Cultura

A ALMA DA SENHORA AV SETE, CAP 10: 4 POPULARES QUE VIVEM DA AVENIDA

Personagem que vivem em função da Avenida Sete e não têm qualquer proteção no campo da assistência social
Tasso Franco ,  Salvador | 13/07/2024 às 14:21
Esdras Xavier, 40 anos de avenida
Foto: BJÁ
   
   Ao escrever sobre a Av. Sete propus decifrar a alma da velha Senhora – a alma, corpo, espirito e mente. E a essência, o básico está nas pessoas que vivem em função da avenida e passam a maior parte do seu tempo nela. Única em Salvador neste estilo e com uma ampla abrangência.

   São 107 anos de existência e muitos desses atores populares já faleceram e foram substitutos por outros. Em 1915, quando a avenida foi aberta, no trecho Barra não havia banhistas nas praias do Espanhol, Farol, Porto e da Gamboa onde está o Iatch Club. Hoje, há duas populações diferentes que circulam nessas áreas: a que utiliza esses espaços como áreas de lazer; e aquela que tira o sustento de suas famílias das praias – ambulantes, barraqueiros, baianas de acarajés, vendedores de coco, óculos, pastéis, sutiãs, cocadas, naturebas, bolas etc. 

    Só a partir dos anos 1960/1970 com o incremento do turismo surgiram os hotéis, bares e restaurantes e esse movimento só fez aumentar com guias, escolas de pesca submarina, garçons, cozinheiros etc.
   O mesmo pode-se dizer do trecho mais comercial – entre São Bento e Mercês – hoje com um intenso comércio de rua, de lojas e prestações de serviços. 

   Nem sempre foi assim e a Av. Sete – originalmente rua da elite - ganhou força com a implantação de um comércio popular a partir dos anos 1970 com o surgimento dos shoppings longe do centro histórico e as decadências das Ruas Direita dom Palácio e Baixa dos Sapateiros a partir dos anos 1990. 

   A Sete se transformou na principal via do comércio popular da cidade, a Estação da Lapa de transportes por ônibus e metrô e a implantação de centros comerciais populares – shoppings Piedade e Center Lapa – ajudaram nesse incremento e essas facilidades aliada a instalação de lojas no estilo mil e uma utilidades – algumas delas de chineses – o reordenamento dos becos e a prática de preços baratos, o Edifício Politécnica e os recentes camelódromos fizeram com que seja a campeã.

   Nós poderíamos falar de vários desses personagens que vivem da rua e na rua, embora não residam nela, até porque conhecemos muitos deles e somos clientes de alguns, escolhemos quatro pessoas que são um retrato desse painel, creio não os mais antigos como a baiana Neinha, que se instalou em frente ao Palace das Mercês, onde morou o governador JJ Seabra, em 1976, e comercializa acarajés e abarás há 48 anos.

    Os personagens populares que escolhi são a senhora Vicentina Rego, 60 anos de idade, vendedora de buchas para banho; Edvaldo Engraxante, 62 anos de idade, último engraxate de ponto fixo na avenida; Esdras Xavier, 60 anos, relojoeiro; Lázaro Santos, livreiro. Nenhum deles mora na avenida, mas vivem dela.

   VICENTINA E SEUS GATOS: Vicentina Rego mora no bairro da Liberdade e gasta 1h30min de caminhada entre o bairro que residente o Relógio de São Pedro e a Piedade onde atua. Conduz um carrinho tipo bebê onde carrega as buchas e dois gatos – Paizão e Linda.

   - Onde vou levo meus gatos. Não me deixam 1 minuto e coloco eles aqui no carrinho, no primeiro andar fica Paizão; e embaixo Linda. Se dão bem, mas vivem separados cada qual em sua gaiolinha. Aqui na Piedade solto-os para fazerem xixi e coco no jardim e depois eles voltam numa boa. Em não me preocupo, mas olho. Aqui tem ladrão pra tudo e tenho medo que roubem meus gatos.

   Pergunto quando começou a vender buchas e se é um produto bem aceito?

   - Vende, né. Tudo vende. Pelo menos é uma coisa que ninguém tem, só eu. Custa 15 reais as menores e 20 as maiores. O povo chora muito pra comprar e eu explico que é bom para a circulação do sangue e compra. 
   E a Av. Sete que tal?

   - Eu acho que é o melhor lugar para vender coisas porque passa muita gente. Venho aqui há anos e não tenho muita explicação pra dar. Nem sei. Venho de manhã e só volto pra casa de tardinha. Almoço aqui eu e meus gatos. Quando preciso ir ao banheiro vou na igreja.

