Cultura

ROSA DE LIMA COMENTA SEMINÁRIO DE LACAN "AS FORMAÇÕES DO INCONSCIENTE"

É uma leitura que põe as pessoas a pensarem em si em diferentes dimensões. Como ele profetiza: “O sujeito é diferente de um si mesmo, daquilo que é chamado por uma palavra elegante em inglês, o self”
Rosa de Lima , d Salvador | 28/12/2024 às 07:30
É o comentário da semana em Cultura (literatura)
Foto: BJÁ

   Complexo e instigante. Jacques-Marie Émile Lacan (1901/1981) foi um destacado psicanalista francês. É complicado defini-lo. Resumidamente. Intelectual irreverente e insubmisso era médico por formação básica com especialização em psiquiatria obtendo doutorado coma tese "Da Psicose Paranoica em suas Relações com a Personalidade".

   Haja complexidade num tema dessa natureza. Lacan integrou a Sociedade Psicanalítica de Paris (SPP) em 1934, e é eleito membro titular em 1938. É depois da Segunda Guerra Mundial , no entanto, que seus ensinamentos ganham importância no meio acadêmico. Diz-se que obteve contato com a psicanálise através do surrealismo e a partir de 1951, opondo-se aos pós-freudianos que promoveram a Psicologia do Ego, propõe um retorno a Freud.

   Lacan não escreveu nenhum livro, especificamente, mas os seminários que orientou e ministrou geraram 25 compêndios e é considerado um defensor das teses de Sigmund Freud, portanto, seu discípulo.

   O caráter inovador de sua abordagem, seus temas e sua concepção da cura psicanalítica conduziram a cisões com a SPP e instâncias internacionais. Para isso, utiliza-se da linguística de Saussure (e posteriormente de Jakobson e Benveniste) e da antropologia estrutural de Lévi-Strauss, tornando-se importante figura do Estruturalismo. É o que dizem os seus biógrafos.

   Posteriormente encaminha-se para a Lógica e para a Topologia. Seu ensino é primordialmente oral, dando-se através de seminários e conferências. Lacan é considerado um grande intérprete (e defensor) do texto freudiano, propondo resgatar a psicanálise de seus desvios, e dando seguimento à corrente de seu pensamento.

   Ao longo de todo seu percurso intelectual manteve interlocução com a abordagem filosófica de autores como Immanuel Kant, Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Martin Heidegger, Alexandre Koyré, Jean-Paul Sartre. Seu pensamento influenciou vários filósofos contemporâneos entre os quais Jacques Derrida, Slavoj Žižek, Alain.

   Vamos analisar um desses books de Lacan o Seminário (1957/1958) que trata sobre "As formações do inconsciente " (Editora Zahar, tradução Vera Ribeiro, versão final Marcus André Vieira, 529 páginas, R$99,00 Estante Virtual) em que começa abordando para seus alunos as “Estruturas Freudianas do Espírito” e diz: - Penso, logo existo, dizemos intransitivamente. Com certeza, é essa a dificuldade para o psicótico, precisamente em razão da redução da duplicação do Outro com maiúscula e do outro com minúscula, do Outro como sede da fala e garantia da verdade, e do outro dual, que é aquele diante de quem o sujeito se encontra como sendo sua própria imagem”.

   E aborda três subtemas intitulados “Familionário” (família+milionário), o “Fátuo-Milionário” e o “Miglionário” mecanismos da tirada espirituosa e da relação com o significante e o significado. Lacan foi o criador o termo significante (que não produz nada e só produz significado quando articulado com outros). Ou seja, no decorrer de um discurso intencional produz-se algo que ultrapassa seu querer, que se manifesta como um acidente. 

   Nas estruturas freudianas do espírito segundo Lacan “essa neoformação, o chiste, apresenta-se como traço que não são nada negativos, embora possa ser considerada uma espécie de tropeço, um ato falho”. 

