Cultura

A ALMA DA SENHORA AV SETE, CAP 9 - 2 DE JULHO E CHORO AO PÉ DO CABOCLO

Acompanhar e entender um cortejo ao 2 de julho abstraindo-se as lambanças e demagogias dos políticos que são realizadas no turno da manhã, tem que se observar com muita atenção a alma do povo
Tasso Franco , d Salvador | 06/07/2024 às 12:33
A fé no caboclo na celebração ao 2 de Julho
Foto: BJÁ

   A Avenida Sete acolhe todos os anos os desfiles cívicos-militares ao 2 de julho - data da independência da Bahia, em 1823 - e ao 7 de setembro - data da independência do Brasil, em 1822. 

   Lembro aos leitores que se trata de uma independência parcial uma vez que se mudou o regime colonial do Reino de Portugal, Brasil e Algarves para imperial brasileiro, com um mandatário português da família Bragança - Pedro de Alcântara Francisco Antônio João Carlos Xavier de Paula Miguel Rafael Joaquim José Gonzaga Pascoal Cipriano Serafim de Bragança e Bourbon, que recebeu o título de Pedro I e governou menos de 9 anos (de 12 de outubro de 1822 a 7 de abril de 1831).

    Passou o poder a seu filho Pedro de Alcântara João Carlos Leopoldo Salvador Bibiano Francisco Xavier de Paula Leocádio Miguel Gabriel Rafael Gonzaga nascido no Rio de Janeiro, em 2 de dezembro de 1825, o qual vai governar por 48 anos (1841/1889). Quando seu pai abdicou tinha apenas 6 anos de idade e o Brasil foi governado por José Bonifácio de Andrade e Silva e depois por juntas governativas. Dom Pedro II só foi aclamado imperador aos 14 anos de idade, em 18 de julho de 1841.

   A população que participa desses desfiles comemorativos não sabe desses detalhes nem que as lutas pela independência do Brasil e da Bahia foram poucas. Na Bahia, depois de uma guerra de cerco que durou de novembro de 1822 a julho de 1823, finalmente aconteceram as fugas dos comandantes portugueses brigadeiro Madeira de Melo líder da Divisão Auxiliadora e o almirante João Félix que comandava a Marinha. 

   Dom  Pedro I contratou o general francês Peter Labatut para comandar o Exército Pacificador constituído por tropas da Bahia, Pernambuco e Paraíba; e o almirante inglês Thomas Cochrane para comandar a nascente Marinha brasileira, mas, nem Labatut venceu Madeira; nem Cochrane derrotou João Félix, pois, não tinha navios de guerra para isso e ficou com seus minguados vasos em Morro de São Paulo. Depois de uma longa guerra de cerco, Madeira de Melo foi embora para Lisboa com suas tropas o mesmo fazendo Félix e a guerra que não houve acabou na madrugada de 2 de julho.

   O povo tem um fascínio extraordinário por esses eventos cívicos-militares. Como este não é um livro de sociologia e fala apenas da "Alma da Senhora Avenida Sete", ao sentimento popular não nos cabe fazer interpretações mais amplas. A médica fisióloga humanista espanhola Carmen Estrada em seu livro "La Herancia de Eva" (ainda não há tradução em português em capitulo intitulado "A chamada revolução científica" diz que tanto "Giordano Bruno como mais adiante o francês Pierre Cassendi resgatou a teoria atomista de Demócrito (450 a.C), Epicuro e Lucrécio" de que a alma é composta por átomos.

   Então meus devotados leitores e leitoras a alma saiu do campo divino e de algo determinado pelos deuses  - a literatura antiga da Grécia está repleta desses exemplos, lê-se isso com frequência na Odisséia, de Homero - para o campo da psiqué (a psicologia só vai ser entendida como ciência no século XIX a partir dos experimentos de Wilhelm Wundt, em Leipzig, Alemanha) e o significado da alma ganhou outros contornos para o ser, para interpretar a vida, a criatura, uma das coisas mais complexas de serem entendidas. 

   O pensamento emana do cérebro, a mente não existe fisicamente como um rim ou um coração, e os comportamentos da população são os mais variados possíveis embora, na psicologia de grupo, há explicações para vários sentimentos coletivos.

