Cultura

HOMEM VERDE DO GINÁSIO: A MESA DE JÃO GALINHA PARA A CEIA DO MESSIAS

É o capítulo 22 do livro de Tasso Franco "O Homem Verde do Ginásio", contos
Tasso Franco ,  Salvador | 10/06/2024 às 10:42
Mesa ocupou todo jardim da praça Luís Nogueira
Foto: BJÁ
     CAP 22, A MESA GIGANTE DE JÃO GALINHA PARA A CEIA DO MESSIAS

   Prólogo:
 
   Diante dos sussurros que aconteceram na narrativa do conto de Damião Dão Dedal com críticas a alguns representantes na távola, o chefe do Corpo de Polícia e Bombeiros, Divino Juremal, solicitou a palavra e assim orou: - Como autoridade observador desta mesa redonda de contistas e quero louvar "O Serrinhense" por essa retumbante iniciativa, digo-vos que acima de todos nós está o poder divino, e em seguida, entre nós, o poder moderador e sábio do doutor Tamboatá, nosso juiz dos Feitos, e a minha humilde pessoa a seguir, uma vez que sou o coordenador da nossa força de defesa, do nosso corpo de Polícia e Bombeiros, da magna Defesa Civil, e sempre nos destacamos pela imparcialidade, pelo zelo físico das pessoas, uma vez que cabe aos religiosos o zelo espiritual, mas, tudo o que vem do povo, da sabedoria popular, nós respeitamos, e aqui quando o pároco adquiriu uma Rural Willys que foi um dos primeiros veículos de nossa terra e dizia-se que quem encostasse nela levava um choque elétrico e poderia morrer, e nós abrimos uma ocorrência seguida de diligência e investigação e verificamos que não havia nada disso, apenas o mecânico de sua santidade havia colocado um dispositivo de alarme, que não matava nem uma barata, porém, de fato, dava um leve choque, e cremos como dito aqui que há gente que fala com bichos, e não é só essa menina da Cobiça, e creio que os senhores e senhoras já ouviram falar dos diálogos que Napoleão Bonaparte, o imperador da França, tinha com seu cavalo branco, conversas muito próximas, e na Índia, a vaca é um animal sagrado e ninguém toca nela, ninguém mata uma vaca e come carne de vaca; e bruxas que voam e visagem que aparecem existem aos montes na Hungria, na Escócia, na Rússia, assim como há lobisomens em Portugal e na Espanha, e o maior exemplo de que esses bichos estranhos existem vem da China que é uma civilização muito mais antiga do que a nossa, de milhares de anos, mais de 6 mil, e o bicho mais querido de lá é o dragão e existem milhares e eles adoram, e nós aqui não temos dragões, eu mesmo nunca vi, mas lá são muitos e adorados pelos chineses que são um povo muito mais sábio do que o nosso, povo que inventou a escrita, a roda, o chapéu, a pólvora, a cama, o sapato e quase tudo que é objeto que existe no mundo. Então, peço ao senhor Dão que se retrata, que peça desculpas. Tenho afirmado, assino embaixo.

    A senhora Jana Pinharada que também estava na fila para dar uma resposta ao representante do comércio, por citação de que não acreditava que uma criança falasse com os bichos, lembrou ao fariseu - assim o apelidou - que o tigre é um espírito divino na Coreia do Sul, endeusado, adorado, e como tal tem uma relação de proximidade com os humanos extraordinária; a serpente é sagrada e em nossa província, na capital, há um culto a serpente no candomblé da Mãe Runhó, no Engenho Velho da Federação, o Zoogodô Bogum Malê Hundó com toda a honra e toda a glória, daí que não aceito as insinuações malévolas de sua pessoa.

   Também protestou Fartone com a seguinte fala: - Que diálogos maravilhosos existiram no “Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha” entre o Babieca e o cavalo Rocinante e posso citar uma passagem escrita pelo genial Cervantes quando Babieca diz: - Como estais, Rocionante, tão delgado?  E o cavalo responde: - Porque nunca se come, e se trabalha. B: - Então não tens cevada nem tens palha? R- Não me deixa meu dono nem bocado. Então, senhor Dedal, nada mais justo do que retratar-se.

  Como mediador dos debates ponderei ao senhor Dão Dedal se ele gostaria de se retratar ou falar alguma coisa e ele se levantou e pronunciou o seguinte parlatório: - Quero pedir desculpas a aqueles que se sentiram atingidos com a minha fala inicial, porém, não vejo motivos para modificar nenhuma linha do que disse, nem motivos para tirar nenhuma virgula; nem acrescentar, mantendo o que foi dito até que eu veja com meus próprios olhos, como vi a noite francesa na rinha do Veloso, vi champagne a rodo e caviar em fartura de taça em taça de boca em boca, vedetes com seios bicudos à mostra, homens fumando cubanos e baforando nas traseiras daquelas beldades, e quem quiser que apresente um gato falando nessa távola, um  nego d'água bebendo o refresco de Agripina, e solte uma serpente na Luís Nogueira para ela engolir o coreto. Aí me retrato.

