Vê-se desta mulheres de biquinis (na área das praias) a monges e freiras (na área do São Bento e Piedade)
Tasso Franco , Salvador |
31/10/2024 às 09:49
O consumidor da Avenida 7 tem essas características
Foto: BJÁ
Vou lançar em novembro próximo um livro de crônicas intitulado “O Andarilho da Cidade da Bahia” com 33 textos em prosas poéticas que retratam movimentos de Salvador e sua gente, lembranças do passado e situações do presente onde a violência tem nos deixado enjaulados. Tenho, assim, como os demais seres desta cidade, limitado o andar a determinado trecho que fixei no quadrilátero histórico entre a Barra e o Santo Antônio Além Carmo com incursões no Comércio.
Esta delimitação fui eu que estabeleci e não está relacionada com quaisquer remodelações dos espaços urbanísticos por projetos da Prefeitura ou do estado, supostamente segregadores e higienizadores como aconteceu na implantação da Avenida Sete, mas, apenas por questões de segurança. Alguns espaços são perigosos e não há intenções de sermos alarmistas. Porém, lá não pisamos os pés. Seguimos a realidade.
A propósito quando estava na inicial para escrever esta crônica lembrei-me de um personagem da vida esportiva do futebol na Bahia, o técnico e filósofo popular Sotero Monteiro, o qual dizia (creio que a frase seja original dele) que um jogador de bola se conhece pelo “arriar das malas”.
Essa expressão tem um significado abrangente no verbo “arriar”, o que se pode traduzir na maneira de ser do atleta, seu gingado, sua performance quanto a leveza, a educação, a postura física, etc; e o substantivo “mala” que se interpreta na qualidade do que colocou na prateleira, a marca, o que também se traduz por sua condição social, se uma pessoa é pobre ou remediada, se tem estilo jovem ou conservador e assim por diante.
Os exemplos, tanto do andarilho que represento no meu livro, um ser da classe média que aborda todos os segmentos da sociedade, desde os aposentados da Piedade aos descamisados da mesma área; quanto o “arriar das malas” de Sotero servem para trilhar nesse texto sobre os andares na Avenida Sete que são muitos, diferenciados, múltiplos e cada qual representa um ambiente (ou trecho da via). Isso é de uma complexidade enorme e ao mesmo tempo prazeroso em se verificar e acompanhar e descrever como são esses andares.
É possível vê-se uma mulher de biquini no calçadão da Sete nas áreas de praia (Farol e Porto da Barra) usando um fio dental desses onde mal se enxerga a linha do tecido e expõe as duas polpas da bunda quase como viviam as tupinambás o que, ao nosso olhar (e dos demais) se tornou uma situação normal, corriqueira. Porém, essa mesma pessoa ou assemelhada não será encontrada no trecho da 7 na Ladeira do São Bento ou no Relógio de São Pedro; assim como não se vê um monge ou uma freira no Porto da Barra com suas batas negras e cremes.
Que importância tem esses andares? Ora, existem muitas interpretações sociológicas e antropológicas para quem se dedicar a eles. O que não é o nosso caso. Apenas relatamos o que vemos, uma vez como já dito noutro texto que nosso trabalho se trata de um livro de crônicas e cabem aos estudiosos da academia a verificação desses pormenores da ciência social e humana.
O que observo é que o andar das pessoas nas áreas das praias obedecem a um modelo, a um padrão mais descontraído e relacionado ao lazer, ao lúdico, ao sex e as vestes seguem esse padrão; os andares na Ladeira da Barra, Corredor da Vitória e Campo Grande e Aclamação são outros; e aqueles relacionados a Sete comercial entre a Mercês e São Bento diversos dos demais com uma variedade de transeuntes mais abrangentes – comerciantes, comerciários, ambulantes, fregueses, religiosos, aposentados, mendigos, prestadores de serviços, pequenos empreendedores, batedores de carteiras e de celulares, policiais, travestis, etc , com andares que vão do contemplativo ao apressado.
Assim, é possível distinguir, neste trecho uma senhora que vai às compras nas lojas – e há muito mais mulheres do que homens – uma dona de casa de uma costureira; uma religiosa de uma prestadora de serviços.
Há, por exemplo, dois tipos de religiosas: as freiras que vestem indumentárias de freiras e são perfeitamente identificadas e as senhoras religiosas (de meia idade a velhas) que vão às igrejas orar e levam consigo a bolsa, o missal e o terço, mas não vão às compras. Muitas delas moram na própria avenida e imediações. A Paróquia de São Pedro é a mais frequentada porque tem cultos diários, restaurante e café com relações sociais intensas.
São personalidade diferenciadas e que as vendedoras das lojas as conhecem só no olhar. Assim como são identificados os advogados e advogadas pelas vestes (os homens de terno e as mulheres de ‘tailleurs’ e salto alto) e por carregarem pastas e papéis. Como também são identificadas pelo olhar as pessoas que não são frequentadoras da Sete e eventualmente vão comprar alguma coisa por lá. Diria que sou um desses modelos e quando estou andando por lá e retiro o celular para fazer fotos sou advertido pelos ambulantes: “Cuidado com os ladrões”. Meu andar, por posto, é mais contido, vigilante. E minhas vestes não combinam com as usuais da avenida.
Os ladrões ou batedores de carteiras e celulares são também conhecidos e identificados pelos comerciantes e ambulantes pelas roupas que usam, mais descontraídas, mais leves e próprias para poder correr, usam tênis e bikes e são (a maioria) jovens. Os ladrões não poupam ninguém e furtam as senhoras, os ambulantes e idosos homens, preferencialmente. Têm andares ágeis, malabaristas que atravessam a via correndo e não são atropelados pelos veículos.
