Romance que trata da sexualidade e da loucura a partir do veganismo e de sonhos perturbadores
Rosa de Lima , Salvador |
09/11/2024 às 11:15
A Vegetariana de Han Kang
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Confesso que não estou acostumada a leitura de autores asiáticos. Nós, ocidentais, nos distanciamos deles por nossa formação educacional desde a escola do ensino fundamental à superior. E, nossa cultura de uma forma geral, calçada na matriz europeia, faz com que desconheçamos autores do Japão, China, índia, Vietnã, Indonésia, Coreias, etc, ainda que alguns desses autores também tenham se espelhado nos movimentos literários da França, Alemanha, Inglaterra, especialmente no romantismo, no iluminismo e outros.
Então quando a academia premia uma autora da Coreia do Sul com o Nobel de Literatura como fez neste 2024, recentemente, com uma escritora chamada Han Kang, nós corremos atrás para saber se existe publicações dela em português e ficamos sabendo que existem. Eu mesma já ouvira falar do "Livro Branco" editado pela Todavia, mas não o li. Agora, que lhe foi conferido o Nobel comprei o exemplar de "A Vegetariana" (Editora Todavia, SP, 2024, capa Pedro Inoue, tradução Jae Hyung Woo, 171 páginas, R$50,84 Amazon) e fiquei admirada com a criatividade da autora neste romance que vem sendo considerado um dos mais importantes da ficção contemporânea mundial.
Surpresa não foi o caso porque sendo vencedora do Nobel a academia não premiaria alguém de nível médio. Tem que ser excepcional para fazer parte desta lista e pelo que li nesta única obra, com tema atemporal e que nunca saiu do contexto - a saúde mental - ela o tece com uma criatividade superior, sabedoria e linguagem impressionantes.
Até no título - A Vegetariana - que, aos leigos pode parecer algo que remete a prática do vegetarianismo tão em moda no Brasil e Europa nos anos 1960/1970 embora a cultura vegana no Oriente existe há 2.000 anos, de fato, o enredo começa assim, de uma pessoa que deixa de comer carne vermelha para ser vegetariana, porém, a evolução da narrativa é tão fantástica que o leitor só para de ler o livro quando chega a última página. E o faz com gosto de suspense, com tensão e ao mesmo tempo com esperança.
Creio que uma autora quando consegue esse tipo de ficção, de levar o leitor a criar em si uma expectativa linear ele interagindo com a criação e achando que o ‘intermezo’ e o final será como ele pressupõe, porém, a cada virar de algumas páginas vai percebendo que a autora é quem o conduz aonde ela quer, sempre com surpresas e fora do seu alcance imaginativo.
E esse modelo ao invés dele (o leitor) se distanciar ou abominar a autora vai tendo paixão por sua escrita. E Han Kang, em "A Vegetariana", surpreende a cada passo e o deixa refém e louco para saber qual o desfecho final do romance.
Assim, a primeira parte do livro que intitula "A vegetariana" trata exatamente da forma mais simples de adesão a prática vegana, ela casada com um executivo em ascensão numa grande empresa de Seul, casal normal, bem estruturado, com tropeços regulares na arte do amor a dois, quando, de repente ao voltar para casa ao marido a encontra dando fim a todos os produtos da geladeira relacionados carnes, processados, queijos e assim por diante, o que o deixa perplexo e ao mesmo tempo querendo uma explicação racional sobre essa mudança de comportamento. E, ela, sem muito ter o que explicar diz que adotou o veganismo diante de um sonho que teve.
- Mas que sonho foi esse para adotar postura tão radical se ambos dividiam a cama e a mesa com saboreando esses produtos, as angústias, as esperança de crescimento, as rotinas do lar, e de repente ela muda o ritmo e vai mudar de cor, vai modificar o semblante, mais parecendo um vegetal do que um ser humano.
Há, nesse processo de mudança, um jantar oferecido por sua empresa aos CEOS com presenças das esposas e é neste jantar que, as madames dos outros CEOS a veem como um Ser estrangeiro, ela travada, muda, sem nada comer das carnes ofertadas e são muitos os pratos deliciosos da culinária coreana oferecidos, e também seus colegas o preocupam.
