Nenhuma outra festa reúne tantas famílias numa única avenida como o 7 de setembro
Tasso Franco , Salvador |
12/09/2024 às 09:33
A Av. Sete ocupada pelo povo no desfile ao 7 de setembro
Foto: BJÁ
O DESFILE CIVICO MILITAR DO 7 DE SETEMBRO NA SETE
O desfile cívico-militar comemorativo da independência do Brasil como colônia de Portugal, episódio que aconteceu em 7 de setembro de 1822, capitaneado pelo príncipe regente Dom Pedro I, e que acontece na Av. Sete, em Salvador, num trecho de 3 km entre o Corredor da Vitória e a Ladeira de São Bento, é a festa da família baiana pobre que reúne a maior quantidade de pessoas.
Neste 2024, levando-se em consideração a largura da rua e sua extensão e mais as quatro praças ocupadas pela população (Campo Grande, Aclamação, Piedade e Rio Branco) estima-se em 240 mil pessoas - ao menos - que assistiram ao desfile.
Mas, não só assistiram - é bom que se diga. Vibraram, exaltaram, cantaram e aplaudiram especialmente os militares das três Forças Armadas - Exército, Marinha e Aeronáutica - da Policia Militar, do Corpo de Bombeiros e da Policia Civil num fenômeno digno de nota, até inexplicável, uma vez que se imagina (ou pelo menos parte da mídia vê assim) os militares são algozes do povo. Ledo engano, creio e asseguro porque vi, assisti, presenciei, mesmo que o Brasil tenha saído de uma Ditadura Militar que completa 30 anos que se findou, uma empatia e quase amor aos militares.
Que fenômeno é esse então onde se vê centenas de crianças uniformizadas como militares, isso feito de forma espontânea pelas famílias mais pobres de Salvador, que levam seus filhos e filhas ao desfile dessa maneira?
Não saberia explicar até porque não sou sociólogo e não conheço nenhum estudo acadêmico sobre esse tema. Relato nesta crônica o que vi, acompanhei, anotei, fotografei e filmei.
Nenhuma outra festa da cultura popular de Salvador - nem o Carnaval que é o maior do planeta na rua – coloca numa avenida, num mesmo espaço, numa única via, tantas mamães e papais para presenciar um desfile.
Trata-se de uma festa cívica popular sem igual na Bahia, o que certamente também acontecem em cidades do interior do estado, numa dimensão menor de público, porém, com o mesmo viés.
Em Salvador, a classe média alta não apareceu. Os ricos do Corredor da Vitória e do Campo Grande um ou outro desceu dos apartamentos para acompanharem o desfile.
A festa foi eminentemente do povo e o que se vendeu e se consumiu foram produtos populares, desde os pratos feitos da Piedade a R$8,00 a quentinha; a maçã do amor, sorvetes, picolés, churrascos nos espetinhos, bolas, ‘hot-dogs’, sonhos, refrescos, sucos, martelos de plásticos, pipocas, pastéis, cocos verdes, etc, etc, nada que ultrapassasseR$10,00 a unidade, os mais caros.
Conversei com várias pessoas e consumi água mineral (R$3,00 a garrafa de 500 ml) e picolé (R$2,00) e cheguei a analisar a possibilidade de deliciar um churrasco no palito (R$10,00), robusto, contendo carne, frango e calabresa, a senhora vendedora me garantindo que era de excelente qualidade, mas, não tive fome suficiente para encará-lo. Vendeu bem e ela me confessou que “em nome de Jesus” venderia todos que havia trazido de casa, previamente montados e acondicionados num isopor de plástico.
Assim é o desfile do 7 de setembro visto pelo povo que vai a festa para assistir o cortejo das tropas, dos carros, das motos, dos cavalos, das fanfarras, das bandas militares, das coreografias com bandeiras, mas, também curte o dia na avenida mais querida da cidade e nas praças. As crianças foram as mais felizes e se divertiram nos parquinhos improvisados, soprando bolinhas de sabão, acomodadas nos ombros dos papais e das mamães, comprando bolas e balões de plástico. Enfim, se soltaram numa alegria que contagiava as famílias.
Nesta festa cívica é diferente do 2 de Julho - outra data do civismo baiano representativa das lutas da Independência da Bahia, em 1822/1823 - em que até o presidente da República pega uma ponga e os políticos aparecem em profusão, sobretudo no trecho do desfile entre a Lapinha e a Praça Municipal, no turno da manhã. A tarde se dá o desfile militar e de bandas entre a Praça Municipal e o Campo Grande, com uma quantidade de pessoas bem menor do que no 7 de setembro.
O desfile em Salvador historicamente seguiu a tendência do que aconteceu no Brasil após a independência de Portugal, em 1822. O Brasil, ainda quando Colônia, experimentou o primeiro desfile da Banda da Brigada Real da Marinha, em 1808, no Rio, com a chegada da Corte de Lisboa que fugiu de Portugal escorraçada pelas tropas de Napoleão Bonaparte. Na atualidade chama-se Banda dos Fuzileiros Navais.