Andar neste trecho da avenida, portanto, exige atenção especial, proteção as bolsas como se faz no Carnaval, olho vivo permanente. Mas, não é nada assustador e que não se possa ir. Se assim fosse o metrô de Paris não tinha tantos passageiros diante do “pickpocketes” e a Sete tantos clientes. Na cidade do Salvador essa convivência já faz parte do processo cultural. Curioso é que na Sete há um policiamento ostensivo (no Relógio de São Pedro e no Porto da Barra em especial), mas, ainda assim os ladrões agem.
Houve uma época em que a PM disponibilizava em vários trechos da avenida uma dupla de policiais apelidada de “Cosme e Damião”. Há patrulhas em carros e motos no Relógio de São Pedro, Piedade, Campo Grande e Porto da Barra. É raro vê-se a Guarda Municipal da Prefeitura e agentes da PC.
Vale ainda observar que, salvo nas áreas de praias, a Avenida Sete é uma via de pessoas da meia idade (30 a 50 anos) e velhos (a partir de 60 anos) e só se vê jovens quanto acompanhadas das mães (às compras), aqueles que se dirigem ao colégio do ensino fundamental (Rede Municipal da PMS), na Mercês, e os grupos estudantis e avulsos que vão aos museus do Corredor da Vitória, ao ICBA, a Sala de Cinema, e aqueles (las) que trabalham como propagandistas de vendas nas lojas e também comerciários (árias). Crianças são raras de encontrarmos salvo nas festas cívicas (2 de Julho e 7 de setembro) no Carnaval e nas áreas das praias.
E os ‘flâneurs’ – caminhantes, errantes com olhares críticos e passos lentos – os poetas da praça e os integrantes do Movimento de Ação Cultural (MOC), por onde andam?
Os “flâneurs” – como ato de passear vê-se poucos – alguns monges do São Bento e frades capuchinhos menores do Convento de Nossa Senhora da Piedade e, eventualmente, um outro andarilho como Getúlio Santana, ex-dono da Literarte que foi uma livraria que marcou época nos anos 1970/1980 e funcionava na galeria do Edifício Santo Amaro e era frequentada por muitos “flâneurs”, e os pesquisadores que usam o IGHB. O Movimento Poetas da Praça (Piedade) se extinguiu nos anos 1990 e o MOC durou pouco neste XXI século.
A Praça da Piedade se apequenou, perdeu força política e reivindicatória da sociedade e eventualmente acontecem movimentos de protestos por lá, quase todos sem grande significado ou repercussão. Um desses, recentes, a greve dos professores da UNEB, uma mixórdia. Hoje, gradeada, com portão principal fechado (o que é um absurdo) virou praça dos descamisados e ‘sacizeiros’ – usuários de ‘crack’. O banco que se situa no lado da Avenida Sete ainda é usado (parcialmente) pelos aposentados do INSS, cujos andares são lentos e a prosa diária contemplativa e queixosa.
Essa área na época da ditatura militar (1964/1984) foi palco de intensos conflitos entre as forças policiais de repressão e estudantes e sindicalistas. A Policia Montada dava carreirões nos estudantes e baixava o cassetete. O mosteiro de São Bento era o refúgio graças a ação do abade Clemente da Silva Nigra, de origem alemã.
A Avenida Sete – trecho Barra a Ladeira de São Bento – segue servindo de palco para protestos de grupos políticos e sindicais, já abrigou a Parada Gay Salvador, ainda acolhe o Carnaval, festas cívicas (2 de Julho e 7 de Setembro), e procissões para São Pedro e Santo Antônio. Cada evento desse tem andares comportamentais diferenciados. Um carnavalesco age e se movimenta de uma maneira que não se iguala a uma senhora religiosa que segue a procissão para um santo.
Também não se entende o porque de passeatas de movimentos políticos e sindicais na Sete uma vez que, as pessoas que estão na avenida, não se interessam por eles e até se irritam.
A Sete também abriga os praticantes do ‘cooper’ criado pelo médico norte-americano Kenneth H. Cooper inventor da ginástica aeróbica (1968), jogadores de petecas e vôlei de praia e são vistos com diferenciados andares. No “cooper” – jovens e velhos; na peteca – velhos; no vôlei -jovens. Até na Sete comercial vê-se pessoas praticando “cooper” e são intensas essa prática no Campo Grande, Corredor da Vitória e Barra.
Há um andar compassado e discreto de travestis, garotas e boys de programas sex chamado “trottoir” que significa calçada, em francês. Essas pessoas andam em pequenos trechos da 7 (na calçada) ou fazem ponto em locais estratégicos (na calçada), sempre às noites, mas também são encontradas de dia e agendadas para massagens através WhatsApp.
É intenso o movimento de carga e descarga de mercadorias na 7 comercial e embora haja horário próprio para esse fim - acontece durante todo o dia - e os andares dos trabalhadores que operam carrinhos e utilizam a cabeça e os ombros para conduzir os produtos é ágil, verdadeiro malabarismo. Vê-se, como frequência carregadores portando imensas peças de tecido (em rolos) e adentrando as lojas, na maioria das vezes com clientes. Eles gritam, gesticular, pedem licença (olha o gelo) e seguem adiante.
Os distintos andares na Avenida Sete, portanto, revelam personalidades as mais variadas, um retrato característico da maioria da população de Salvador.