Walmir Rosário é radialista, jornalista e advogado.
Walmir Rosário , Salvador |
12/12/2024 às 19:31
Vista aérea e Érito Machado
Foto: DIV
Estudar na Federação das Escolas Superiores de Ilhéus e Itabuna (Fespi), atual Universidade Estadual de Santa Cruz (Uesc) era um sufoco, principalmente no turno da noite. Isso nas décadas de 1970/80, por falta de estrutura nos transportes coletivos, sempre superlotados e em horários espaçados. Bem melhor ir de carro próprio ou uma providencial carona.
Mas esses eram os problemas enfrentados fora dos muros da sonhada futura universidade. Dentro, novos e diferentes problemas se avolumavam, como a falta de pagamento aos professores e funcionários, o que desaguava em constantes greves; falta constante de energia elétrica, que transferiam os alunos das salas de aula para o bar do Jabá, no bairro do Salobrinho.
Achávamos graça das agruras que passávamos, tendo em vista a excepcional qualidade de conhecimento dos professores, grandes profissionais do direito na magistratura, ministério público, advogados. A grande maioria não possuía os famosos títulos de doutores, tão em voga na atualidade, mas esbanjava sabedoria,
prontos para dar aulas de improviso de qualquer matéria ou tema.
E um desses professores merece destaque, Érito Francisco Machado, ex-juiz de Direito e, à época, juiz do Trabalho em Itabuna. Depois transferido para o Tribunal Regional do Trabalho, em Salvador, no cargo de desembargador, chegando à Presidência do TRT 5ª Região. Nascido em Xique-Xique (BA), nunca perdeu suas origens naturais da região da caatinga.
Érito Machado era um intelectual completo: foi professor da antiga Faculdade de Ciências Econômicas de Itabuna (Facei), da Faculdade de Direito de Ilhéus, que deram origem à Uesc, lecionando diversas
matérias. Estudioso da filosofia, lia os clássicos no original, em alemão, e se correspondia com filósofos de várias partes do mundo.
Levava sua vida privada de forma reservada, embora tivesse uma vida social normal, poucos eram os amigos mais chegados. Aos sábados não perdia a tradicional feijoada do restaurante do Pálace Hotel, posteriormente no Baby Beef, em Itabuna. Amante dos vinhos alemães, falava com propriedade deles, classificando os melhores e desprezando os tantos que considerava “vinagre”.
Em nossa turma lecionou Direito Civil (todo o curso). E nossa sala era pra lá de especial quase semelhante à arca de Noé, com todos os bichos. A garotada, os de meia idade, e os “coroas”. Entre estes, aposentados, profissionais de outras áreas que vieram incorporar o direito como conhecimento, e até professores da Uesc que lecionavam em outros departamentos. Era uma classe especial.
Tínhamos aulas com ele na sexta-feira à noite e no sábado pela manhã. Em cada uma delas elegia três pontos, devidamente assinalados no quadro-negro e passava a descrevê-lo com desenvoltura por cerca de 50 minutos. O tempo restante destinava a tirar dúvidas, conversar amenidades e tirar sarro de alguns alunos, na opinião dele, diferentes.
O professor Érito Machado possuia um Opala Diplomata, branco, já de certa idade, veículo com o qual se deslocava de Itabuna à Uesc. Volta e meia o carro apresentava alguns problemas mecânicos e nos
deixava preocupados, principalmente no retorno, a partir das 22 horas, no percurso dos 13 quilômetros entre a universidade e Itabuna.
Assim que ele saia, um ou dois veículos dos alunos passavam a segui-lo, por questões de segurança. Certa noite os faróis apagaram e iluminamos o trajeto até sua casa. De outra feita, o velho Opala começou a falhar e o professor se dirigia ao acostamento até que o motor voltasse a firmar. E assim seguiu por uns poucos quilômetros. Mas não teve jeito e o velho Opala surrado do professor Érito Machado parou de vez e por mais que ele tentasse não conseguia fazer o motor funcionar. carros parados e uns seis ou sete alunos
dando cobertura. Entre eles dois alunos do curso de Direito e professores do departamento de Economia e Administração: Geraldo Borges e Joelson Matos, também dirigentes da Ceplac.
Lá pras tantas, Joelson, que era prendado em várias artes, pede que o professor abra o capô do carro e começa a verificar os cabos de vela, distribuidor, carburador e todas essas pecinhas que gostavam de
complicar. De repente dá o diagnóstico: é o platinado, pega uma chave de fenda no carro de Geraldo Borges e consegue arrumar o defeito. E seguimos no comboio até Itabuna.
Na manhã de sábado, eis que chega à sala o professor Érito Machado, dá uma olhada profunda nos alunos presentes e descobre Joelson Matos. Sem mais delongas, pergunta ao colega professor: “Não sei por que você quer estudar direito, já que podia muito bem continuar como mecânico, que é o que sabe muito bem”. Gargalhadas por uns cinco minutos e o professor Érito inicia a aula como se nada tivesse acontecido.
*Radialista, jornalista e advogado