Cultura

O HOMEM VERDE DO GINÁSIO, CAP 30: O CARTEADO E O CRIME DO BANDOLINISTA

Maestro Juá foi preso e depois libertado após passeata na aldeia das bandolinistas da Serra. Último capitulo do livro "O Homem Verde do Ginásio", de TF
Tasso Franco , Salvador | 11/08/2024 às 11:50
Último capítulo narra crime do maestro Juá
Foto: SERAMOV

 

Prólogo:

- Gostaria de dar uma pequena prosa antes do encerramento deste conclave – assim adiantou Dr. Tamboatá  - entendendo que sendo o Juiz dos Feitos, autoridade máxima do Tribunal da Apelação - destacar que admirei todos os contos relatados, em especial esse último do bode preto incendiário porque denota a força do nosso poder, o gáudio do nosso judiciário, pois, se os advogados do banco não tivessem entrado em cena para por fim a essa bandalheira, a queima criminosa de sisal nos armazéns para receberem gordos seguros, polpudos dividendos, ainda hoje nesse liminar da década de 1960 estaríamos a ver chamas em nossa aldeia. Assim, com todo respeito a essa criação da cabeça do povo da existência desse bode maligno eu não acredito nele e, portanto, se aconteceram orações para que ele voltasse às suas trevas, não passam de uma ficção, pois, se não havia o Lilitu as rezas foram inócuas.

- Peço também permissão ao ínclito mediador para contextualizar a fala do nosso magistrado, não rebatê-lo porque a Justiça sendo cega, imparcial, sempre procura propugnar a verdade, porém, há de saber o magnífico juiz que esse bode vem sendo adorado na Europa desde a idade média e no frontispício do ‘Tratactis Contra Sectum Vendensium’ aparece sendo adorado por bruxos de ambos os séculos, e a figura do íncubo, o espírito demoníaco que tem relações sexuais com mulheres e lhes causam pesadelos, persiste até os dias de hoje, portanto, esse bode incendiário existiu, e não duvido que essa feiticeira do Regalo, essa bruxa que voou numa vassoura, esteja irmanada com o demo, e se ela quando fez esse voo descrito pelo fazendeiro Epaminondas Barbosa tivesse citado o nome de Cristo teria cairia no solo e há registro que, em Arles, segundo Gervásio de Tilbury, voou uma mulher dessa mesma maneira montada numa vassoura e quando apelou para Jesus mergulhou das alturas no Ródano e ficou enterrada até o umbigo, portanto, quem nos salvou das chamas do bode incendiário foram o ‘direito’ do céu e as orações à Senhora Sant’Anna.

   O magistrado esboçou uma réplica, porém, intervi acionando a sineta esclarecendo que diante o adiantado da hora, a senhora Agripina já havia colocado velas para acendê-las e uma representante da Pensão de Dona Belinha viera comunicar que os distritais lá hospedados da Pedra, da Manga, do Raso e de Barrocas só poderiam entrar no recinto até meia noite uma vez que a proprietária da hospedaria não poderia ficar madrugada à dentro esperando hóspedes e, então, passei a palavra a última contista, senhora Celina Dalva Zilda Ingá, representante do bairro Centro Histórico, para que proferisse sua oração, uma senhora idosa oriunda do século XIX testemunha ocular da história da aldeia, cabelos brancos com sinais de muitos janeiros, baixa como as portuguesas de Braga donde sua família era descendente e chegou no sertão se estabelecendo nas terras do São Bartolomeu com a Tirirca.

   Com voz pausada e suave assim começou a senhora Celina Dalva: - Quando eu era adolescente muito apreciei a Orquestra de Bandolins formada por senhoritas de nossa aldeia, embora nela não toquei, mas também conheci o maestro Álvaro Aderaldo Juazeiro, conhecido e admirado como maestro Juá, espirituoso, exímio, bandolinista, professor amado e que ensinou as meninas a difícil arte do bandolim, e além de maestro tinha seu quarteto musical que animava saraus e o próprio, sozinho, era chamado por senhoras da nossa sociedade que, endinheiradas, fogosas, modernas como  gostavam de serem chamadas lá nos anos 20 quando a Semana de Arte Moderna de São Paulo abriu os olhos de Pindorama e apreciavam, diriam, amavam uma roda de carteado, especialmente do pôquer, que já se jogava em Nova Orleans, nos EUA, desde 1830, e contou-me meu finado esposo Renato, conhecido por ‘escrivão Ingá’ que anotou todas as ocorrências policiais de nossa aldeia entre 1910 e 1940, quando Deus o levou para sua morada, o qual escreveu no livro de registros da nossa delegacia todo o acontecido, os pormenores e a injustiça que foi perpetrada contra o maestro Juá...

