Cultura

ROSA DE LIMA COMENTA O LIVRO "LA HERENCIA DE EVA", POR CARMEN ESTRADA

Em “La Herencia de Eva”, Carmen Estrada defende a necessidade de cultuar um humanismo científico, ou uma ciência humanista, para recuperar o papel central e de vanguarda do desempenho da ciência
Rosa de Lima , Salvador | 27/07/2024 às 09:16
Livro que aborda a ciência e o humanismo
Foto: BJÁ

  O título do livro da médica em fisiologia humana Carmen Estrada é simbólico "La Herencia de Eva" (Editora Taurus, 340 páginas, ainda sem tradução em português, Amazon R$399,00) e tem um significado emblemático. A autora vai analisar e comentar no seu magnífico ensaio sobre a ciência e o humanismo exatamente a suposta realidade apresentada pela Eva bíblica, a qual guiada por seu instinto de curiosidade saboreou uma maçã no paraíso e, após esse ato, ofereceu a fruta a Adão - o qual também a comeu - resultando, afinal, na reprodução do homem.

  Carmen Estrada, no entanto, oferece aos leitores esse singelo ato simbólico de Eva como exemplo para expressar as três etapas na vida laboral de qualquer cientista: a curiosidade - o desejo de saber - o ato em si de comer a maça assim se expressa; a aquisição do conhecimento - isto é, Eva tomou conhecimento do que era uma maçã e aprovou o seu sabor; e a transmissão à outra pessoa para dar continuidade - ofereceu a maçã a Adão e este comeu e deu sequência. Assim é a base da ciência: o desejo de saber, a pesquisa e estudos do que se deseja saber e a descoberta comprovada do que se pesquisou e a difusão e utilidade do invento.
 
  A sevilhana de 75 anos de idade catedrática em fisiologia humana, especialista em neurociência e estudiosa da filosofia grega clássica vai analisar em seu livro - grande sucesso na Espanha e destaque nos meios científicos da Europa - as origens do homem e como a ciência foi caminhando passo a passo com ele, por etapas, o desenvolvimento da cultura humanista associada a ciência, ora mais próxima; ora mais distante, porém, sempre entrelaçadas no decorrer dos séculos. 

  Trata-se de um livro admirável, com texto sensível, reflexivo, oferecido para que as pessoas pensem nesse dualismo - ciência e filosofia; ciência e humanismo - sem perder de vista este relacionamento desde os primeiros tempos científicos relacionados a partir da idade do ouro e do presumível início do progresso até os dias atuais. Um trabalho bem estruturado e dividido por capítulos desde o tempo em que o 'sapiens' chegou a Europa, os recortes iniciais - o instinto do curioso com poetas, fisiólogos e filósofos, a ciência por dentro e a ideologia do cientista, a linguagem cientifica frente a linguagem humana, a evolução cientifica e a banalização da ciência, a política e a ciência e a nova natureza.

  Ensaio dividido em 6 blocos com 39 capítulos de leitura agradável, limpa, prazerosa. Creio que vocês já entenderam o sentido do título, tão prosaico para tratar tema de uma amplitude tão grande e elevado.

  Na essência, o que fica bem explicito no livro é que os passos da ciência estão entrelaçados uns com os outros e tudo o que já foi pesquisado e descoberto, desde Galileu a Einsten, tem uma relação muito forte do conhecimento ancestral. Ou seja, ninguém será capaz de criar uma teoria da relatividade sem ter analisado os projetos anteriores em matemática e física. Há sempre uma história, um conhecimento anterior que ajuda na formatação de um novo projeto científico.

   E nessa corrida para dotar a humanidade de práticas científicas que ajudam a sustentabilidade do homem no planeta, trabalha-se muito para melhorar as vidas das pessoas e oferecer mais conforto e meios de mantê-lo atuando mesmo na velhice. As novas práticas e técnicas na medicina, recentemente, as cirurgias robóticas; a evolução da farmacologia e da fisioterapia, as mudanças no tratamento psiquiatria e outros só tem elevado em idade sua permanência. Mas, tudo isso, mesmo diante da ganância de projetos industriais e dos novos conhecimentos adquiridos pelo homem através da IA devem seguir um ritual de respeito ao humanismo e a natureza.

  E o livro de Carmen Estrada traça essas linhas e faz a pergunta logo na introdução: que lugar ocupa a ciência neste mundo confuso, com uma explosão tecnológica sem precedentes que dificilmente podemos assimilar e uma dispersão ideológica com acesso a amplificadores de informações, tanto verdadeiras como falsas, nunca antes conhecida? 

   E ela mesma reflexiona: “É um tempo crucial em que o cronômetro do meio ambiente acelera o seu ritmo enquanto os detentores do poder só pensem em retardar as respostas necessárias para, entretanto, continuar recolhendo suas migalhas”. 

   A autora entende que se essa pergunta for lançada ao ar as respostas podem ser: “A ciência é uma potência temerária, um refúgio de prudência, um talismã, uma ferramenta de poder, uma força cúmplice, uma fonte de esperança”

   Diz que seu livro não se trata de uma história da ciência – ainda que conte como foram seus começos e seu papel em determinados momentos históricos; não é um livro de filosofia da ciência – embora haja reflexões sobre sua incidência no conhecimento humano; e não é um texto de divulgação – apesar de que se explicam brevemente alguns conceitos científicos; e não pretende ser uma análise sociológicas da atividade científica, porém, indaga as relações reciprocas entre a ciência social; e, por suposto, não é um livro de memórias, embora, sem dúvida, as experiências próprias no mundo da ciência tenha influenciado sua colaboração.

   Entendemos nós que o livro, pelo contrário do que diz a autora, obviamente respeitando a sua modestíssima opinião, tem muito de história da ciência não uma história linear cronológica, aborda o pensamento filosófico que foi o desbravador da ciência nos seus primórdios, a trilha, o sonho e a procura; e é um incentivador da divulgação e, ademais aborda a sociologia e a política. O livro é um alerta, um grito dado por uma cientista que, esperamos, possa ainda dar novas contribuições com sua pena e saber. Que a sua memória autobiográfica fará os analistas mais adiante. Vida longa a madame Estrada.

   Em recente entrevista ao El País, ao jornalista Nuño Dominguez, perguntada se somos mais ou menos crédulos do que no passado, respondeu: “ A credulidade humana permanece a mesma. O que acontece é que agora temos um bombardeamento à medida através dos telemóveis. As informações que fornecemos estão sendo utilizadas por algoritmos, que lhe enviarão o conteúdo ao qual acreditam que você está mais vulnerável, para convencê-lo a consumir, que é o objetivo final”.

  Formulou Nuño: Existe um lado bom da tecnologia que compensa esse problema?  Respondeu: “A internet é maravilhosa. Eu não poderia ter escrito este livro sem ele. Mas o que estamos dando em troca? Seria necessário ter controle ético da tecnologia. Mas como o dominante não é a ética, mas sim os negócios, estamos perdidos”.

    Em “La Herencia de Eva”, Carmen Estrada defende a necessidade de cultuar um humanismo científico, ou uma ciência humanista, para recuperar o papel central e de vanguarda do desempenho da ciência na história e ter muito cuidado e atenção com a sociedade neoliberal gananciosa e globalizada.