  Ouviram mais protestos, Dão sendo chamado de incivilizado, grotesco, depravado e assim por diante. Então, acionei a sineta com força e dei por encerrado este debate abrindo a palavra a um novo contista, se apresentando o Eliseu Malacafento Abobreira, que disse ser representante dos marceneiros, artífices, funileiros, artesãos de barro e esteiras, um camarada preto retinto, natural do quilombo do Curralinho, cabelos com mechas brancas ouriçados como os de Donald King  que denotava ser um senhor de idade avançada - anelão com pedra azul no dedo indicador, bracelete de ouro no pulso direito, usando uma bata igualmente azul com frisos dourados, dizendo que iria narrar um conto autoral presencial, isto é, fato que ele participou e viu - arregalou os olhos e disse "com esses olhos aqui que a terra há de comer", narrativa sobre um amigo dele, de oficio, uma vez que ele também é carpinteiro, com a ressalva ao situar que o carpina é diferente do marceneiro, o primeiro usa as peças que o marceneiro produz - portas, janelas, corrimões, etc - e o segundo assenta, enverniza, pinta, etc, e assim principiou: - Era o ano de 1940 - 64 anos da emancipação política de nossa aldeia - que meu colega Jão Matoso Calumbi, conhecido como Jão Galinha, de tanto ouvir falar que o Messias iria voltar, que o Salvador de todos nós estava a caminho, que todos os cristãos deveriam se preparar para esse dia, e frequentava a igreja Renascer em Cristo do Monte Recreio, ele morador da Bomba, fiel de todo domingo rezar neste templo, de colaborar com o dizimo, de ajudar na época das festas com pratos de quibes, bolos de aipim e quente-frios de café, resolveu fazer uma mesa de jaqueira como nunca nossa aldeia tinha visto, creio, como nunca nossa Província da Bahia produzira, uma enormidade de grande, bem feita, sustentada em cavaletes também de jaqueira, tampo bem encaixado, lisado e envernizado, e salvo engano foram preciso também produzir 120 cadeiras de encosto, todas de sucupira, pois, se o Messias resolvesse em sua volta ao nosso planeta, participar de uma ceia com a gente da nossa comunidade, a mesa abrigaria todas as autoridades do prefeito ao delegado do Corpo de Polícia, secretários da Intendência que são muitos, vereadores do Conselho, mais de 15, as personalidades do comércio e da indústria, as chamadas forças vivas da sociedade, e os representantes do povo de todas as categorias, dos agricultores aos comerciários, verdureiros, aguadeiros e demais, e seria uma ceia com perus, salada, farofas, feijão, farinha, pães, vinhos e cocadas, e essa grandiosa mesa foi instalada na praça Luís Nogueira, e me lembro bem que uma ponta dava ou encostava no coreto ao norte, e a ponta ao sul ficava nas proximidades do Jardinzinho, atingindo as imediações da casa do doutor Valdemar Lopes e Jão Galinha para confecção desta mesa derrubou três jaqueira imensas.

   Melinho pediu um aparte e quis saber com ele produziu a mesa e as cadeiras, quem o ajudou nessa tarefa e se o Messias, de fato, apareceu.

  Seguiu Abobreira: - Foi um trabalho, demorado, primeiro para localizar jaqueiras de porte que serviram de base para o tampo e ele conseguiu com apoio de um cidadão chamado Maninho da Licurituba identificar três jaqueiras de porte em fazendas distintas, a melhor e maior delas no Oiteirinho, e entraram em cena dois machadistas da força de um touro, o Idelio Braço Forte e o Malaquias Malassombrado e numa semana deram conta do recado e lavraram ali mesmo na roça o tronco que serviu de meseta e foi preciso duas viagens do caminhão de Dr. Arnaldo Cohim, que todos sabem é dentistas e também empresário deste ramo, para trazer essas peças pra sua oficina na Barão, e outras duas jaqueiras foram abatidas no Mato Fino e no Saco do Moura e foram, ao todo, 6 viagens de caminhão só para conduzir a madeira, e Jão Galinha entrou em cena, trabalhando dia e noite, nivelou as peças e foi encaixando uma a uma produzindo mesas inteiras de 20 metros cada, isso em sua tenda, montou as bases, os pés da mesa, e no dia programado para a recebida do Messias, lembro como hoje, Natal de 1940, ele levou tudo para a praça Luís Nogueira, ai usando os serviços do caminhão de Carlos Tamborete e montou com a ajuda dos ajudantes João de Deus e seu irmão Valter, o envernizador Raimundo Sarará deu os retoques finais e montou-se a ceia, cadeiras postas ao redor num total de 120, 60 de cada lado, com 40 perus assados, pães, vinho e arroz branco, uma parte desses acepipes preparado na cozinha do Hotel da Leste e outra parte nas assadeiras da Padaria Pirangy, e foi uma coisa belíssima, o povo vendo tudo sendo montado, o Corpo de Polícia isolando a área com fitas, foi uma organização especial à espera do Messias, a Filarmônica 30 de Junho saiu de sua sede e desfilou até a praça instalando-se no coreto e tocando de intervalo em intervalo, e os convivas foram chegando, todos admirados com aquela beleza de mesa, nunca vista em tamanho e formosura, creio, 60 metros de comprimento, os talheres a postos, pratos cobertos, canecas da cerâmica Barro com a marca a vista, algo extremamente fantástico, e as autoridades foram tomando acento no local e ficou uma cadeira vaga no centro que seria do Messias, mas deu meia noite e o ele não chegou, os sinos da matriz repicaram, a banda sapecou um dobrado do maestro Azevedo, e o povo foi se aproximando, o Corpo de Polícia tentando conter a invasão, e em determinado momento, creio que as doze e meia, algum subversivo que estava na plateia gritou que o Messias não viria e berrou a palavra de ordem "vamos comer, vamos comer, vamos comer" e ai ninguém segurou o povo que avançou sobre os perus e foi um Deus nos acuda não sobrando coxa e sobrecoxa, deixando a mostra apenas a mesma lisa e bela de Jão Galinha. É o que tinha a dizer.