    O ENGRAXATE EDVALDO: Edvaldo Engraxante, 62 anos, mora na Brasilgás, tem seu cantinho localizado num oitizeiro na praça da Piedade com Av Sete, há mais de 30 anos.

   - É minha vida, meu ganha pão, com muito esforço, muito trabalho, chova ou faça sol lustrando e até consertando sapatos dando o melhor de mim.

    Explica que os tempos têm se modificando e na atualidade as pessoas usam mais tênis e sapatos produzidos com sintéticos e isso diminuiu os serviços que presta, porém, "ainda existe muita gente que usa sapatos sociais, sapatos de couro e a prova é que vivo disso e cobro R$10,00 por um lustre".
 
    Pergunto se não é barato o preço do seu serviço e responde que é, os produtos que usa - pastas, escovas, flanelas, etc – “estão sempre subindo, mas é o que as pessoas que andam pela avenida podem pagar e uns até acham caro e vou levando como posso”.

   Revela que já existiram vários engraxates fixos no centro da cidade, na Piedade, no Relógio, no Terreiro de Jesus, e também fotógrafos com máquinas do tipo lambe-lambe, e isso tudo acabou com o tempo, "o último fotógrafo aqui da Piedade foi Tonho, que sumiu e pronto, as pessoas vão mudando de profissão".

   Edvaldo é casado tem dois filhos e um netinho e destaca que ambos filhos já estão casados e que "fiz a minha parte dando a educação que podia dar e eles moram perto de nossa casa, um deles, a mulher, católica como ele e o homem evangélico e trabalhador num supermercado do bairro onde mora".

   DIZ que todos na praça da Piedade se conhecem, dona Vicentina que vende buchas, uma guerreira; Lázaro livreiro; o frei do Convento da Piedade; o padre Aderbal; a senhora que mede pressão "uns protegem os outros e todo mundo se dá, a gente passa o dia todo aqui, almoça nos bancos da praça e só vai embora no final dos dias, isso de sábado a sábado, menos no domingo".

   Segundo Edvaldo quem regula os horários são os sinos da Paróquia de São Pedro que tocam músicas ao meio dia - " é a hora de almoçar porque a turma acorda cedo" - e às 6 de tarde, na hora da Ave Maria, "que é a hora da gente começar a arrumar as coisas e ir para casa".

  No outro dia, volta todo mundo e a vida segue.

   RELOJOEIRO XAVIER -  O relojoeiro Esdras Xavier, 70 anos, 40 na avenida com sua tenda que mede apenas 1 metro quadrado onde conserta relógios, troca micas, encurta ou aumenta as pulseiras, ajusta pinos, troca baterias, enfim, como ele mesmo diz: "Aqui tenho que dar um jeito no pedido do cliente e fazer o melhor para que ele fique satisfeito e volte sempre".

  Como Xavier consegue essa proeza?

  Ele responde: "Com dedicação, com trabalho, com paciência, e como estou na Sete há muitos anos já tenho minha freguesia de pessoas que presto serviço há muito tempo".

  Enquanto estava conversando com Xavier chegou uma senhora residente na Cidade Nova dá bom dia e diz: - Sêo Xavier trouxe esse relógio (tira o objeto de uma bolsa) para encurtar essa pulseira que está folgada em meu braço.

  Entro na conversa e pergunto: - A senhora já conhecia o Xavier?

  "Oxe, de muitos anos. Trabalhei por quase 20 anos na Livraria As Paulinas aqui do lado (a livraria dista 20 a 30 passos da tenda de Xavier) e já sou cliente dele há muito tempo", diz.

  Mas não é longe sair da Cidade Nova (bairro de Salvador distante da Sete) e vir aqui concertar uma pulseira de relógio?

  "É nada. Eu trabalho atualmente na Boa Viagem (outro bairro de Salvador localizado na cidade baixa também distante da Sete e da Cidade Nova) mas venho sempre na avenida e só quem conserta meus relógios é Xavier", confessa.

  Ele sorri, pega o relógio da senhora e inicia o serviço de encurtar a pulseira. Demora em torno de 12 minutos para concluir o trabalho após medir o encurte no braço da senhora, a qual, permanecia em pé (todos os clientes ficam em pé esperando a conclusão de um trabalho quando é rápido; quando não é ele dá um prazo) até a conclusão do serviço.

  Ajusta daqui, ajusta dacolá serviço feito.

