Cultura

ROSA DE LIMA COMENTA BOM DIA VERÔNICA POR ILANA CASOY E RAPHAEL MONTES

Os autores - Ilana Casoy e Raphael Montes - são craques da palavra e o livro é muito bem escrito o que permitiu (creio também) ser mais fácil roteirar a série, até porque Montes é o roteirista.
Rosa de Lima , Salvador | 21/09/2024 às 10:37
Bom Dia Verônica, em Cultura, literatura
Foto: BJÁ

Há de se dizer e entender que a leitura cinematográfica é uma coisa com a interpretação visual dos atores e a dramaticidade de cada um deles, cenário, ação eletrizante, suspense, emoção à flor da pele; e a leitura da escrita no papel, em livro, é outra coisa e o leitor que se esforce mentalmente para criar movimentos nos personagens e dar a sua interpretação. Trata-se, pois, de uma tarefa bem mais complexa do que assistir a versão na telinha.

Comento o livro de Ilana Casoy e Raphael Montes, “Bom Dia Verônica” (Companhia das Letras, 2ª impressão, 2022, capa Elisa von Randow, foto da capa Peter Dazeley-Getty Images, 318 páginas, R$69,00 nos portais da internet) e que se tornou série da Netflix e assim ficou mais conhecido do público. O livro, no entanto, é o mérito, a base, e por ter sido bem escrito e conter as emoções em palavras resultou na série televisiva explosiva e de grande audiência.

Na série da telinha, creio, fica mais agradável e poupa o exercício mental aos leitores que percorrem seus olhares no livro. No meu caso, primeiro vi a série me dei por satisfeita. E até não pensei em comprar e ler o livro. Porém, sendo crítica de literatura, seria até uma incoerência não comentar. E ao lê-lo, apreciei a leitura com olhar bastante atenciosa. Os autores - Ilana Casoy e Raphael Montes - são craques da palavra e o livro é muito bem escrito o que permitiu (creio também) ser mais fácil roteirar a série, até porque Montes é o roteirista.

Creio, ainda, que um trabalho em conjunto de dois autores é sempre mais complexo. Ainda que possam ter pensamentos assemelhados em determinados pontos de vista, nem sempre isso ocorre e há eventuais divergências. Mas, por outro lado, uma mão sempre ajuda a outra no dizer popular do trabalho manual simples, o que vale também para a literatura, trabalho criativo de dois cérebros. Às vezes, com ideias convergentes e noutras dissonantes. Na narrativa me pareceu que esse casamento foi perfeito no sentido de oferecer aos leitores o melhor em compreensão, sem perder a ênfase no suspense. E isso eles conseguem até o final do enredo, o que, evidente, prende a atenção dos leitores e garantem que leiam até a última página.

 Originalmente, o livro foi publicado com a assinatura de Andrea Killmore, em 2016. Em 2019, Raphael Montes e Ilana Casoy revelaram ser os reais autores do livro, e o a obra que já tinha sido bem aceita pelos leitores ganhou uma nova dimensão. Montes é conhecido por suas histórias de suspense, crime e terror e venceu o Jabuti, em 2020; e Ilana Casoy é escritora e criminóloga, especialista em perfis psicológicos de criminosos. Veja, pois, o que comentei acima sobre o casamento perfeito quando se trata de uma obra escrita por autores, em que um vai tirando dúvidas do outro e fazendo os complementos. Escrever sobre crimes exige-se além de contar uma boa história, a parte técnica, as terminologias para não se falar coisas sem nexo.

Portanto, deu-se um casamento literário mais que perfeito de experientes profissionais da palavra ela que já tinha feito relatos sobre o Caso Nardoni e O Quinto Mandamento – Caso de Polícia, sobre o assassinato do casal Richthofen, crimes de grande repercussão em SP e no país.

 “Bom Dia Verônica” é uma obra de continuidade dessa trajetória dos dois autores e a narrativa sobre a policial Verônica Torres, uma burocrata de delegacia filha de ex-policial, se move substancialmente quando acontece um suicídio cinematográfico em plena delegacia de homicídios, após, a vítima conversar com o delegado chefe. Eis, leitores, o que significa encontrar um mote para desdobrar um grande enredo.

 Abriu-se, assim, uma janela aos seus olhos da policial de bastidores levando-a a querer investigar o que teria motivado a mulher ao suicídio e o que pensava o delegado sobre o caso. Esse desejo aumentou de forma acentuada na medida em que o delegado deu de ombros e insinuou que “era apenas mais um caso de polícia, sem relevância, e pouco importava o que ela o teria dito ou confessado”.

 Essa sintomatologia da indiferença ativou sobremaneira o desejo de Verônica ir mais fundo na investigação quando recebe a ligação anônima de uma mulher apelando por socorro à sua vida. Verônica decide investigar os dois casos e se havia uma relação de um com o outro. 

A narrativa ganha fôlego e suspense quando a policial percebe que essa relação existia e estava diante de um caso mais complexo envolvendo um “serial killer” (assassinatos em série) e que imiscuía o submundo da Policia, como instituição, e provavelmente o delegado presumivelmente corrupto. 