Em 1823, a Assembleia Constituinte determinou que o dia 7 de setembro fosse designado feriado nacional festejado com salvas de artilharia, parada militar, missa na capela imperial, cortejo no palácio (com a antiga cerimônia do beija-mão), e espetáculo de gala no teatro. Em 1862, o parlamento consagrou o 7 de setembro como dia de festividade nacional em comemoração da Independência.
Seguiram-se debates para declarar que a Independência era uma conquista “verdadeiramente do povo”. Até alcançar esse padrão demorou. Na monarquia, as fachadas dos edifícios públicos, bem como as das casas particulares.
“Às vezes, construíam-se monumentos alegóricos efêmeros nas praças e montavam-se espetáculos de fogos de artifício, ao som de música, tudo para entreter e edificar o povo”, diz trechos da imprensa da época.
Os jornais publicavam artigos de fundo em que analisavam o significado do dia e relacionavam-no à conjuntura política. Em 1838, o “Correio Mercanti”l, de Salvador, saudou a atuação do “imortal D. Pedro”, cujo “grito da Independência do Brasil (…) ecoou entusiasticamente em todos os corações brasileiros, desde o soberbo Amazonas até o rico Prata”.
Em 1850, outro periódico baiano, de linha liberal (e então oposicionista), O “Sécul”o, lamentou “o desprezo (…) pelas instituições [e] as violações das leis da constituição”.
No segundo período imperial os festejos ganharam mais entusiasmo com festas populares organizadas pelo governo.
Em 1857 o Rio de Janeiro desfrutou de “três noites de iluminação, salvas, girândolas e foguetes a mais não poder, músicas em coretos e pelas ruas, jantares e reuniões patrióticas”. “Milhares de cidadãos de todas as classes e posições” se levantaram cedo em 1859 “para saudarem o alvorecer do primeiro dia nacional”.
Com o advento da República proclamada em 1889 o 7 de setembro sobreviveu os ataques dos críticos que o julgavam incompatível com o novo regime. Nos primeiros anos da República, festejava-se pouco a data.
No início do século XX, o 7 de setembro reconquistou seu lugar central no civismo brasileiro, mas tomou formas autoritárias ou conservadoras. Na Bahia, a Liga de Educação Cívica, fundada em 1903, distribuiu bandeiras nacionais e panfletos explicativos dos feriados nacionais para escolas estaduais, no intuito de criar “cidadãos honestos, fortes e patriotas”.
Promoveu desfiles escolares no 7 de setembro, que se enquadravam bem nas formas mais militarizadas e regimentadas de comemorar o dia. A cultura patriótica militarizada também floresceu em escolas paulistas nas décadas de 1910 e 1920, em que evoluções militares e desfiles em dias de festividade nacional faziam parte da educação física.
Em resumo, até porque este não é um livro de história e sim de crônicas. O significado do 7 de setembro e as comemorações têm interpretações as mais variadas possíveis e uma extensa bibliografia à disposição de quem deseja fazer análises históricas e psicossociais. Atravessou 67 anos do Império e 135 da República, com suas diferentes fases a Velha e a Nova República, duas guerras mundiais e duas ditaduras locais.
Em cada fase e em cada momento os governos iam dando interpretações variadas ao evento, o civismo de ocasião ia sendo colocado para apreciação da população, a qual servia de amortecedor para avaliar atitudes governamentais, ditas patrióticas. Assim, no primeiro Império foi uma coisa; no segundo, com Pedro II, outra; com Deodoro e Floriano, diferenciada; na República Velha até Vargas, debates e acomodações; Estado Novo e 1964 exaltações aos militares; Nova República e redemocratização um civismo mais contemporâneo e sem “Ordens do Dia” mais “patrióticas”.
E o povo, que é a base de tudo, e já no Império com Pedro II retirou-se a festa dos salões e igrejas para as ruas na tentativa de tornar a data uma festa popular, e em parte deu certo, continua sendo o alvo (a base) até os dias atuais onde a festa é sua.
Em Salvador, creio, explica-se o fenômeno de querência do povo com os militares diante da violência urbana, visto que são, assim me parece, uma “tábua de salvação”, mas, não necessariamente num modelo de assumir o governo através de um golpe de estado, e sim, apenas na sua proteção.
Há, ainda, o desfile no sentido do lúdico, do sex, e durante o desfile muitos militares são chamados de “gostoso”, “tesudo”, e assim por diante. Estudos que sejam para os sociólogos e psicólogos.
E, pra fechar, só a partir da inauguração da Av Sete, em 1915, o desfile cívico militar passou a ser feito nesta avenida. Não sei a data certa que principiou. Em 1964/1965, eu aluno do CPOR/Exército desfilei nesta avenida portando um fuzil da I Guerra Mundial, de 1918.