   Estive, pois, observando o comportamento do povo na Av. Sete na passagem do desfile ao 2 de julho tentando dar alguma interpretação lógica. Diria que é uma missão quase impossível. É algo atomista, surreal. A primeira questão que pus na minha mente foi: “Por que as famílias mais pobres gostam tanto desses desfiles com militares marchando, fanfarras trocando e carros contendo imagens de seres míticos – uma cabocla e um caboclo – tiram fotos com os solados da PM e exigem sinais de um nacionalismo – verde e amarelo – que não é o regular no dia a dia? Não há conclusões.

 Conversei com várias dessas pessoas do povo e até na abordagem de um escritor a comunicação é complexa e tem que ser feita por contornos.

   - A senhora está com dois filhos sentada no meio fio da praça Rio Branco, no Relógio de São Pedro, esperando o desfile ao 2 de julho há mais de uma hora? – questionei a Raquel.

   - Sim, os meninos me pediram para vir. O senhor quer saber por que?

  - Porque sou escritor e escrevo sobre a Av. Sete – respondi.

  A senhora me olhou com indiferença e disse que estava na festa por diversão, por ser feriado em Salvador, embora não entendesse nada do significado do 2 de julho, sabendo apenas que era independência da Bahia, mas, não guardava de memória, a data, as lutas, nada. 

   Andei toda a avenida até o Campo Grande, mais de uma vez, com a via ainda sendo ocupada pela população e também durante o desfile acompanhando os carros da cabocla e do caboclo, que são símbolos representativos dos curibocas que lutaram na guerra. Há uma confusão das autoridades e da população que vê, na cabocla, a imagem de Catarina Paraguaçu, mas Catarina era tupinambá nativa da ilha de Itaparica e não caboclo.

   Nesta festa da alma atomista do povo encontrei vendedores de água, pipocas, cataventos de papéis coloridos, bandeirinhas do Brasil, sucos, churrasquinhos, camaleões de isopor, réplicas de Bob Esponja, torrados, milho cozido, espetinhos de camarão, hot dogs, cervejas, quentinhas, acarajés, abarás, bolinhos de estudante, laranjas descascadas, etc, mercadorias com preços unitários ente 2 e 8 reais.

   Os vendedores são do povo e conhecem a alma popular e nada que ultrapasse 10 reais é vendido. E ainda há quem pechinche um saquinho de pipoca que se cobra 3 reais se pagar 2 reais; o mesmo acontecendo com a garrafinha da água mineral.

   Comprei uma garrafinha da água da marca ekobom e estranhei o nome. Falei para a vendedora, uma jovem de 15 anos: - Não conheço essa marca de água ou pelo menos nunca soube dela?

   - Oxe! É boa, vendo direto. É de Dias D’Ávila – comentou.

  Depois, bebendo a água verifiquei, que, de fato, era da Fonte de São Bento de Núrsia, em Dias D’Ávila, o que deu no mesmo porque também não conheço esta fonte embora já tenha ido em Dias D’Ávila e sei que, lá, é um município com águas termais.

    Falei em seguida com Gerson o vendedor de um brinquedo chamado Bob Esponja formado por uma esponja, um pequeno recipiente onde se coloca detergente, um canudo embutido nele e uma pequena alavanca de metal. Quando um garoto sopra no canudo tem que apertar a alavanca liberando o ar que chega ao recipiente com detergente. Nesse momento, posicionando o brinquedo contra o vento formam-se bolhas de sabão no ar.

    - Quantos brinquedos tens nesse saco enorme que carregas? – perguntei.

   - Fiz 100 desses e cada um custa 8 reais. As crianças adoram e vendo bastante nesta festa ao 2 de julho. Quando não vendo aqui no centro vendo no Parque da Cidade, nos acessos às praias e onde tem movimento de crianças – confessou.

   - O preço não é barato?

   - É o que o povo pode pagar. Tem muita gente que chia dizendo que é caro e pedindo para eu fazer 5 reais, mas não posso porque tem a compra dos materiais e meu trabalho. Tenho que ter algum lucro, né.

