveria um trabalho de “transversalidade sistêmico e apagar do subconsciente o significante”.

   Foram tantas as palavras bonitas que, confesso, nunca tínhamos ouvido falar nem sabíamos o real significado, mas, se ela estava falando com tanta convicção e presteza, era uma pessoa do governo, então, creio que a intenção era boa.

   Saímos da reunião como entramos, com muitas dúvidas, sobretudo quando a escola seria reaberta porque nossos filhos não têm outro lugar para estudar e que apoio seria dado na área da segurança.

   Esse foi o ponto mais discutido e a psicóloga dizia, quando abordada, que essa era uma questão que não poderia opinar porque não dependia dela, mas de outros setores do governo.

  Destacou, no entanto, que a escola só reabriria depois de um tempo de quarentena para que a comunidade se restabelecesse mentalmente, e também não saberia dizer se haveria uma vigilância maior no acesso dos alunos, se as mochilas seriam revistadas, preocupações que tínhamos e ficaram sem respostas.

  Também aproveitei o saber da psicóloga para numa conversa particular e após esse encontro coletivo lhe falar do meu sonho com a cobra e se havia no fundo da verdade sinais de traição, de algo nessa direção.

   Ela perguntou se eu já tinha lido o livro “A Interpretação dos Sonhos”, de Sigmund Freud, e eu tomei um susto quando me fez essa pergunta porque nunca tinha ouvido sequer falar no Freud e muito menos no livro que ele teria escrito.

   Tentei o esclarecimento sobre o sonho com base no que disse Damasceno ao meu esposo, homem experiente, viajado, caminhoneiro, e a doutora - acho que psicóloga deve ser doutora - veio com uma conversa que até gostei de que Freud explica que na “interpretação epistemológica que quem sonha com cobra representa também uma esperança, um novo tempo, ideias renovadas”.

   E isso – confesso – me trouxe um certo alívio visto que, apesar da tragédia que abateu sobre nossas famílias em nossa comunidade, eu e Roque sempre temos uma esperança de que dias melhores virão.

   Não que a gente queira mudar da Serra dos Cardeais para um centro maior, Aracaju, Salvador ou até São Paulo como muitos daqui se foram e nunca mais voltaram. 

   A gente deseja que a Alicinha cresça cursando uma faculdade e que também seja uma doutora e siga o caminho que Deus indicar. E se ficar por aqui perto de nós melhor ainda, apenas que não seja na marcenaria visto que o mundo tá mudando muito e tem coisas novas e melhores do que produzir camas e cadeiras.

  Embora, desde a época de Jesus Cristo e lá se vão mais de dois mil anos, ninguém inventou nada que substituía uma cadeira; nem uma cama onde tudo acontece, no trabalho, no almoço, no jantar, no dormir, no acasalar e assim por diante. 

   E se tem um lugar bom para se chamegar é a cama retilínea, larga, king, e não um sofá torto, um banco de Volks, uma moita de capim.

  Também confesso que a Alicinha não entendeu muita coisa do que a psicóloga falou, do palavreado em si, mas, gostou demais da forma acolhedora que com versava, didática, doce, cada palavra saindo como uma luva de pelúcia.

  Alicinha fez algumas perguntas de como se comportar, de como apagar o mais rápido possível da memória aquele trauma, se isso poderia se repetir, por que um colega mata outro, qual motivo para tanta insanidade e voltou para casa com um pensamento bom e promissor. Disse-me, envergonhada. que gostaria de ser como ela, isto é, ser uma psicóloga.

  E eu fiquei admirada e perguntei se ela sabia o que faz uma psicóloga, quanto ganha, onde trabalha, e ela não soube me responder e nem eu também sabia. Ficamos uma olhando para a cara da outra sem uma resposta.

   O importante foi o entendimento que tivemos (assim, creio) de que a psicóloga tem o poder de acalmar as pessoas, de dizer coisas bonitas, palavras agradáveis e pelo visto algumas pessoas do povoado onde nós moramos estão precisando disso, dessa orientação, ainda que nunca houve em tempo algum algo parecido com o que ocorreu na comunidade.

   As pessoas daqui são pacatas, nem cadeia possuímos, nem delegado, nem corpo de polícia, ainda que estejamos nas proximidades de uma fronteira com outro estado e o tráfico de drogas pelo que se fala a boca miúda é intenso.

  E já aconteceram algumas mortes na Lagoa dos Patos, porém nunca aqui, nem no Tiruco, no Escorrego, no Umbuzeiro, na Drogaria, no Viúvo, que são outros povoados parecidos com o nosso e só moram pessoas boas, trabalhadoras, e muitas vivem do que produzem nas roças, sobretudo na agricultura familiar.

  E também nunca houve - pelo que saiba - de a Polícia ter encontrado alguma roça com plantações de maconha como as que existem nas proximidades do São Francisco - em Glória, Curacá, Casa Nova - e esse caso das mortes dos meninos e meninas no dizer da psicóloga foi um surto da mente de um deles, algo inexplicável de forma racional e que acontece com frequência nos Estados Unidos que é um país de doidos, de gente aloprada, mas que é raro, raríssimo de acontecer no Brasil, embora outros casos já tenham ocorrido em São Paulo e em Barreiras na Bahia, cidades grandes, mas não num povoado como o nosso onde todo mundo se conhece, todo mundo sabe quem é o outro.

   Daí o inusitado do fato, sobremaneira imprevisível, e agora o momento era de fechar a ferida, acalmar os sobreviventes e tocar a vida para frente porque não há retorno, quem morreu não voltará.

  Há um ciclo de vida-morte-vida que pode ser natural, isto é, uma pessoa nasce, se cria, fica madura, se torna velha e morre; e outras na família vão nascendo. Como pode acontecer morrer antes da hora, por circunstâncias imprevisíveis como um acidente, uma doença ou como aconteceu na tragédia do nosso povoado com mortes a tiros de revólver.

  E é exatamente neste ponto, neste x da questão que a gente não consegue entender e fica assustada e continua dessa forma. 

  E eu me apavorei ainda mais porque na madrugada seguinte sonhei novamente com a cobra, desta feita, tentando engolir a perna de Roque e ele estava sentado segurando um espeto e um facão em mãos esperando que a boca da bicha avançasse mais sobre sua perna para cortar a sua cabeça. 

  Apavorante, chocante, acordei mais uma vez trêmula, assustada suando frio.