Cultura

O HOMEM VERDE DO GINÁSIO: O BODE PRETO QUE QUEIMAVA ARMAZENS DE SISAL

Penúltimo capítulo do livro "O Homem Verde do Ginásio", de Tasso Franco
Tasso Franco ,  Salvador | 03/08/2024 às 21:04
O bode preto pilotava uma coruja
Foto: Seramov

Prólogo: 
Gostei muito desse conto, disse Francisco Palmeira Secundo, representante da Pedra, pois, se aqui na sede de nossa aldeia que é um lugar desenvolvido, de “pogresso” como diz o povo, não tem psicólogo imagem na nossa Pedra que é um distrito que não tem nada e nós vivemos ao Deus dará e esse é um bom ditado, pois, quando Deus dá, tudo segue adiante, quando Deus protege a gente vive mais; e quando não, morre-se sem socorro de doutor da medicina, de enfermeira, de padre pra dá a extrema unção e salvo a senhora Inocência do povoado do Setor, que é boa rezadeira e cura coisas da mente, vivemos ao leu, ora pois, sujeitos aos descaminhos ensinados pelo Belzebu que povoa cada trilha.

Ergueu-se, então, o padra Demôndaco e com voz pausada assim se pronunciou como se estivesse a pregar numa homilia: - Meu imensurável Secundo quero vos dizer que nessa terra em que pisamos, em qualquer território, seja aqui ou na França; na Água Fria ou na Alemanha, Deus está vigilante e nos proteger, a amparar todos os seres vivos do planeta e se não há médicos, existe a fé; se não há enfermeiros existe a esperança e vade retro (se benzeu três vezes) o Belzebu não tem vez e mesmo eu ronde cabeças e mentes, como vimos com o senhor Joãoaquim Afogado, e aquilo do desespero dele foi obra do demo, escapou do afogamento pelas mãos de Deus, isso não tenho dúvida. 

Acenei para o pároco pedindo que abreviasse sua oração e passei a palavra ao penúltimo orador da tertúlia o senhor Erasmo Carrapicho Araticum, conhecido como “Barba de Velho” representante da comunidade do Raso, homem inteligente, lido, letrado, astuto, tez avermelhada, cara de gringo garimpeiro com enorme barba branca com mechas de fios pretos, sobrancelhas altas próprias para um bruxo do medievo, voz firme de tenor do Coral da Capela de NS da Conceição do seu Raso que luta com todas as forças para se emancipar de nossa aldeia e se tornar Araci, belo nome por sinal.

Assim iniciou seu Erasmo o seu conto: - Meu pertinaz jornalista embora o digníssimo pároco tenha nos dito a pouco que Deus nos protege de todos os males e eu acredito piamente nisso tanto que oro todos os dias para ele e aos pés de nossa gloriosa Senhora da Conceição, que é a padroeira do nosso distrito, também vou narrar um conto que fala de outro chifrudo e embora não seja aqueles já citados aqui, o zebu mordido e esse senhor malassombrado que queria se afogar na bomba, conto, aliás, digno, quiçá, da antiga bruxaria europeia que cultuava a fertilidade baseada no culto de Dianus, o deus chifrudo, portanto, vou narrar um conto que esse galhudo, tinhoso, feiticeiro e estudos antropológicos mais recentes atestam que esse Dianus nada tinha de mal, era o deus da fertilidade, mas, o tal que habita nossa aldeia está atrapalhando a nossa produção de agave, a manufatura do sisal, e vem queimando com suas labaredas de fogo e vocês sabem que fogo arde, destrói, arruína os armazéns de sisal na sede e nos distritos, e tememos por nosso Caseb e até por nossas casas pois o maligno, o volvo, o forno, não é brincadeira e tem forças para nos torrar a todos.
Interrompeu a fala de Erasmo o senhor Dão Damião Dedal, representante do comércio, arguindo que, “até onde os peritos do nosso Conselho puderam investigar esses incêndios teriam sido provenientes de outras artes, de outros demônios que querem se locupletar com o dinheiro do banco, dos seguros, e são esses espertos que tocam fogo nos armazéns e não o belzebu, o bode negro que, atestam os historiadores é o símbolo da fertilidade e representa Dionisio, o qual era retratado pelos artistas europeus e asiáticos com pelos e chifres, este, sem dúvida inocente. 

