Cultura

ROSA DE LIMA COMENTA LIVRO "UM DEFEITO DE COR", de ANA MARIA GONÇALVES

Passagens da escravidão na África e no Brasil no inicio do século XIX com prefácio de Millor Fernandes
Rosa de Lima , Salvador | 05/07/2024 às 18:49
Um Defeito de Cor, de Ana Maria Gonçalves
Foto: BJÁ
  Só agora, tardiamente, conclui a leitura do romance intitulado "Um Defeito de Cor" (Editora Record, 951 páginas, orelha do Millor Fernandes, capa Evelyn Grumach, R$109,00 nos portais, 39ª edição) publicado inicialmente em 2006 e que narra acontecimentos do passado escravista e no Brasil e na África, a partir da narrativa de uma escrava Kehinde, nascida no reino do Daomé, em 1810, a qual viveu no Brasil por longos anos como escrava e depois liberta, retornou a África onde se tornou empresária da construção civil e veio finalizar sua vida na Bahia, a procura de um filho. 

     O livro teria como base a história da africana Luisa Mahim, evidente com uma mistura de “ficção e história" na interpretação da crítica literária uma publicação com características de um "romance histórico", uma vez que os dados reais sobre esta personagem se mesclam entre a realidade e um mito. 

   Creio, no entanto, que o livro ultrapassa essa dimensão na medida em que a autora, em longa e dedicada pesquisa, introduz um elemento novo nas publicações literárias desse gênero, as percepções a partir de uma mulher. Ou seja, a visão da escravidão vista pela parte mais fraca do processo escravista - a mulher - que se inseriu no contexto da sociedade colonial brasileira com mais dificuldades do que os homens escravos, embora ambos sofressem os grilhões da escravidão.

     O livro é denso, de complexa leitura sobretudo para os leigos nas culturas da África e do candomblé, na ancestralidade cultural do Brasil africano com muitos termos que exigem decodificações uma vez que, embora usados nas comunidades negras da Bahia, Minas, Rio de Janeiro e Maranhão, precisam de ter conhecimentos básicos para se entender os significados mais profundos.

   Assim, por exemplo, as relações de uma pessoa que não tenha conhecimentos mínimos sobre o candomblé, o dia-a-dia do povo de santo, pode parecer banal ou sem sentido, ou mesmo irrelevante, quando a personagem se ampara em orixás e voduns, como espécie de tábua de salvação para sobreviver.  Mas, é claro, isso tem um forte significado para quem integra o povo de santo. A crença religiosa faz parte desse processo histórico e a autora coloca isso com muita ênfase.

   Veja esse trecho: “O homem que tinha acabado de me comprar sentou-se ao lado de uma mesa que servia de escritório em um dos cantos do armazém, onde ele e os empregados tratavam dos títulos de compra e venda. Para os brancos fiquei sendo Luísa, Luísa Gama, mas sempre me considerei Kehinde. O nome que a minha mãe e a minha avó me deram e que era reconhecido pelos voduns, por Nanã, por Xangô, por Oxum, pelos Ibejis e principalmente pelo Taiwo. Mesmo quando adotei o nome de Luísa por ser conveniente, era como Kahinde que me apresentava ao sagrado e ao secreto”.

   No nosso entendimento o livro tem duas visões bem distintas: a narrativa entendida como algo de sentido mais amplo, uma profunda análise da escravidão no Brasil e na África e a autora descreve inúmeras passagens de Francisco Félix de Souza, o Chachá, que era baiano e foi o maior traficante de escravos brasileiros e viveu na cidade de Udiá, Benin, até sua morte em 1849, e tinha poder e era tão forte quanto o rei com quem fazia negócios; e uma autobiografia de Luísa Gama, mãe do abolicionista Luís Gama, advogado e jornalista, e a procura desse personagem real que não conheceu a mãe e vice-versa.

   A trajetória de Kehinde começa em Savalu, área do Benin em conflito tribal entre os reis Abaka e Adandozan, ela filha de um ministro do rei Abaka. “O Babatunde – meu pai – era um bom guerreiro e quando se casou com minha mãe já era ministro e minha mãe só atraia abikus – criança nascida para morrer – e o Babatunde precisava de filhos que quisessem viver e se tornar guerreiros como ele, não se importou quando ela foi embora com minha avó”.

   Seguiram para o norte do Dahomé (atual Benin) e se depararam com os guerreiros do rei Adandozan que mataram sua mãe e seu irmão Kokumo. Após a morte da mãe e do irmão, ela, junto da avó e de Taiwo, sua irmã gêmea, viajam sem rumo e chegam a Uidá. Nessa cidade, começam a trabalhar num mercado e têm o primeiro contato com o Chachá, “o comandante do forte que tanto me impressionou, quase branco de tão majestoso, seguido por muitos escravos, músicos, cantores, bufões e uma guarda formada por mulheres”

   Capturadas são colocadas num depósito e vendidas como escravas. Daí, colocadas num navio negreiro com destino ao Brasil. “Os novos prisioneiros chegavam amarrados uns aos outros pelos pés e pelo pescoço, vigiados por guardas que carregavam em uma das mãos e tochas acesas na outra”, comenda a autora.