A partir daí, sem entender a mudança de comportamento da esposa e ainda sem que ela explicasse o teor do tal do sonho, ele decide levar o assunto a família de Yeonghye (nome da personagem) e vai encarar um jantar na casa do seu cunhado que havia comprado um belo apartamento em Seul. É neste jantar que a nova vegana expõe toda a sua crueza e não trisca em nada que a irmã preparou em carnes, nem a carne de porco agridoce e e a carne bovina frita que o pais trouxeram do interior da Coreia.
Nesse desespero, mãe e pai forçam-na a comer pedaços de carne e ela resiste com a boca fechado levando uma bofetada do velho, homem do campo e que lutara na Guerra do Vietnã.
- Permanecendo de boca fechada, minha esposa a olho com a cara de quem não entendia o que estava acontecendo. “Abra a boca agora. Você não quer isto? Então coma isto” oferecendo a carne frita.
“Pai, eu não como carne”, disse e empurrou a mão trêmula do pai, que segurava os palitinhos no ar.
Subitamente, a palma forte do meu sogro rasgou o ar e minha mulher cobriu o rosto.
É nessa insistência para ela sem abrir a boca e comer que o velho dá uma bofetada e, logo depois, uma outra mais forte, quando Yeonghye pega uma faca e corta os pulsos o sangue jorrando pela sala e acabando o jantar.
A autora, então entra na segunda parte do livro que intitula "A mancha mongólica" título sui generis e ao mesmo tempo genial, uma coisa aparentemente não tendo a ver com a outra. A mancha mongólica é um sinal de nascença que as pessoas têm no corpo e no corre-corre para salvar a mulher vegana ensanguentada, ela nos braços do cunhado, aquela aflição, o marido dirigindo o veículo até o Pronto Socorro o cunhado descobre a mancha nas nádegas da cunhaha e tem um frêmito de tesão.
Pronto, o romance descamba para um cenário onde os sinais psicopatológicos do cunhado afloram e se assemelham a da enferma, a essa altura em recuperação, e ele atormentado por um sentimento artístico (ele, artista, vídeo making) poderia utilizar o corpo da cunhada para produzir uma obra de arte. Mas não uma obra qualquer com flores pintadas em seu corpo, e sim que tivesse movimento, ardor, sexo. E chama um colega para contracenar.
Um clima de sedução toma conta da segunda parte do livro. Uma sedução com aura de permanente suspense e mudanças de comportamento do cunhado (o homem casado com sua irmã) mais velha e da própria vegana, a qual, mesmo debilitada fisicamente, porém, já separada do marido (a autora isola complemente de cena o marido original da vegana) aceita posar nua, inicialmente apenas para que no seu corpo sejam desenhadas flores (o cunhado é artista visual famoso) e produzido um vídeo artístico, que será motivo de alguma exposição mais adiante.
tudo isso sem que a esposa do cunhado fosse informada (sua irmã), ela (a vegana) aceitando posar como uma forma natural e artística. E, num segundo momento, o cunhado frenético de paixão pela modelo, propõe uma nova filmagem desta feita com a participação de um homem parceiro na obra de arte, mas, desta feita com o objetivo de produzir também cenas sexuais de penetração.
A mulher topa e o artista fica sem saber quem contratar para a cena (se um profissional do sexo ou um modelo) e decide chamar o dono do estúdio que fica alarmado, mas, depois de muita conversa participa da cena com penetração. E a vegana mesmo debilitada acha uma experiência maravilhosa.
O cunhado - que permanece repleto de tesão pela vegana - investe também para fazer uma penetração e ela breca, recua, e diz que só fez pelas plantas, pelas flores, pela árvore.
O cunhado então decide procurar um estúdio para pintar seu corpo e retorna para consumar o ato sexual com a vegana e o faz com prazer (ambos) produzindo um monumental vídeo. A noitada foi tão agradável que ele, cansado, dorme no estúdio ao lado da mulher.