  Ora, nobre e querido Dão, temos provas, documentos, fotos, laudos periciais de nossos técnicos e olheiros da nossa Força de Defesa aérea e terrestre que esse lilitu, esse labartu, provavelmente mais de um deles uma vez que foram vários incêndios, foi visto chegando num armazém sito no Largo da Usina montando numa coruja rajada imensa, a bicha com dois olhos que pareciam os faróis do jeep de Marlinhos Avião ou do caminhão de Manoel Chileno e posou no telhado com o lamia e este se assemelhava com um bode com asas de morcego e lançou seu tridente por uma greta que havia no teto e aquela peça de ferro flamejante, parecia as antigas tochas usadas na Procissão do Fogaréu, bateu num fardo do agave já prensado e abriu uma broca enorme e em poucos minutos esse fardo pegou fogo e as labaredas se espalharam por outros fartos e por uma ruma de sisal ainda a enfardar e destruiu foi tudo e como o cabo Roque, da Patrulha Noturna, estava fazendo a ronda com seu apito e arma de fogo na cinta, apitou o quanto pode para espantar o bode e este não deu a mínima para nossa autoridade e quando o cabo desferiu balas do seu pau de fogo, o miserável do bode já estava vermelho e abriu a boca e engoliu as balas e nada sofreu, e o bravo representante da lei temendo a morte se picou para pedir reforço e quando retornou ao local com três representantes da nossa força, bem armados, o monstro havia sumido e o fogo destruiu tudo. É isso, seu mediador o que tinha a contar, e tememos nosso Caseb, nossas famílias e viva o Raso, meu querido e futuro Araci.

   O representante da Associação do Comércio da Aldeia, Dão Damião Dedal, voltou a pedir a palavra e bradou: - Meu nobre mediador isso é invencionice, esse bode nunca existiu, assim como as bruxas europeias antigas nunca existiram, mas foram queimadas nas fogueiras da inquisição da igreja católica, milhares delas, mulheres inocentes e apenas rezadeiras e que cuidavam da mente, o que ainda temos muitas aqui na nossa aldeia, e todos sabem que elas não usam vassouras para voar e andam pelas roças a pé ou montadas em jumentos, e esse tal do bode maligno desapareceu quando o banco cansado de pagar seguros resolveu baixar uma portaria afirmando que não pagaria mais nenhum tostão diante desses incêndios, que considerava criminosos.

   - Protestos – irritou-se o padre Demôndaco - a igreja só queimou os detratores da fé, os feiticeiros, aqueles que blasfemavam, e é claro que esses cabriocos existem, os satãs estão por toda parte e o homem que não tem um deus quando caminha na rua, o demônio envolve-o com o seu traje e buzina seus ouvidos, azucrina sua cabeça e ele nunca mais se apruma se não orar, se não rezar, se não se proteger com as asas bondosas dos nossos anjos e a proteção dos nosso santos e esses incêndios acabaram, os novos armazéns de sisal foram salvos graças a orações à nossa padroeira que protege a todos nós, a gloriosa Sant’Anna e São Joaquim, ambos avós de Nosso Senhor Jesus Cristo.

   Como mediador usei da palavra para por um ponto final neste debate e disse que o conto do “Barba de Velho” está valendo o inscrito no concurso de “O Serrinhense”, nada mais justo do que isso, belíssima narrativa, e como nenhum de nós somos antropólogos e cientistas caberia a nossa Academia de Ciência discutir esse assunto da existência ou não do bode incendiário e não a nós.