   Kerhinde, a avó e Taiwo, embarcaram para o Brasil sem saber onde iriam parar, mas ao fim do percurso Kehinde é a única sobrevivente da família e o barco ancora na Ilha dos Frades, Itaparica, Bahia. Taiwo e a avó morrem na viagem. A nova escrava – bem jovem - vai trabalhar em uma fazenda na ilha de Itaparica. E, começa, então, um novo ciclo em sua vida, adolescente, repleta de sonhos sendo abusada pelo senhor do engenho e dessa relação nasce seu primeiro filho, Banjokô.

   Depois de morar em Itaparica, Kehinde se muda para Salvador com a viúva do sinhô José Carlos chamada Maria Felipa e vai residir num sobrado o corredor da Vitória, área nobre da capital da colônia local habitado por muitos ingleses. “No solar, inicialmente, éramos dez, muita gente para pouco trabalho: eu, a Esméria, a Antônia, a Maria das Graça, a Firmina, a Rita, a dupla Tico e Hilário e o Sebastião, sendo que continuou o mesmo trabalho que faziam na ilha”, mas, é claro era vida numa cidade grande era completamente diferente de Itaparica.

   Resultou uma outra mudança inesperada decidida por Ana Felipa quando Kehinde foi morar na casa do inglês Mr Joseph Edward Clegg onde dá um salto muito importante em sua trajetória de vida, pois, aprende a falar inglês e fazer cookies tornando-se vendedora dessa iguaria nas ruas de Salvador, na Misericórdia.
   Inicia, então, a dar saídas do solar com o filho Bonjokô quando tem contatos com o baba Ogumfiditimi e submete o filho a um rito. Este recebe o nome de oração ou oriki – Bajokô Ajamu Danbiran segundo nome “aquele que brotou de uma luta e o terceiro uma homenagem a Dan, vodum cultuado por minha avó, e que, no caso, era também uma homenagem a ela”

   Na casa de Mr Clegg aprende inglês. Essa, portanto, vai ser uma nova fase de sua vida, mais politizada, quando reorganiza de sua trajetória como vendedora de cookie, depois padaria e compra sua liberdade. Casa-se com Alberto, um comerciante português, e tem um filho que mais tarde é vendido como escravo pelo próprio pai. Após descobrir o desaparecimento do filho, Kehinde percorre outros estados para tentar localizá-lo. Eis, pois, a procura infrutífera de Luís Gama.

  Frustradas as tentativas, retorna à África na esperança de encontrá-lo. Lá,  um negro de colônia inglesa fica grávida de gêmeos e casa-se com ele. Mesmo com os amigos, filhos e marido a narradora ainda sente falta do Brasil e principalmente do filho perdido.

   Na África, em Lagos, atual Nigéria, funda uma construtora de casas como as do Brasil e se transforma em uma grande empresária. Depois de ter criado os filhos, sente que precisa voltar ao Brasil. Já com mais de oitenta anos, ela pega de novo o navio e, ao fazer a última viagem de sua vida à procura do filho, resolve escrever a sua história.

   Portanto, Kehinde constrói e reconstrói sua identidade em vários locais não vendo necessidade de se fixar em nenhum deles. O livro é dividido em várias fases, narrativa dos oito anos de idade aos oitenta. Uma trajetória sem um rumo certo: na primeira, com a avó e o irmã fugindo de Aldozonan em busca de um lugar melhor para viver e vai parar em Udiá; Daí, quando já estava se organizando é capturada pelos homens do Chacá e vendida para o Brasil; vai viver num aparente paraíso na terra (Itaparica), mas sofre os grilhões da escravidão e é violentada sexualmente. 

   Mais tarde, a procura por um meio de vida melhor se muda para Salvador, seu primeiro filho (Banjokô) morre e tem um segundo com Alberto que desaparece. Registra-se uma série de viagens para encontrá-lo. Na condição de viajante vai ao Maranhão e ao Rio de Janeiro A condição de viajante leva a personagem a profundas reflexões sobre quem era e como a viam. E na visão romanceada da autora participa da conspiração da Revolta dos Malês, em Salvador, ano de 1835, o que é improvável, historicamente.

   “Um Defeito de Cor” é um livro que comporta muitas abordagens e interpretações das escravidões na África e no Brasil e vem sendo estudado e analisado desde sua publicação, em 2006, ganhando prêmios e visibilidade maior, este ano de 2024, quando foi enredo da Escola de Samba Portela.