   Em relação as propriedades estruturais da linguagem há um ser chamado objetividade “uma maneira meio apressada de resumir toda a aventura que vai da lógica formal à lógica transcendental () Quando fala do inconsciente Freud nos diz que é estruturado de uma certa maneira, mas, ainda assim, na medida em que as leis que propõe, as leis de composição desse inconsciente, coincidem exatamente com algumas das mais fundamentais leis de composição do discurso”.

   Noutras palavras mais compreensíveis aos nossos leitores as leis estruturantes primordiais da linguagem, o discurso, a nossa fala na expressividade do nosso Eu, existe sempre a necessidade de ser levado em consideração o inconsciente, a subjetividade, ainda que a pessoa possa não se aperceber disso achando que tem sido objetivo ao máximo.

   “A outra face é a face do inconsciente () a medida comum entre o inconsciente e a estrutura da fala () e surge alguma coisa no plano das formações do inconsciente que se chama surpresa. Para Freud, “convém toma-las não como acidente dessa descoberta, mas como uma dimensão fundamental de sua essência. A dimensão da surpresa é consubstancial ao que acontece com o desejo, desde que ele tenha passado ao nível de inconsciente”.
 
   Em seguida, neste volume dedicado “As formações do inconsciente”, Lacan vai abordar os subtemas “A Lógica da Castração”. “O Valor de Significação do Falo” e “A Dialética do Desejo e da Demanda”. Nada é conclusivo. Tudo é reflexivo, pra pensar, para analisar e discutir em sala de aula. E introduz, para o debate o que chama de “metáfora paterna” com a seguinte observação: “é preciso ter o nome-do-pai, mas é também preciso que saibamos servir-nos dele. É disso que o destino e resultado de toda a história podem depender muito. () que o sujeito se descobre dependente dos três polos chamados ideal do eu, supereu e realidade”.

   Para Lacan, “o complexo de Édipo tem uma função normativa, não simplesmente uma estrutura moral do sujeito () e falar do Édipo é introduzir como essencial a função do pai () O Édipo em relação ao supereu, em relação à realidade e em relação ao ideal do eu”.

  Não vamos discutir as fórmulas apresentadas por Lacan e as teorias (e práticas terapêuticas) de uma construção psicótica do sujeito, nem as diferentes e profundas incompatibilidades entre as diversas teorias e o psicanalista francês cita muitos autores nos seus seminários, desde Otto Rank a Melaine Klein, ora concordando com alguns deles; ora discordando, a exceção de Sigmund Freud a quem sempre enaltece, o importante tentar entende-lo ainda que esses temas sejam maçantes e de uma enorme complexidade, exatamente porque em psicologia não existe uma formulação única e acabada, mas psicologias, mais de uma formulação para se entender o sujeito. 

   “Será que significa que o ser humano é o único a ser satisfazer com palavras? Até certo ponto não é lícito supor que certos animais domésticos tenham algumas satisfações ligadas à fala humana. Não preciso fazer evocações a esse respeito, mas de qualquer modo ficamos sabendo de coisas um bocado estranhas” e cita os reflexos condicionados de Pavlov, entre outros.

  Assim, adiante, formula: “O desejo, seja ele qual for, em estado de desejo puro, é algo que arrancado do terreno das necessidades, ganha uma forma de condição absoluta em relação ao Outro. () É por essa razão que o desejo sexual entra nesse lugar, na medida em que se apresenta ao sujeito, em relação ao individuo, como essencialmente problemático, e nos dois planos da necessidade do amor”.

   Diria, distinto leitor, admirável leitora, ler Lacan dá um imenso prazer. É uma leitura que põe as pessoas a pensarem em si em diferentes dimensões. Como ele profetiza: “O sujeito é diferente de um si mesmo, daquilo que é chamado por uma palavra elegante em inglês, o self”, aquele que nasce da emergência ao indivíduo humano nas condições da fala. E não das relações do sujeito com o mundo de forma aberta.