   Passou uma senhora vendendo algodão doce. Perguntei por que no algodão doce agora se agregou uma bola de soprar de festa de aniversário.

   - Não sei dizer ao senhor, mas o povo agora só quer assim. Eu mesmo produzo meu algodão doce e coloco a bola senão perco a venda. 

   - E a senhora vive disso? 

   - Faço outros biscates, mas nessas festas de rua que tem muita gente, até no Carnaval eu vendo algodão doce ou pipocas previamente ensacadas e colocadas num sacão que carrego nas costas e saio vendendo entre o povo.

   - E vende?

   - Ah! Meu senhor, o povo compra tudo desde que seja barato. 

   Entre o meio dia e as três da tarde permaneci entre as praças do Relógio e da Piedade tentando entender o comportamento do povo. E lá vem o desfile. A esta altura estava na praça da Piedade cercado de povo por todos os lados. Para mim faz uma grande diferença porque não sou popular na acepção da palavra e sim classe média morador da Barra que se veste diferente, se comporta mais como observador (repórter) do que como participante da festa. Sou um estranho no ninho. Não há madames na Piedade, não há engravatados, não há intelectuais. 

   É uma celebração popular. Quando a primeira banda e grupo passaram, Colégio Militar de Salvador, uma apoteose: as crianças se levantam dos passeios, os pais se agitam, aplaudem, gritam, enfim exaltam com todas as suas vibraç~çoes. Depois vieram os grupos Escoteiros do Brasil, Pracinhas, Bombeiros, Os Guranys de Itaparica, carros do caboclo e da cabocla, os militares do Exército, da Marinha, da Aeronáutica, da PM e as fanfarras.

   É indescritível o entusiasmo popular. Algo como profetizou o velho Demócrito 400 a.C. os átomos se desprendem e acontece de tudo, dos aplausos, as lágrimas, uma alegria imensa.

   Na minha caminhada ao lado do carro do caboclo observei que havia um homem que também seguia em direção Campo Grande segurando numa ponta da carroça e exaltando aos céus algo imperceptível.
   - Que fazes, por que não solta a lateral do carro? – inquiri.

   - É minha fé. Faço pedidos aos boiadores, sou da mata, sou gentileiro, tenho fé no Sete Alvoradas é meu pai e no Pena Branca que é meu guia.

   - E esse charuto que baforas?

   - Os ‘cabocos’ adoram é de fumo das roças do Recôncavo.

   Entendi e explico aos leitores. No candomblé de caboclo além do culto aos orixás, voduns ou inquices, cultua-se, também, espíritos indígenas castiços. O (a) caboclo (a) ou curiboca da Bahia nasceu da miscigenação do europeu com o (a) tupinambá. As primeiras levas de europeus – portugueses, florentinos, galegos, etc – que chegaram na Bahia, a partir de 1549, vieram sem mulheres e se miscigenaram a granel. Despois vieram os negros e negras africanas escravizados (as) e a miscigenação aumentou.

    Daí essa mistura de crenças e raças que há, na Bahia, especialmente no Recôncavo e em Salvador, e confundem-se aos olhares dos leigos, o que é santo católico, caboclo, orixá, onde também se misturam sem sexo, porém, na fé.

    Acompanhar e entender um cortejo ao 2 de julho abstraindo-se as lambanças e demagogias dos políticos que são realizadas no turno da manhã, noutro roteiro, entre a Lapinha e a Praça Thomé de Souza, tem que se observar com muita atenção a alma do povo. O cortejo finda no Campo Grande onde há, em Salvador, o maior monumento da cidade, com 26 metros, dedicado ao 2 de julho e encimado por um caboclo, imagem esculpida pelo italiano Carlo Nicoli Manfred, e inaugurado em 1895.

   Ainda hoje, na crença popular, local onde mágoas são derramadas, sobretudo nas derrotas, e arrelia-se em todos os cantos da cidade, por consolo, brincadeira e gozo ao se recomendar a alguém diante de um infortúnio: “Só lhe resta, pois, chorar no pé do caboclo”. E, há, aqueles que choram à vontade; como também há, aqueles, que agradecem, oram por gratidão a graças alcançadas e fazem novos ´pedidos.