  "Quanto Sêo Xavier?", ela pergunta; e ele responde R$10,00. Ela tira o dinheiro da bolsa R$50,00 e lhe entrega. Ele diz: Vou aqui na farmácia rapidinho trocar para lhe dar o troco. Levanta-se, vai na farmácia e volta em menos de 5 minutos com o dinheiro trocado e devolve R$40,00 a mulher. Operação concluída ela diz: "Tchau Sêo Xavier, tchau moço pela conversa". E partiu entrando no beco da Farmácia (ao lado do Edificio Totônia) e se dirigindo a Carlos Gomes para pegar o ônibus.

  A conversa segue com Xavier: - Você não usa pix e cartões para atender seus clientes.

  "Não. Os serviços são baratos R$10,00 a R$20,00 um conserto maior chega a R$50,00 e é tudo no dinheiro vivo. Aqui na Avenida muita gente já recebe pix mas estou ainda na antiga e tudo bem".

  E há quanto tempo você está aqui?

  "Tem muitos anos. Comecei como ajudante de um relojoeiro que tinha no Beco da Forca" num ponto quase em frente da Praça da Piedade e foi astuciando o que ele fazia e aprendendo. Quando ele saia para almoçar ou ir nalgum lugar por aqui eu ficava tomando conta da banca e fui atendendo os seus clientes, fazendo pequenos serviços e com o tempo aprendi essa arte, desmontei um relógio e depois montei minha tábua (banca pequena) alí onde é o banco Itaú, em frente a Piedade, e depois vim pra aqui, ao lado desse beco e que fica em frente à igreja de São Pedro".

  Você não tomou curso para aprender essa arte?

  "Aprendi tudo na Avenida, na rua, e vivo desse trabalho, eu e minha família. Essa Avenida é o nosso mundo, meu e de muitas pessoas".

  Natural de Cairu, Xavier diz que está satisfeito com a vida que tem, diz que dá sua contribuição ao país, mesmo como pequeníssimo empreendedor que é (também vende pulseiras de relógios) e nem perguntei a ele se pretende mudar, ampliar seu negócio diante dos cabelos brancos de sua cabeleira e da paz interior em que vive.

  Última pergunta: com as novas tecnologias e relógios sendo vendidos a R$10,00/R$20,00 ainda tem gente que conserta relógios? Seu negócio diminuiu?

  "Continuo trabalhando como sempre trabalhei. Tem esses relógios baratos que duram pouco e ninguém conserta, mas, as pessoas sabem disso e tem muita gente, a maioria, que tem relógios mais caros, bons relógios e que precisam sempre de manutenção, de trocar bateria, mica, pinos, peças. Às vezes a pessoa bate o relógio em algum lugar, estraga, né, e estou aqui para consertar e deixar novo.

 LAZARO SANTOS, LIVREIRO: Uma família - pai, filho e filha - que vive do comércio na Avenida trecho da  Piedade, a céu aberto, em frente à igreja de São Pedro e têm na rua o sustento e a sobrevivência vendendo um bem precioso e de cuidadosa comercialização: livros de segunda mão ou usados. Trata-se, pois, da sobrevida à cultura o que é uma tarefa bem mais difícil, experiência, tino para os negócios e um relacionamento com segmentos da população responsável pela doação dos volumes.

  "Não tenho do que me queixar" confessa Lázaro Santos, 45 anos de idade, praticamente nascido e criado na rua, uma vez que ainda muito jovem, um adolescente, começou a "guardar vagas" e lavar veículos no São Raimundo, área que está integrada a Av. Sete e fica próxima da Piedade, daí, já com algum conhecimento de pessoas que atuavam nas proximidades do Gabinete Português de Leitura foi ser auxiliar na banca de livros, CDS, “bolachões” (discos de vinil) e outros de Bob Baiano.

   Com o passar dos anos, estávamos falando da primeira década dos anos 1990 e da primeira década do século XXI, Lázaro ganhou experiência desvinculou-se de Bob, "numa boa" e colocou sua própria banca na praça, de testa com a igreja de São Pedro, onde está até hoje e desde 2014. 

   "São muitos anos de experiência vendendo livros usados e hoje sinto que entendo do assunto e tenho a ajuda de muitas pessoas de Salvador, de gente que traz livros e me faz doações, de graça, sem que tenha de pagar nada, e também vou buscar na casa de professores, intelectuais, de quem deseja doar e tem muitos livros em estoque. Marco com essa pessoa, providencio um táxi e vou buscar tudo o que posso, às vezes 100, 200 ou mais livros", confessa.