   - Senhora Celina Dalva queira por obséquio revelar logo esse mistério como se deu esse crime, pois, devido adiantado da hora estamos nos aproximando das onze da noite, portanto, conclua logo seu conto – comentei com a sineta em mãos sem acioná-la.

   Ora, meu admirável jornalista, estou a concluir, porém, sendo uma narrativa complexa e segundo consta nos laudos do meu amado escrivão, que Deus o tenha em sua glória, mas, ele está sempre comigo,  o mastro Juá disse no seu depoimento a nossa Força Policial que, como fazia a cada 15 dias chegou ao casarão do Largo da Estação, área nobre da nossa aldeia, para tocar seu bandolim às madames e adentrou no chalé com suas partituras, o cavalete e o instrumento, sendo recebido pelo mordomo e se dirigiu para o canto da sala onde executava as peças musicais e emanava cheiro de lavandas da França e incenso de aromas silvestres naturais e a mesa onde as senhoras jogavam o carteado e saboreavam chás, havia uma anexa ao lado com vinho do Porto e salgadinhos estava esmeradamente postas, sendo que a senhora Esmeralda dona da casa, era viúva que usava dupla alianças no dedo anular esquerdo, desembargadora aposentada do Tribunal de Feitos, riquíssima, proprietária de fazendas deixadas em herança pelo Landulfo e cuidadas pelo genro, bem administradas, o que lhe garantia um soldo alto anual além da grana gorda que recebia da aposentadoria incorporada com gratificações, periculosidade e outros, mês a mês pingando em sua moringa todo dia 25 chovesse ou fizesse sol, com crise ou sem crise, porque dinheiro de cofres públicos nunca falta e se em algum momento escasseia rodam-se as máquinas, imprime-se mais cédulas e pronto, e disse o maestro ser suspeito para falar do porte, da elegância, da distinção e da beleza da senhora Esmeralda, 60 anos ou um pouco mais, fêmea de cinema, até porque rica nunca é feia, desengonçada, dá-se um jeito em tudo, pele lisa como rosto de bebê, rosada, dentes de porcelana, alvos, brilhantes, e mais registrou dados registrou meu saudoso Ingá, dito pelo bandolinista que ele sendo beneficiário de sua gaita, cada tocata lhe rendia uma boa soma, a distinta era mão aberta e suas amigas também, prefiro a reserva, sendo que as senhoras das cartas eram servidas em chá pelo mordomo Valter, com salgadinhos selecionados e entregues pela Casa Blanca, a mais chique da aldeia, sendo as outras a madames Rubi, esposa de industrial e exportador de fumo; a senhora Diamante, do ramo da construção civil; e Tia Ametista, cuja família era dona do maior conglomerado de casas e sobrados da aldeia, todas educadas, discretas e se falavam alguma coisa de alcova dos seus maridos e amantes o bandolinista formou que nada escutava ‘pois cochichavam e davam risadas abafadas como hienas’, e sempre começava sua apresentação executando maxixes, o corta-jaca, que a madame Esmeralda amava e já sabendo disso caprichava na apresentação, e em seguida tocava polkas e choros de Ernesto Nazareth e quando estava executando a peça ‘Carinhoso’, do Pixinguinha, com todo esmero, a emoção tomou conta das senhoras, o mordomo serviu uma rodada de Porto Taylor e deu-se um pequeno intervalo nas cartas para apreciar seu solo, quando, confessou o maestro Juá “a emoção foi tanta que as palmas para minha performance foram as maiores que já ouvira, mas a senhora Ametista, no entanto, não bateu as mãos em palmas e quando a rodada de cartas voltou à mesa, notei que ela estava paralisada feito uma múmia, olhos semicerrados, bem postada na cadeira, firmes, porém, imóvel, não sei se as outras senhoras haviam notado, mas, eu e o Valter notamos”.

   Por favor, senhora Celina Dalva conclua seu conto senão daqui pouco o Rasga Mortalha passa por aqui...

