Apreciei bastante o conto “Cantorias para levantar a morte do amor” que se passa num bairro onde a sobrevivência do homem está relacionada com o boi
Rosa de Lima , Salvador |
30/11/2024 às 09:44
O Homem Verde do Ginásio
Foto: BJÁ
Sigo falando de escritores regionais da Bahia e que têm obras relacionadas aos seus estados embora temas que também podem ser universais. Dei exemplo no último comentário sobre a obra "Querências", romance de Landisvalth Lima, o qual aborda cenários da política num município do Norte da Bahia e são típicos de outros locais.
Hoje vamos falar do novo livro do jornalista Tasso Franco, 79, veterano na literatura regional e que tem alcançado um pouco mais de destaque na sua extensa obra graças, ultimamente, a internet, que todos sabem ajuda e muito na difusão da literatura, ainda que seja um meio eletrônico e o livro um impresso.
Creio, no entanto, que uma coisa não invalida a outra e os portais de literatura da internet também vendem impressos e têm plataformas de leituras 'on-line' como é o caso do Kindle Store da Amazon que é mundial e aceita obras de autores à Ocidente e Oriente, em várias línguas.
Bem, falemos, então do novo livro de Tasso Franco intitulado "O Homem Verde do Ginásio" (Editora Ojuobá,179 páginas, capa ilustração de Borega Melo, design gráfico e editoração Tasso Filho e Vitória Giovanini, vendas Amazon.com R$54,00 + frete, tb à venda na Cantina da Lua, Salvador) onde o autor reúne de sua pena criativa 30 contos emanados de dizeres do povo.
De algum tempo não leio algo tão agradável e criativo como este novo texto de Franco, o qual também reverbera seu trabalho no You Tube no canal de Sêo Franco da Bahia, e nesta obra destaca “causos” de gente do povo reunida numa távola de uma cidade da Bahia, Serrinha, ano 1960, inspiração para os contos e tiradas geniais, metáforas, morais de história, gozações, debates arrepiantes, paqueras, todo um conjunto de ideias que dão a obra, além dos contos em si, muitos ensinamentos.
Ao os depararmos com esse tipo de obra devemos considerar o universo contextual, a linguagem e os costumes da época, passado e presente, os conceitos e preconceitos. Pode ser que muita coisa aos olhos atuais pareça insignificantes, porém, não as vemos assim. Tudo seu lugar na história e na época em que se passou.
E, como diz o autor, nós, os letrados achamos que somos os donos da verdade, os sábios, e que os demais devem seguir-nos em ensinamentos, na maneira de ver e entender o mundo, quando o povo – esse ser impessoal – tem uma maneira de perceber e participar diferenciadas, desde a crença em Deus, no Diabo e nas coisas da natureza – os bichos, as plantas, o tempo, o sol, o céu, a lua, o rio, a mata, etc – e que são um universo à parte e que deve ser entendido e respeitado.
Creio que, na essência é isso que está no livro “O Homem Verde do Ginásio”, contos de avejão, de “horror, amor e virtude” com narrativa de um mundo a parte que está enraizada na cabeça do povo e dela ninguém tira e/ou modifica. As histórias, pois, são de bruxas, visagens, um padre rasga mortalha, o lobisomem, o nego d’água, um tubarão de água doce, um barbatão voador, cantigas para levantar a morte do amor, o bozó dos boêmios, a família que comia botões, um pintor que pintava com a rola, o pote de ouro, a serpente que engoliria uma igreja, um bode preto que queimava armazéns de sisal, enfim, surrealismo puro, bem escrito, bem elaborado e que merece a atenção dos leitores.
A leitura por assim dizer, o correr da pena é em linguagem de fácil compreensão e, até creio, alguns desses contos de avejão os leitores já tenham ouvido falar com outras versões, como a existência do lobisomem aculturado, civilizado - e há centenas de livros sobre esse personagem pelo mundo à fora; a busca do pote de ouro, da riqueza fácil, o que é também um tema universal; o sonho de deixar à cidade grande e ir morar no campo; o boi barbatão voador; as ameaças de Lampião e assim por diante.
Diria que os leitores vão se admirar com os contos, a criatividade, a simplicidade da narrativa, os suspenses, as aventuras. As passagens do tempo, enfim, tudo misturado com personagens que integram esse universo e são muitos e diversificados em cada aldeia – o dentista, o alfaiate, a costureira, o fazendeiro, o vaqueiro, etc; os animais – bois, gatos, tubarão, carneiros, codornas, etc; as plantas – mandacaru, macambira, aroeira. etc; as paisagens – os morros, a caatinga, etc; e as forças da natureza como o sol, a lua, as secas e a resistência do homem em viver e prosperar em local tão insólito e desprovido de mar, rio, floresta, etc; e onde os bichos são mirrados e a fome é permanente, endêmica.
Apreciei bastante o conto “Cantorias para levantar a morte do amor” que se passa num bairro onde a sobrevivência do homem está relacionada com o boi, local onde se situa o matadouro da aldeia e as crenças religiosas são arraigadas e prosperam as rezadeiras e as líderes que comandam áreas da comunidade onde se cultua a morte, a música, a poesia, a crença na vida-morte-vida.
Vamos a um trecho escrito pelo autor: “Dona morte por favor/ouça o que estamos a contar/levante-se desse caixão/e venha conosco sambar – isso dito quatro ou cinco vezes, em refrão, já também em ritmo de samba, mais compassado, duas das meninas sambadeiras no salão fazendo volteios, o mestre de cerimônia indo espiar se a morte deitada no caixão se movia e ela não deu a mínima ao canto, morta estava e morta continuava”. A “morte”, mais adiante, vai levantar do caixão e sambar, evoluir no Nachô-Nachô, o templo religioso e de festejos da comunidade. E retorna ao ataúde certa de que, no mundo dos mortos encontra-se melhor, mais confortável e segura do que no mundo dos vivos.
Todos os contos são narrados na Távola de Agripina Esperança disputando um concurso promovido por um jornal local e sendo mediados por um jornalista, o qual, utiliza uma sineta para acalmar os mais exaltados e aqueles que praticam a arte da fina ironia para atingir o próximo. E também monitorado por um conselho de “sábios” e “letrados” da aldeia com ata escrita por um deles. Não faltam, por conseguinte, debates nos campos religioso, da moral, da espiritualidade e do comportamento humano.
Há, portanto, um pouco de casa coisa, da viúva exuberante, do professor tímido e introspectivo, do padre poeta, da madame rica, do avarento, do otimista, dos cornos, dos invejosos, dos altruístas, dos gananciosos, dos operários, enfim, um espelho do que o autor expõe como sua aldeia. Por posto, aldeia que se assemelha, assim nos parece, a outras aldeias que existem no planeta. Afinal, todas elas, têm um professor, um padeiro, um dentista, um gari, um pastor de almas e assim por diante.