   - É uma trabalheira enorme, pergunto.

   Lázaro conta-me uma passagem da bíblia já com o livro escrito pelos apóstolos em mãos: - Deus falou para Luzibel, o anjo da luz, você vai construir a casa do rei. E este pensou! ora, se posso fazer a casa do rei, por que não posso fazer a minha? E fez.  

    Então - adianta - eu também construo a minha, trabalho e sou feliz com o que tenho.

   Chega Camila, 24 anos, a sua filha mais nova com uma criança de 7 anos a segui-la. - É minha filha, veio me ajudar. Vou sair para pegar uma encomenda e ela toma conta da banca.

   - Quero saber qual versículo tirou essa parábola da bíblia, questiono.

   - Eu não sei qual é, mas está aqui dentro, aponta para a bíblia ainda em mãos. Se eu for ler a bíblia toda posso ficar alienado como alguns pastores de igrejas de crentes.

    Mudo de assunto: - A família unida vende livros, pois, a banca ao lado é do seu filho Lucas e está todo mundo integrado, inquiro.

   - É isso mesmo. Camila é minha diretora, brinca enquanto recebe carinho do neto que sai a correr pelo passeio. Além dos livros vendemos CDs e discos de vinil, os "bolachões". Agora, com essa máquina nova, pequena e portátil que está à venda nas lojas os discos de vinil estão valorizados e alguns deles podem chegar a valer até R$1 mil. Eu vendo barato (preços variam entre R$5,00 a R$10,00) mas lá em Jorge (casa da rua da Forca especializadas em vinis antigos e CDs, idem) os preços são outros. Aqui, em nossa banca vendemos 3 CDs por R$5,00.

   - A internet derrubou esse comércio que havia à mancheia na Avenida Sete, comentou.

   - Tudo vai mudando e os vendedores de ruas vão se adaptando aos novos tempos. Nós, aqui, já algum tempo, porém, ainda recente já vendemos nos cartões e aceitamos PIX. O uso do PIX é uma coisa nova. E tudo ajuda nas vendas. Veja outra novidade: eu recebo ajuda da TV de Rua do Valci na divulgação da banca e nas doações de livros e exponho placas com meu número do celular para ficar bem visíveis aqui na banca. No passado não tinha isso.

   Lázaro se despede e fico a conversar com Camila.

   - Como você é jovem e já tem um rapazinho? - sondo-a.

   - Ganhei bebê aos 17 anos de idade e hoje estou com 24. É a vida. 

   - Quais livros as pessoas gostam mais de comprar?

   - Ah! compram de tudo. Por isso mesmo a gente espalha tudo misturado - romances, contos, história, técnicos, culinária, etc - e as pessoas que escolham o que querem. Estamos com a promoção de 6 livros por R$10,00; e no individual custa R$2,00.

   Queixo-me do sol que estava forte e sapecando nossas cabeças e ela responde: - Viva o sol. Rui é com chuva que a gente tem que cobrir tudo para não molhar os livros. É horrível tempo chuvoso. As vendas despencam.

   - Deve ser uma correria cobrir isso tudo, digo.

   - Olha! Armou tempo que vai cair chuva a gente começa logo a cobrir. Estamos acostumados. Como nosso negócio é a céu aberto temos que desarmar tudo no início da noite para guardar num depósito. 

   - Quanto custa por mês o depósito?

   - Não sei, meu pai é que sabe. Mas, pagamos o depósito e a licença da Prefeitura.

   Despeço-me de Camila e vou dar um dedo de prosa com Lucas, o filho de Lázaro, dono da banca ao lado. Na verdade, um estrado com os livros espalhados e um mostruário.

   - De outra feita lhe encontrei fazendo piruetas na praça da Piedade usando uma bike, comecei.

   - É, agora tenho minha banca e preciso trabalhar, cativar os clientes, fazer meus negócios. 

   - Como estão as vendas?

   - Variam de dia para dia e depende do sol e dos clientes, mas não temos nada a reclamar. Essa é a vida que escolhemos e temos que encará-la.

   - O que mais vendes?

   - Os livros religiosos, os romances espíritas.        
                                   
   Bem pra fechar esta crônica informo que essas personagens trabalham de sábado a sábado na Av. Sete/Piedade. No domingo é folga. Há outros grupo de populares – depois falaremos de alguns deles – que o dia de maior trabalho é o domingo, os praianos da Sete.