Cultura

ROMANCE "A PSICÓLOGA", DE TF: A NOITE SOMBRIA NA SERRA DOS CARDEAIS

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Tasso Franco ,  Salvador | 08/04/2025 às 07:57
Noite sombria
Foto: Seramov
  NOITE SOMBRIA

   A noite mais triste e sombria da Serra dos Cardeais aconteceu naquela sexta-feira. O céu escureceu de maneira diferente e não como sempre acontece no povoado. A noite se apresentou sombria, triste, com nuvens carregadas e muito escuras com bordados sinistros e as luzes dos poucos postes que temos nas ruas acendendo e apagando. Ao fundo, resistente, a imponente serra, creio, a nos proteger. 

  É uma barreira da natureza que nos ampara com a sua beleza, o verde de sua mata, o canto dos pássaros, as nascentes d’água, as pedras, os cactos, naquela noite se mostrava em silêncio de monastério.  
   Após o impacto da morte dos jovens adolescentes, praticamente ninguém dormiu com a expectativa do dia seguinte, com as notícias que corriam de boa-em-boca e outras que certamente viriam. 

   A essa altura a Polícia já havia detido o pai do menino atirador, ao que tudo indica dono do revólver, a Polícia Técnica recolhido as cápsulas das balas nos chãos da sala de aula e do corredor, fotografado a escola de todos os ângulos, especialmente a sala de aula onde aconteceu a tragédia e o delegado regional teria entrevistado algumas pessoas, em especial, a diretora da escola e a professora que presenciou as mortes. 

   Houve uma repercussão imensa desse fato na imprensa e no sábado apareceram jornalistas, radialistas, blogueiros, autoridades e técnicos que nunca tínhamos conhecido ao longo de nossa história, como repórteres de TV e de emissoras de rádio, o delegado da Regional cuja sede é em Santa Tereza do Pombeiro, peritos da Polícia Técnica creio que da Regional de Aragoinhas, promotores do Ministério Público, psicólogos da capital e mais gente que não saberia identificar. 

   Quero dizer a vocês que nosso povoado nunca teve nada disso, não tem representação do Ministério Público tanto a Terra do Sol que tem 13 mil almas, quanto a Serra dos Cardeais com 1 mil almas, e também os demais povoados da Drogaria, Umbuzeiro, do Tiruco, a gente não sabe o que faz mesmo um promotor nem se precisavam deles no local.

  Psicólogos que revelavam ser importantes para cuidar das mentes, das nossas cabeças, esse profissional, então, não existe em nosso município, nossa comunidade escolar que é grande e o Colégio Estadual da Terra do Sol é campeão em qualidade de ensino no estado não têm psicólogos, falta-nos até professores e vivemos, isso sim, sempre superando os nossos problemas através do senso comum e da ajuda mútua entre as famílias. 

  Os governos são muitos bons quando surgem esses casos graves, com essa tragédia, eles aparecem como formigas ou então quando é época das eleições. Passados esses momentos somem e nós voltamos ao de sempre. E pouco gente reclama porque está cansada de tanto protestar e não acontecer nada, nenhuma ajuda permanente. Essa é a verdade. 

   Tem um professor do estadual, que denuncia, que coloca a boca no trombone por seu canal internet e vive sendo perseguido. 

   Então, quando chegou no sábado, silenciosamente, nós agradecemos as autoridades, ao governo, porque somos pessoas educadas, tementes a Deus, e os acolhemos com todo carinho, mas, fomos nós mesmas, as famílias, que nos seguramos umas nas outras.

   Na nossa casa já estavam além de minha sogra, meus irmãos, minha tia Glória, Sêo Aristeu da venda, dona Sissi costureira, meu irmão Ohreste da oficina de grades e sua esposa Lurdes, Sêo Badu da padaria e sua esposa Tina, este uma espécie de meu segundo pai porque trabalhei como atendente na padaria dele quando completei 15 anos de idade até os 20 anos data do meu casamento.

   Todos nos dando apoio porque Alicinha estava na sala de aula na hora dos tiros nos colegas e embora não fosse atingida, nada sofrera fisicamente no corpo, salvo um vermelho na batata da perna machucado que aconteceu na correria batendo a perna numa carteira, estava abalada, tensa, chorava sem parar e a gente ficou dando carinho a ela.

   Dona Sissi fez um chá de camomila para acalmá-la e a situação nas casas das pessoas que tiveram duas meninas mortas era muito pior, um drama imenso, sendo que haviam dois mortos jovens rapazes, o que tirou a vida do outro e depois a sua, o corpo de um deles foi para o Tiruco e o outro ficou na Terra do Sol e nós recebemos os corpos das meninas atingidas pelas balas e foi uma emoção tão forte que não saberia descrever com palavras o que se passou, em lágrimas, em abraços, em flores, com velórios que se deram nas casas dessas pessoas.

   Esse é outro ponto que vou explicar a vocês, nesses povoados como o nosso, não existem casas de receptivo funerárias, nem há uma loja que vende caixões e quando alguém morre vai buscar na sede municipal, que é perto e tem uma infra maiorzinha. 

   E os velórios são feitos nas casas das pessoas, na sala, e nossa comunidade é pobre, as casas são acanhadas e às vezes nem sala de visitas possuem, então é aquele aperto, o caixão colocado no centro e as pessoas em volta, e tudo isso só faz aumentar o drama das famílias ainda mais quando acontece um caso como esse de meninas de 15 anos em plena flor da mocidade e que não sofriam de doenças alguma morrerem. 

   Eu e o Roque fomos nas duas casas de famílias das vítimas fatais abraçar os pais e as avós, as pessoas enlutadas e não conseguimos segurar as lágrimas. Foi muito dolorido. Era como se nossa Alice tivesse morrido. 

   Aquela dor que entra no corpo, uma amargura interior inexplicável, a gente fica logo sem saliva na boca, a garganta seca, trava, e as lágrimas estouram no rosto feito uma cachoeira. 

   À tardinha, creio que toda população do povoado, salvo aqueles que estavam trabalhando fora, compareceu ao sepultamento. Lá em casa, preliminarmente, decidimos não levar Alicinha. 

   Porém, ela deu um rompante, de repente, saindo da escuridão em que estava, e disse que queria ir, que iria, que precisava ir e chorar, ver suas amigas de infância e de sala de aula serem sepultadas, e nós a levamos em cortejo todo o grupo que estava lá em casa, e diria que foi um sepultamento tão triste que até os cardeais da nossa Serra pararam de cantar. 

   A noite chegou como descrevi no início, tenebrosa, com desenhos de figuras estranhas no firmamento e saímos do cemitério arrasados, cambaleantes abatidos pela dor. Parecíamos zumbis.

    Sêo Raimundo, tio de uma das meninas mortas se assemelhava a uma alma do outro mundo dessas que saem das covas à meia noite para assombrar o povo.