   Para concluir meu fádico jornalista: - Ainda assim, de acordo com o depoimento do bandolinista, deu-se a distribuição das cartas pela senhora Rubi e quando se iniciou nova mão do jogo, ele a essa altura executando uma peça da Chiquinha Gonzaga, os lábios da senhora Ametista já arroxeados, foi que a madame Esmeralda disse em alto e bom som: “Acorda Ama” - apelido carinhoso que chamava a amiga – notando que não se mexia, mas, não pararam de jogar nem ele de tocar, “uma vez que eu só parava minha execução quando concluída 3 horas de trabalho”, e a mão do jogo foi vencida pela senhora Diamante que também pilheriou com Ama: “Dormindo em querida, o Porto lhe apagou” e  quando olharam mais atenciosamente para a senhora Ametista, sim, viram que seus olhos estavam fechados, os dedos das mãos rijos e a cor do face pálida como uma vela de cera, “Senhora mãe e santa do Pilar”, pôs a mão na testa a madame Esmeralda levantando-se para auscultar o coração de Ametista e assim revelou: “não sou médica, mas sinto que está parado” disse já aflita pedindo que o bandolinista tocasse uma valsa ou uma canção melancólica, “o que, imediatamente passei a fazê-lo, mas, logo depois parei de tocar e, juntamente com o mordomo Valter, pegamos a senhora desfalecida, eu pelos pés e o mordomo pelos ombros e cabeça e deitamos a provável defunta numa otomana, o que fizemos com presteza mas senti, ao pegar nos tornozelos da senhora em tela que estavam rijos e gelados e o Valter, nada dizia, cumpria ordens e abraçou-se a cabeça da senhora e aos ombros, ela que supomos tinha em torno de 80 quilos, era arredondada e ficamos em silencio diante daquele corpo inerte, até que dona Esmeralda ligou seu Ford de Bigode e colocamos a digníssima desfalecida para que fosse levada ao Pronto Atendimento da aldeia e quando lá chegamos a veneranda senhora já estava morta o que foi atestado pelo legista de plantão, creio sem diploma, um rábula da medicina, o qual afirmou que a referida senhora morrera de emoção e, como tal, imputou-se ao meu bandolim esse diagnóstico, a música a teria emocionado com meus acordes, e o que tenho a dizer neste depoimento é que não tenho culpa de nada”. Esse foi o depoimento assinado pelo do maestro Juá ao meu digníssimo esposo na delegacia da nossa Força Policial. É isso que tinha a contar, meu excelso mediador.

  - Gostaria que a senhora dissesse para concluir, finalmente, o que se passou com o maestro uma vez que esse um fato muito antigo – aduzi.

   Finalizou os finalmentes Celina Dalva: - O delegado calça curta de então, creio que era 1916 ou 1917, mandou prender o maestro, houve uma revolta das bandolinistas da orquestra que fizeram a primeira passeata de nossa aldeia exigindo justiça e a soltura do maestro Juá, o caso teve repercussão na capital e veio um renomado médico legista da cidade da Bahia, realizou-se a exumação do corpo, diga-se a primeira da nossa aldeia, e atestou o doutor legista que a dita senhora morreu de um AVC, nada no coração, nada de emoção e o maestro foi solto, glorificado, continuou dando aulas para as novas e antigas alunas da orquestra, e seguiu tocando na casa de dona Esmeralda, menos de um mês depois desse fatídico caso, a qual, convidou para o lugar sua amiga Ama, a senhora Safira para compor a mesa do carteado.

 

Moral da história: Em sobrado de madames com nomes de pedras preciosas o pôquer é sagrado.

                                                                 ****

Agradeci a presença dos contistas, dos observadores, dos técnicos em gravação, de Agripina e sua equipe e dei por encerrada a tertúlia. A direção de “O Serrinhense”, quinze dias depois, constituiu uma comissão de historiadores e intelectuais da aldeia, os professores Clóvis Jambeiro Matoso, Valtir Amendoeira Cerqueira, Alcaro Jenipapeiro Ferreira, Benjatin Cajueiro Queiroz., César Tangerina Pães que, após a leitura dos textos e longos discussões selecionaram os campeões: 1º lugar para o conto o Bode Preto Flamejante que incendiava armazéns de sisal; 2º lugar para a Bruxa do Regalo e 3º lugar para o conto do Tubarão da Cabeça da Vaca.

 A solenidade de entrega dos prêmios aconteceu no Hotel da Leste em noite de gala com evento da premiação e baile animado pela Orquestra Azevedo sendo entregues medalhas de ouro, prata e bronze aos campeões e medalhas, assim como os prêmios prometidos na inicial deste livro, medalhas de aço inox aos demais aos demais contistas, sendo que os colaboradores e a equipe da senhora Agripina receberam medalhas de plantinha e para os jurados títulos de Honra do Mérito.

Fim