No outro dia, quando procura a filmadora esta havia desaparecido. E mexe pra lá, mexe para cá, e após abrir uma porta encontra sua mulher (que já tinha visto o filme) e ele sem conseguir dar uma explicação ela o reprime e chama um carro da Polícia para prendê-lo por adultério e uma ambulância de um hospital psiquiátrico para internar a irmã.
Bem, entra-se, então na terceira parte do livro a mais complexa intitulada "Árvores em Chamas" é o ápice da criatividade, fantástica, impressionista. Nela, a autora isola o marido da irmã da vegana com quem ela manteve relações sexuais "artísticas" e ao mesmo templo voluptuosas, agradáveis, consentidas, e foca a trama nas relações das duas irmãs e análises psicologias e psiquiátricas de uma profundidade intensa.
A irmã mais velha carregando um sentimento de culpa por não ter conseguido ajudar a irmã na fase inicial do veganismo, desde quando o pai de ambas a esbofeteou, e também nas relações dela com o marido, e entre as duas e seu esposo, se vê, além desse sentimento de culpa traída pelo esposo, sobrecarregada de trabalho (possui uma loja) e criando um filho que é a cara do esposo, mas, ao mesmo tempo lhe dá alegria e sustentação, e vai acompanhar a irmã internada num hospital psiquiátrico, a seu pedido, sem muita certeza de que ela estivesse, de fato, precisando desse tipo de tratamento (e o hospital tem métodos da psiquiatria antigas com injeções e isolamentos) e não consegue entender o definhamento da irmã, nem ela, nem os psiquiatras, uma vez que ela decide (sonho que a vinha perturbando antes) ser como uma árvore, cujas raízes são dentro da terra, e ala se comporta assim, no hospital, ficando de cabeça para baixo como se fosse uma árvore, insubmissa.
Numa das visitas a enfermeira a guia e ela reconhece os cabelos da irmã mais nova. De ponta-cabeça, o rosto de Yeonghye está vermelho por causa da concentração de sangue.
“Já está assim há 30 minutos”, disse a enfermeira. “Começou a fazer isso há dois dias. Não parece estar inconsciente, mas tampouco fala...É diferente dos outros pacientes catatônicos. Até ontem, a obrigamos a entrar no quarto, mas ela fica de ponta-cabeça lá também”.
A irmã lhe oferece comida e manda que fique ereta. “Mana não precisa mais trazer isso. Não preciso mais comer” () Mas o que era aquilo que você estava fazendo de cabeça para baixo? () Sabe o que descobri? Foi durante um sonho. Eu estava de cabeça para baixo e meu corpo cresciam folhas, e de minhas mãos brotavam raízes”.
Os diálogos são intrigantes. E a medida em que ambas vão definhando, uma de forma física e mental gradual, e a outra de forma física e mental terminal, a autora encerra o livro deixando o leitor sem saber se ambas morrem fisicamente falando ou se estão mortas mentalmente. Nesse campo, sim.
Na nossa concepção (e é aí que a leitora fica grandiosa) ela o faz de propósito para que os leitores decidam ainda que deixe claro de que a saúde mental e física da vegana não tem retorno e da irmã com um retorno que se assemelha à procura de um novo caminho, sem o marido, buscando uma nova vida.
O livro, portanto, é muito bom e considerado um dos romances mais criativos da literatura contemporânea. Aos incautos que podem achar que "A Vegetariana" (até pelo título) é uma obra simples e que trata do veganismo puro vão encontrar um romance com uma análise profunda do comportamento humano, tratando de um tema que, em si, no âmago, é o veganismo, porém, fica-se na dúvida se as alucinações e os sonhos da personagem principal foram provocadas pelas mudanças de comportamento físico e mental a partir do veganismo (e sabemos que alguns desses tipos são chatos e impositivos) ou se o sonho que motivou toda essa mudança de comportamento veio apenas do cérebro, esse ser indomável.
Livro que comporta análises em várias graduações, como o próprio livro, uma montanha que vai se subindo desde o topo e na medida que se alcança alturas a obra vai crescendo em criatividade, em drama, e o leitora o acompanha com avidez, não necessariamente a espera de um final feliz, mas de um final que o surpreenda. E a autora consegue.