   O suicídio de Marta Campos, a mulher que fora à delegacia onde Verônica trabalhava para prestar queixa contra um homem que lhe dera o golpe do "Boa noite Cinderela” é o fulcro da história. Quando Verônica tenta investigar o caso encontra inúmeras barreiras e os autores põem o dedo na ferida do sistema de segurança pública onde obstáculos aparentemente invisíveis, porém, perceptíveis dos agentes da lei, impedem que técnicas investigativas sejam efetivadas e muitos crimes se tornem insolúveis. 

   Os autores, no entanto, dão sequência aos desejos de Verônica em apurar os possíveis crimes em foco do livro, praticados por um PM graduado, o que demonstra, também, uma crítica ao sistema corporativo policial.

  Verônica consegue ir adiante expondo sua família (marido e filhos) ao perigo até desvendar todos os delitos e os autores revelam durante o processo investigativo como se comporta o sistema policial comprometido com a corrupção. O livro é também isso, um tapa visceral, na cara organização policial como instituição do estado.

 Ao entrar em cena de maneira mais expositiva a personagem Janete (a mulher que lhe dera um telefonema anônimo, na inicial) marcando encontros com a policial em sua própria casa, estabelece-se a certeza de que os abusos que sofria do policial militar, havia uma extensão maligna por detrás disso, um compadrio macabro inicialmente consciente com a participação de ambos no assassinato de mulheres.

Janete está sufocada por uma caixa que é posta em sua cabeça nos momentos dos crimes e igualmente sufocada na psiqué, na consciência, de que praticava um ato macabro, ainda que forçado, na base da tortura e do medo, mas que teria que ter coragem de denunciar. 

E esse choque, com decisão complicada de ser tomada, uma vez que amava o marido e o tinha como o homem de sua vida, aquele que lhe daria um filho, tem um difícil rompimento porque ora sua cabeça pendia para denunciá-lo e ora para protege-lo, sobretudo porque o próprio Brandão, nos momentos mais tensos lhe dizia que a esposa era uma participe dos crimes que praticava, ainda que não visse em tempo integral as torturas que cometia com as jovens que aliciava na Rodoviária de SP vindo do Norte do país, em busca de melhores oportunidades na vida. Um tormento na cabeça de Janete que, em momentos, vê Verônica como uma vilã.

  Verônica é casada com Paulo e tem dois filhos pequenos. Esse é outro nó no enredo do livro. Paulo é um bom marido e bom pai, mas incapaz de satisfazer as necessidades e desejos da esposa, além do que, o dever de policial a convoca para elucidar crimes hediondos. E ela atropela a fidelidade do esposo em nome da causa e até relega os filhos a um segundo plano. 

Além dos três, o pai de Verônica, Júlio Torres, ex-policial de passado sombrio, serve como ponto de conforto e alívio para ela. Nos piores momentos de pressão, ela o visita no asilo. São momentos do livro que os leitores passam batidos. 

O foco são as investigações dos dois casos que ocorrem de forma paralela. Em um momento, Verônica tenta descobrir quem é o homem que provocou o suicídio de Marta Campos e, para isso, cadastra um perfil “fake” em um site de relacionamentos, o mesmo que Marca Campos conheceu o sujeito. Quanto ao caso de Janete, Verônica passa a monitorar a rotina de Brandão e tenta aconselhar Janete a ser firme em denunciar o marido. 

O final da narrativa é cruel. Por detrás do misterioso Brandão há uma bruxa ancestral e o ritual macabro ganha esse tom cinza. Verônica o rastreia e o persegue até o esconderijo onde pratica as atrocidades, vê-o matando o delegado chefe, encontra Janete queimada, torrada, ela que havia aberto a caixa e ele a flagrou observando seu diante da última vítima uma empregada doméstica e a policial o mata a tiros e depois o incendeia.

  “Dei um tiro no meio de sua barriga, que passou a jorrar sangue sem parar. Ele me encarou repleto de pavor antes de desmaiar, segundos depois. O passo seguinte já devia estar desenhado em minha alma, porque eu soube exatamente o que fazer. Um corpo inerte pesa muito, mas a adrenalina faz a gente tirar forças sem saber de onde. Busquei a corda e galão que havia dentro de casa, e então arrastei Brandão até a árvore onde reluzia o lampião. () ...ele voltou a entreabrir os olhos ()... despejei todo galão de querosene sobre ele ()...Isso é pela Jenete ()...Risquei um fósforo e, de uma distância seguro pus fogo naquele lixo humano.

Há, um epílogo e a interpretação que fica por conta de cada leitor. Excelente livro, repleto de lições de persistência e entusiasmo, de combate ao crime com extensão aos bastidores, o próprio sistema policial, enfim, dá conta de quem nem tudo está perdido e ainda há, aqueles e aquelas, como Verônica que lutam incansavelmente em busca de justiça.